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Equidade racial: quando iremos abrir os olhos para essa necessidade?

Na tarde de 29 de outubro de 2022, véspera do segundo turno das eleições, num bairro nobre de São Paulo, uma deputada federal perseguia a pé um homem negro. Branca, ruiva e com uma pistola nas mãos, a parlamentar encurralou seu alvo em um bar. Apontava-lhe a arma, enquanto ordenava que ele se deitasse no chão.

Mais tarde, em suas redes sociais, ela disse: “Eles usaram um negro para vir em cima de mim”. Afirmou também ter sido ofendida, cuspida e empurrada no chão pelo rapaz. Descobriu-se depois que ele a havia xingado, nada mais. Irritada, a mulher correra atrás dele e caíra sozinha, colocando a vida de outra pessoa em risco por uma ofensa verbal[1].

Não há o que louvar na atitude do rapaz, mas a reação da congressista foi desproporcional à ofensa. Num duelo entre balas e palavras, o chumbo sempre vence a saliva. 

Cabe perguntar: haveria essa resposta exagerada, se uma pessoa branca tivesse ofendido a parlamentar? E mais: a deputada teria dito que usaram um branco para vir em cima dela? É muito provável que a resposta para ambas as questões seja não.

A atitude lamentável da deputada infelizmente faz eco à de parte de nosso povo. Os 134 anos da abolição ainda são insuficientes para suplantar os 350 anos de uma persistente mentalidade escravista.

Perto de cinco milhões de africanos foram trazidos a este país entre os séculos 16 e 18 para trabalhar como escravizados. Negar-lhes a humanidade e reduzi-los a objetos – até mesmo ante seus próprios olhos – era essencial para o funcionamento do sistema econômico da época. Objetos não são gente, não merecem empatia, não precisam de dignidade.

A frase da deputada embute essa objetificação, cujo resultado se traduz em diversas estatísticas socioeconômicas desfavoráveis.

Em 2021, mais de 56% de nossa população se identificava como preta ou parda[2]. Seria de se esperar que essa proporção se repetisse nas várias áreas da vida social. Contudo, não é isso o que acontece. Quase sempre a presença negra se eleva bastante nos indicadores ruins e submerge muito nos bons.

Exemplos não faltam: enquanto 78% das vítimas de assassinatos no Brasil são afrodescendentes[3], apenas 21% dos magistrados brasileiros têm essa origem[4]. Dois terços dos encarcerados no Brasil têm pele escura[5], característica de somente 26% dos deputados federais eleitos em 2022[6]. Perto de 75% dos miseráveis do país são negros[7], enquanto CEOs pretos ou pardos não lideram nem 10% das empresas no Brasil[8].

Nada disso é coincidência ou acidente. Sucessivas gerações de negros têm tido seu avanço sistematicamente impedido em nossa sociedade. A extinção da escravatura não gerou compensações aos escravizados ou sua inserção na sociedade. Eles não só foram deixados à própria sorte, como também submetidos a processos crescentes de marginalização e eliminação.

Antes da abolição, há evidências de mão de obra cativa nas mais diversas profissões: cozinheiro, calafate, tanoeiro, entre outras[9]. Até perto do fim do século 19, curandeiros, parteiras e dentistas negros cuidavam da saúde de boa parte do povo[10]. Os africanos se destacavam inclusive na metalurgia: parte de suas inovações tecnológicas foi aproveitada na primeira siderúrgica brasileira, a Patriótica, em 1812[11].

Apesar disso, orientado por um darwinismo social que entendia pretos e pardos como biologicamente inferiores, o poder público incentivou a imigração de europeus e asiáticos para o Brasil, como forma de melhorar – leia-se embranquecer – a nossa população, tornando-a supostamente mais apta para trabalhos complexos[12]. Restringia-se, assim, a possibilidade de afrodescendentes ocuparem postos de trabalho nesse novo cenário.

À falta de ocupação juntou-se a perseguição judicial. O código criminal de 1890 punia a vadiagem com encarceramento de 15 a 30 dias. Com reduzidas possibilidades de obter uma ocupação formal, a massa de ex-cativos tornou-se alvo preferencial das autoridades policiais[13].

Mais de um século depois, a surpresa é a permanência da “predileção” da polícia pela população negra. Das 6.145 mortes causadas por ações policiais em 2021, 5.168, ou 84%, foram de pessoas negras[14].

É verdade que avanços como o sistema de cotas para negros no Brasil têm propiciado progressos à população negra, viabilizando acessos antes impensáveis ao ensino superior, a empregos e à participação política.

No entanto, ainda há muitos problemas a superar em termos do racismo estrutural que permeia todos os níveis de nossa sociedade. Um racismo que oprime, desqualifica e agride todas as pessoas negras, especialmente as mais pobres.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), por meio de seu Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, vem lutando por modificar esse quadro.Promovemos seminário sobre a letalidade policial contra a população negra; manifestamo-nos contra projeto de lei que visava eliminar o sistema de cotas; atuamos na assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta que levou a rede Carrefour a destinar R$ 115 milhões a programas de igualdade racial após João Alberto Silveira Freitas, homem negro, ter sido espancado até a morte por seguranças em uma das lojas da empresa[15].

O art. 3º, IV, de nossa Constituição elenca como objetivo nacional a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Há 34 anos, nós, como sociedade, temos falhado em atingir essa meta. Desde 2011, quando o 20 de novembro foi instituído como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, somos lembrados dessa falha.

Zumbi representa a resistência da comunidade negra às diuturnas tentativas de seu extermínio. Eliminação física, moral e histórica. Mesmo assim, esse grupo social se mantém de pé, luta e persiste.A perseguição de 29 de outubro de 2022 foi mais uma dessas tentativas. E irá se repetir sob outras formas, todos os dias, enquanto a igualdade racial estiver apenas na letra da lei.

Somos iguais no papel, mas não equivalentes em sociedade. Precisamos de equidade racial verdadeira, que viabilize a pretos e pardos oportunidades reais de progresso, segurança e dignidade. Essa deve ser nossa meta. E dela precisamos ter, independentemente do tom de pele, urgente consciência. Quando iremos abrir nossos olhos?

*Carlos Alberto Vilhena, Subprocurador-geral da República e procurador federal dos direitos do cidadão. 

*Publicado originalmente no Jota

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