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Anistia não, anistia jamais: Atentado contra a democracia brasileira deve ser punido, e não recompensado com anistia para os perpetradores

Tratar do óbvio é quase sempre inútil. Perda de tempo e saliva, alguém dirá. Afinal, o que há para discutir em algo por si só evidente? Nada.

Há contextos, porém, em que o reforço ao óbvio se mostra não só necessário, mas também indispensável. É o caso do Brasil neste início de 2023.

Parte de nossa população, submetida a uma rígida e permanente dieta de desinformação via redes sociais, vem insistindo em negar a realidade. Por isso, é preciso vitaminar as obviedades e reapresentá-las à nação, como se fossem debutantes em um baile social.

Primeira delas: o Brasil permanece sendo um estado democrático de direito. Por mais que tenham tentado torná-lo uma autocracia no último quadriênio, nossas instituições resistiram e seguem funcionando.

A segunda, resultado da primeira, é que os mandamentos constitucionais continuam de pé. No quesito eleitoral, isso significa que quem vence as eleições para Presidente da República ocupa o cargo na legislatura seguinte. Essa tem sido a realidade brasileira nos últimos 34 anos, e ela não mudou.

Em terceiro lugar, jamais houve nenhuma evidência de fraude eleitoral associada ao uso de urnas eletrônicas no Brasil, conforme querem fazer crer conspiradores de WhatsApp dentro e fora do país. Nenhuma falha que tivesse potencial de viciar o resultado das eleições foi detectada por técnicos civis ou militares. Assim, as eleições de 2022 foram limpas e seus resultados, legítimos.

A quarta obviedade é: os resultados das eleições devem ser respeitados por todos. Proclamados os vencedores, cabe aos perdedores aceitarem a derrota e aguardarem a próxima corrida eleitoral. O que não cabe é os derrotados insuflarem seus eleitores a provocar o caos no país, em busca de uma reversão ilegal de resultados.

A quinta delas refere-se à inexistência de direitos absolutos. Aquela velha máxima “o seu direito termina onde o direito do outro começa”, ensinada por nossas mães e nossos pais, aplica-se muito bem ao nosso ordenamento jurídico. O direito à liberdade de expressão, por exemplo, não pode tolher a liberdade de ir e vir. Ou seja, protestos que bloqueiem rodovias, ainda que por motivação política, são ilegais.

A sexta delas chega a ser constrangedora: um regime democrático não deixa de 

sê-lo porque o candidato de uma parte da população não foi eleito. Sua derrota não significa a extinção da democracia; significa apenas que ele poderá tentar novamente em quatro anos. Não se joga fora toda uma ordem institucional para atender o capricho de alguns eleitores inconformados com o resultado das urnas. Democracia não é brinquedo, é coisa séria.

A sétima, e última, delas é bastante simples: uma pessoa suspeita de um crime deve ser investigada, processada e, se for o caso, responsabilizada (ou não) conforme a gravidade de seus atos, o devido processo legal e a legislação vigente. Ninguém espera que uma pessoa que destruiu um prédio público, aos gritos de “Deus, pátria e família”, seja isentada de responsabilidade porque estava apenas se expressando.

Faz-se menção a esses sete pontos evidentes, pois hoje há iniciativas de legisladores buscando anistiar gente que vem praticando atentados à democracia desde o final das eleições de 2022.

Atos que vão do bloqueio de rodovias à destruição de prédios públicos, passando pela destruição de propriedade privada e pela tentativa de explodir um caminhão de combustível no aeroporto de Brasília. Todos eles temperados por pedidos de intervenção militar feitos à porta de quartéis, alegações inconsistentes de fraudes nas eleições e ataques às instituições democráticas nas ruas e em canais da Internet.

Essas pessoas agem como a criança que é a dona da bola num jogo de futebol. Se ela não é escolhida, ou o jogo a desagrada, ela recolhe a bola e vai embora, dizendo: “A bola é minha. Acabou o jogo”.

A democracia, porém, não é uma bola de futebol para ser sequestrada por alguns dos jogadores. Ela pertence a todos, não podendo ser desrespeitada, atacada e solapada como alguns desejam fazer.

Os proponentes da anistia alegam que todas essas ações tiveram motivação política e, portanto, são expressão legítima do pensamento de quem as cometeu. Dessa forma, alegam eles, essas pessoas deveriam ser perdoadas.

Tão sonora e cristalina quanto possível, a resposta da sociedade a essa proposta deve ser um redondo NÃO.

Anistiar quem comete atos atentatórios à democracia é o mesmo que minar os alicerces da República. Se uma pessoa tenta um golpe de Estado, fracassa e sai dele intocada, o que impedirá uma nova tentativa no futuro?

Não estamos falando aqui de pessoas que roubam para comer, insanas ou que foram empurradas para a criminalidade por condições sociais adversas. Estamos falando de gente que escolheu tentar derrubar as instituições porque não aceitava os resultados eleitorais.

Ressalte-se que integram esse grupo não apenas quem executou os atos, mas igualmente quem os planejou, organizou e financiou. Na mesma classificação incluem-se os integrantes do poder público que, por ação ou omissão, colaboraram com essas iniciativas.

Conceder um perdão plenário a essas pessoas é dizer que seus atos são aceitáveis. Que tentar um golpe de Estado após as eleições é um delito menor. Que causar deliberadamente prejuízos na casa das dezenas de milhões de reais ao patrimônio público é algo escusável.

Pois não é. Trata-se a atentado contra a própria nação, contra a pátria.

A recusa à anistia não se configura em vingança por essas ações desprezíveis, mas sim em garantia à manutenção da ordem constitucional vigente. Ou essas pessoas são responsabilizadas por seus atos, ou esta nação viverá permanentemente à sombra do medo.

Permitir que esse grupo tenha um salvo-conduto após todas as barbaridades cometidas é legitimar o ilegitimável. É rasgar e cuspir em nossa carta constitucional. É dizer que vivemos em uma República de faz de conta.

Essa proposta de perdão é uma bofetada no rosto de todo brasileiro e de toda brasileira que amam a democracia. Ao apresentá-la, os parlamentares que a elaboraram traem seu juramento de defesa da constituição e da integridade do Brasil.

Uma mensagem deve ficar bem clara a todos: quem deseja derrubar o regime democrático responderá por seus atos, com todas as possibilidades de defesa asseguradas em nosso ordenamento jurídico. As manifestações de diversas autoridades que discursaram durante o dia 1º de fevereiro – Abertura do Ano Judiciário e dos trabalhos legislativos – destacaram o compromisso com a manutenção da democracia. Espera-se que isso se reflita na absolvição dos inocentes e na responsabilização dos culpados, dentro dos limites do devido processo legal e do direito ao contraditório e à ampla defesa.

O Brasil, a democracia e o nosso futuro dependem disso. Quem tenta exterminar o regime democrático não merece perdão antecipado e irrestrito. Para essas pessoas, anistia não. Anistia jamais.

 

 *Publicado originalmente no Jota 

Carlos Alberto Vilhena - Procurador Federal dos Direitos do Cidadão 

 

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