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Colaboração premiada, investigação e o acesso aos autos pela testemunha

A Constituição Federal estabelece, no art. 5, inciso LX, que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Em regra, vigora em nosso ordenamento jurídico a publicidade processual, que só poderá ser restringida em situações que afetem a intimidade ou o interesse social.

Nesse cenário, a investigação e o processo penal, em regra, devem ser públicos. É direito da sociedade ter ciência do andamento da persecução penal, como mecanismo de controle de sua eficiência. Em determinados casos, poderá ser decretado o sigilo da investigação, quando, por exemplo, a medida for necessária para o efetivo andamento da investigação ou englobar dados e/ou informações de caráter sigiloso, como é o caso do conteúdo resultante, por exemplo, de quebras de sigilos bancários e fiscais, que se enquadram no âmbito da intimidade dos investigados. Nestes casos, porém, o sigilo deverá ser o mínimo necessário, subsumindo-se apenas aos dados resultantes das quebras.[1]

O sigilo dos dados de uma investigação também pode ser resultante de um acordo de colaboração premiada, conforme dispõe o art. 5.º, §3.º da Lei 12.850/2013:

“Art. 5. (…)

  • 3º O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese.”

Os dados do acordo de colaboração serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou queixa referente aos relatos apresentados, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese.

Porém, o sigilo total do acordo de colaboração premiada, inclusive do termo do pacto, só será afastado com o recebimento da denúncia ou queixa, ou com o fim da persecução penal (ex: arquivamento da investigação), de todos os feitos decorrentes da colaboração.

Por outro lado, a previsão normativa do art. 5.º, §3.º da Lei 12.850/2013 deve ser conciliada com o enunciado de súmula vinculante n.º 14, que dispõe: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Por meio do referido enunciado, busca-se conciliar o direito do investigado à ampla defesa com a eficácia da persecução penal, assegurando ao investigado o aceso aos autos do procedimento investigatório, mesmo que sigiloso, desde que as informações já estejam documentadas nos autos.

Ou seja, a regra, em nosso ordenamento jurídico, é a publicidade dos atos processuais, que engloba as investigações, com exceção das situações que envolvem o sigilo, conforme previsão legal, como é o caso da colaboração premiada. Mesmo em casos com dados sigilosos, abre-se a possibilidade de o investigado ter acesso a esses dados, desde que documentados nos autos.

O acesso aos autos de uma investigação decorrente de relatos de um acordo de colaboração, observadas as regras constantes no art. 5.º, §3.º da Lei 12.850/2013 e no enunciado de súmula vinculante n.º 14, apresenta-se como uma forma de proporcionar uma relação de equilíbrio entre os direitos fundamentais da sociedade (direitos à publicidade e à eficácia da persecução penal) e do acusado/delatado (direito ao contraditório/ampla defesa), por meio de um juízo de ponderação com base no princípio da proporcionalidade, evitando-se, desse modo, eventuais excessos (proibição do excesso), bem como a proteção deficiente dos direitos fundamentais envolvidos.

Desse modo, é inadmissível que uma testemunha tenha acesso aos dados sigilosos de um acordo de colaboração premiada, direito exclusivo do delatado/investigado. Mesmo o acesso do delatado/investigado deverá se restringir a parte que o diz respeito[2], sob pena de violação do sigilo legal, ante a vedação ao magistrado de decidir por sua publicidade em qualquer hipótese, salvo, repita-se, após o recebimento da denúncia ou queixa.

Desse modo, não há fundamento normativo que justifique a violação do dever legal de sigilo dos dados de uma investigação, como os decorrentes de uma colaboração premiada, sem a observância dos requisitos legais, para que ocorra a liberação do acesso irrestrito aos autos a pessoas que se encontrem na posição jurídica de testemunha. Em uma investigação, não há violação de direito fundamental de uma testemunha, existindo, em verdade, dever legal de falar a verdade. Os direitos fundamentais em litígios são das partes principais da persecução penal, sociedade e acusado, não da testemunha.

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[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-penal-sigilo-das-informacoes-22062021

[2]EMENTA Agravo regimental na reclamação. Representação criminal. Instauração com base em termos de colaboração premiada. Negativa de acesso da defesa aos respectivos autos. Invocação genérica da regra do sigilo da colaboração premiada (art. 7º, § 3º, Lei nº 12.850/13). Inadmissibilidade. Fundamentação inidônea. Direito de acesso aos elementos de prova já documentados e que digam respeito ao agravante. Ressalva tão somente das diligências em curso. Precedentes. Inteligência da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal. Recurso provido para, admitida a reclamação, julgá-la procedente.

  1. O direito do investigado de ter acesso aos autos não compreende diligências em andamento, na exata dicção da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.
  2. Na espécie, o juízo reclamado em momento nenhum assentou que no procedimento sob sua jurisdição, no qual o agravante figura na condição de investigado, existiriam única e exclusivamente diligências em andamento que precisariam ser preservadas.
  3.  A decisão reclamada, de cunho genérico, não se lastreia em nenhuma peculiaridade do caso concreto para justificar a negativa de acesso aos autos pela defesa, limitando-se a invocar a regra legal do sigilo dos depoimentos prestados pelo colaborador (art. 7º, § 3º, da Lei nº 12.850/13), cuja finalidade seria “preservar a eficácia das diligências investigativas instauradas a partir do conteúdo dos depoimentos e documentos apresentados pelo colaborador”.
  4.  Limitou-se o juízo reclamado a aduzir que o agravante já teria obtido “acesso aos depoimentos [dos colaboradores] publicizados perante o Supremo Tribunal Federal”, e que não lhe cabia, “sob prejuízo das investigações, acompanhar em tempo real as diligências pendentes e ainda a serem realizadas”.
  5. Essa fundamentação é inidônea para obstar o acesso da defesa aos autos.
  6. O Supremo Tribunal Federal assentou a essencialidade do acesso por parte do investigado aos elementos probatórios formalmente documentados no inquérito – ou procedimento investigativo similar – para o exercício do direito de defesa, ainda que o feito seja classificado como sigiloso. Precedentes. 
  7. Nesse contexto, independentemente das circunstâncias expostas pela autoridade reclamada, é legitimo o direito de o agravante ter acesso aos elementos de prova devidamente documentados nos autos do procedimento em que é investigado e que lhe digam respeito, ressalvadas apenas e tão somente as diligências em curso. 8. Agravo regimental provido para, admitida a reclamação, julgá-la procedente” (STF – Rcl 28903 AgR/PR).

 

*Galtiênio da Cruz Paulino, procurador da República

*Publicado originalmente no portal JOTA

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