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Precisamos pensar mais sobre nossas capacidades institucionais

Decisões judiciais e formulações doutrinárias têm recorrido com crescente frequência à noção de capacidades institucionais. Invoca-se a ideia, geralmente, como uma espécie de diretriz hermenêutica que recomenda ao Poder Judiciário uma postura de autocontenção diante de temas eminentemente técnicos, cujo enfrentamento caberia a outras instituições melhor talhadas para a função.

O Supremo Tribunal Federal fez uso do conceito em diversas ocasiões, explícita ou implicitamente. Em 2001, Sepúlveda Pertence assinalou que, “quando a Constituição cria uma instituição e lhe atribui determinado poder ou função política, a presunção é que o faça em caráter privativo, de modo a excluir a ingerência na matéria de outros órgãos do Estado”. Em 2009, ao julgar que não cabe ao Poder Judiciário, mas ao Presidente da República, definir sobre a entrega ou não de extraditando a país estrangeiro, o relator, ministro Luis Fux, argumentou que a Corte “carece de capacidade institucional para tanto. Aplicável, aqui, a noção de ‘institutional capacities’, cunhada por Cass Sunstein e Adrian Vermeule”. Já em 2018, ao decidir que não é função do Poder Judiciário, mas do Poder Executivo, especificamente do Ministério da Educação, definir idades mínimas para ingresso na educação infantil e no ensino fundamental, mais de um ministro enfatizou a noção de capacidade institucional. O ministro Luís Roberto Barroso apontou: “Um pouco na linha desta virada empírico-pragmática que tenho proposto, quem tem melhor capacidade de aferir a realidade prática e os resultados a serem produzidos no sistema de educação não são os juízes de Direito, são os educadores”. Finalmente, em 2019, em julgado sobre direito regulatório, novamente o ministro Luis Fux anotou: “A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação. Consoante o escólio doutrinário de Adrian Vermeule, o Judiciário não é a autoridade mais apta para decidir questões policêntricas de efeitos acentuadamente complexos”. A propósito, é interessante observar que também em debates públicos o ministro Fux tem enfatizado o argumento.

Perceba-se que considerações sobre capacidades institucionais não são exatamente fenômeno recente. Como anotam Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, já em 1958 Lon Fuller propunha-se a pensar tensões entre o Judiciário e agências e entre o Judiciário e o Legislativo a partir das funções e virtudes extraídas do desenho constitucional. Em 1991, trabalho de Frederick Schauer introduziu discussão relevante sobre teorias da decisão jurídica como mecanismos de alocação de poder entre instituições e sobre a interdependência entre as questões de como decidir e quem decide.

De todo modo, foi somente com Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, em texto seminal de 2003, que o tema alcançou maior projeção. Mas essa projeção, a qual se expressa nas menções recorrentes às capacidades institucionais em textos jurídicos e decisões judiciais, não significa que o argumento já tenha sido construído com precisão e que seu manuseio obedeça a parâmetros rigorosos. Não há clareza sobre quais são os fundamentos, se é que eles existem, que dão suporte à noção. Não existe uma definição minimamente precisa do argumento. Tampouco há qualquer certeza sobre sua natureza, isto é, se configura norma jurídica ou mero valor e, tratando-se de norma, se é regra, princípio ou postulado (aqui seguindo a classificação hoje mais difundida), o que é fundamental para orientar sua aplicação. Por fim, inexistem critérios claros capazes de guiar sua operacionalização em casos concretos.

No Brasil, embora as alusões ao argumento sejam frequentes, poucos são os textos que o exploraram com profundidade e rigor. Entre os mais importantes, seguramente estão os textos de Arguelhes e Leal, que bem apontam que muitas das referências ao argumento são, na verdade, banais, redundantes ou absurdas. Há um uso banal da expressão quando se recorre a ela simplesmente para enfatizar que as condições reais de aplicação do Direito não correspondem às condições ideais, na medida em que os operadores do Direito têm diversas limitações, como insuficiência de expertise para temas específicos e escassez de tempo. Nesse caso, a ideia é utilizada para ressaltar o óbvio e pouco acrescenta ao debate constitucional. Identifica-se um uso redundante do argumento, por sua vez, quando se lança mão dele para fazer referência a conceitos já conhecidos, como separação de poderes, dificuldade contramajoritária ou expertise técnica. Usa-se um “rótulo novo (e potencialmente mais atraente) para reposicionar no debate ideias e argumentos antigos”. Não se agrega algo novo e original à reflexão. Finalmente, tem-se um uso absurdo do argumento quando, a partir dele, ao se considerar que determinada instituição tem mais capacidade do que outra, são transgredidas determinações claras das normas jurídicas e confere-se o poder de decidir certo tema a um agente que, segundo o Direito positivo, claramente não o tem.            

Arguelhes e Leal, de modo original, chegam a esboçar algumas propostas relacionadas à operacionalização do argumento. Segundo eles, o primeiro passo é “determinar o quadro normativo e fático no âmbito do qual as instituições desempenham os seus papeis e incluí-lo na análise consequencialista que determinará qual postura institucional ou método de decisão é o mais apropriado”. Outro passo consiste em “fixar os limites epistêmicos e de legitimidade da instituição sob consideração”.

Seja como for, o fato é que ainda estamos muito longe de uma lógica consolidada de uso das capacidades institucionais. A referência a elas continua ocorrendo, em geral, sem que se conheçam seus fundamentos, definição, natureza e forma de operacionalização. Em regra, simplesmente se invoca a ideia e se aponta, sem maiores considerações e sem uma metodologia previamente definida, que o Poder Judiciário não deve se imiscuir no tema e que a decisão do Poder Executivo ou do Poder Legislativo deve prevalecer.

A título de comparação, observe-se a proporcionalidade, recurso empregado rotineiramente no debate constitucional. A proporcionalidade passou por longo processo de desenvolvimento até chegar à sua estrutura atual, amplamente compartilhada, dividida em exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Ainda assim, ela continua a provocar polêmicas e a dar margem a decisionismos, motivo pelo qual seu refinamento conceitual e metodológico é necessariamente incessante. Com muito mais razão, portanto, o desenvolvimento teórico do argumento das capacidades institucionais – sobre o qual, ao contrário da proporcionalidade, não há nenhuma clareza - é imprescindível.           

O argumento das capacidades institucionais tem potenciais relevantes. Não é novidade que, especialmente no Brasil, o Poder Judiciário tem ingressado em esferas que não lhe são próprias, tomando decisões que, em tese, deveriam caber a agentes públicos eleitos pelo voto popular ou dotados de maior expertise técnica. Num ambiente de anarquia metodológica e carnavalização da Constituição, essa usurpação de atribuições de outras instituições é mais perigosa, na medida em que pode descambar para uma investida sobre todo e qualquer tema, o que inclui assuntos altamente sensíveis, complexos e eminentemente técnicos, para os quais os operadores do Direito claramente não foram preparados. Nesse quadro, o recurso argumentativo às capacidades institucionais, como medida que recomenda uma postura mais prudente ao Poder Judiciário, pode ser salutar.           

No entanto, o uso indiscriminado da expressão, sem nenhum rigor e sem que se definam minimamente seus contornos, pode, paradoxalmente, a pretexto de promover autocontenção e de combater o arbítrio, acabar promovendo ainda mais arbítrio e uma espécie de ativismo contra a própria Constituição, a qual determina, em diversos dispositivos, a exemplo da cláusula de inafastabilidade da jurisdição, que o Poder Judiciário atue para a proteção de direitos fundamentais. Esse mandamento, aliás, estende-se a outros atores jurídicos, como o Ministério Público, que não pode, supostamente por carecer de capacidade institucional, se omitir e renunciar à sua missão de proteção de direitos fundamentais.

Enfim, a temática, como se pode ver, tem grande revelo acadêmico, prático e político. Magistrados, membros do Ministério Público, advogados, acadêmicos e juristas em geral precisam pensar mais sobre isso.

 

*Jorge Mauricio Klanovicz. Procurador da República. Doutorando em Direito Público na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília e especialista em Direito Aplicado ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União.

* Rogerio Favreto. Desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi procurador-geral do município de Porto Alegre e secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. 

 

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