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Prisão após o trânsito em julgado e os números da justiça criminal no Brasil

No julgamento do HC n. 126.292-SP, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível a execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Porém, a matéria passou a ser discutida novamente em 7 de novembro de 2019, quando o Supremo, no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, decidiu, por 6 votos a 5, que é inadmissível a prisão após a condenação em segunda instância, devendo ser aguardado o trânsito em julgado da condenação, sob pena de ocorrer a violação do princípio da presunção de inocência.

O atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal é eficiente?

As normas jurídicas, entre as quais estão as advindas de decisão judicial, devem se pautar pela busca da eficiência, e uma das formas de se aferir a eficiência, segundo a Análise Econômica do Direito, foi desenvolvido por Pareto. Segundo sua premissa, há eficiência quando, em decorrência de um ato ou de uma norma jurídica, pelo menos uma pessoa fica em situação melhor e ninguém tem sua condição piorada.[1] [2] [3]

Outro critério muito disseminado é o desenvolvido por Kaldor-Hicks. Por esse critério, admite-se um contexto de ganhadores e perdedores em razão de um ato, contanto que os ganhos sejam maiores do que as perdas. A eficiência é analisada confrontando-se os custos com os benefícios de determinadas normas. Se o benefício total superar os custos totais, há eficiência. Essa concepção objetiva maximizar o bem-estar da sociedade, com o conceito de eficiência redundando em ganho por parte de uma maioria; sempre um grupo perderá.[4] Nesse sentido, atos, projetos, condutas só devem ser implementados se os benefícios superarem os custos. Os custos e os benefícios a serem levados em conta são os privados e os sociais.

Diante da perspectiva da Análise Econômica do Direito, tendo como foco a concepção desenvolvida por Kaldor-Hicks, é possível aferir o grau de eficiência do atual posicionamento do STF com base na análise de dados do sistema de justiça brasileiro, especialmente os levantados e divulgados em fevereiro de 2018 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio da Coordenadoria de Gestão da Informação, do período de 1º de setembro de 2015 a 31 de gosto de 2017, relativos aos pedidos concedidos em HC e em RHC pelo tribunal.[5]

Na pesquisa, analisou-se o teor das decisões, terminativas monocrática e colegiadas, proferidas pelos dez ministros que compõem a 5ª e a 6º Turmas do STJ nesse período. Objetivou-se aferir qual o percentual de decisões em que é concedida a absolvição, a alteração de regime prisional, a diminuição da pena, a diminuição da pena de multa, a anulação do processo e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Com base nos referidos parâmetros de pesquisa, constatou-se a existência de 117.167 decisões no período. Esse número foi reduzido para 47.057 decisões ao serem excluídas as decisões dos processos classificados como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de Direito Processual Penal (fiança, prisão cautelar, execução penal etc.). Entre as 47.057 decisões aferidas, delimitou-se para o estudo e análise individualizada 5.372 decisões.

Nas 47.057, foi verificado que os HCs ou RHCs resultaram em: 0,28% em absolvição; 4,39%, alteração do regime fixado na condenação para o regime aberto; 8,17%, alteração para o regime semiaberto; 0,17%, anulação do processo; 9,60%, diminuição da pena; 6,60%, diminuição da pena de multa; e 2,65%, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Não se pode olvidar que muitas das decisões analisadas resultaram em mais de um dos citados resultados, sendo, portanto, muito menor o número de decisões que sofreram alterações.

Das decisões com pedido concedido, em 80,93% já havia condenação em segunda instância. Portanto, o percentual de absolvição (0,28%), quando levado em consideração os casos que já tinham condenação em segunda instância, é ainda menor, mesmo levando em consideração instrumentos constitucionais mais incisivos, como é o caso do HC e do RHC. A tendência, ao se analisar essas questões em sede de Recurso Especial e/ou Recurso Extraordinário, em razão da natureza desses instrumentos, é de o número de possíveis absolvições ser praticamente zero.

Além dos pouquíssimos casos de alterações das decisões condenatórias, há o problema da demora na solução das demandas criminais. Mesmo tomando como referência instrumentos naturalmente céleres, como é o caso do HC e do RHC, verificou-se que, entre a autuação no STJ e a primeira decisão proferida nos HCs e RHCs analisados, transcorreu o tempo médio de 99 dias em 50% dos processos, sendo que 90% dos processos têm a primeira decisão em até 432 dias.

Se a maioria esmagadora (90%) dos HCs e dos RHCs demora 432 dias para terem a primeira decisão, sendo que já houve um longo transcurso de prazo para ocorrer a condenação analisada, em quando tempo ocorrerá o trânsito em julgado, após recursos especial e extraordinário, e diversos outros recursos interpostos durante a marcha processual? Haverá uma persecução penal eficiente? Os direitos das vítimas e da sociedade serão respeitados? Há risco ao direito à liberdade do acusado em um contexto de possível alteração de decisões que atingem praticamente o patamar zero?

Outrossim, não se pode olvidar do contexto de abarrotamento do Judiciário em todas as instâncias. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstram o longo tempo percorrido por um processo para que ocorra uma sentença ou a finalização do feito[6].

A grande quantidade de processos pode ser constatada pelos números levantados no STJ. Constatou-se que, em 2019, foram distribuídos e registrados no tribunal 374.366 processos, com uma média de 11.344 processos distribuídos por ministro. O ano de 2019 contou com um aumento de 7,4% processos distribuídos em relação a 2018, tendo sido aferida uma média de expansão de 3,4% ao ano desde 2013[7].

A consequência desses números é a verificação de um longo período de tramitação dos processos. Dados do STF demonstram que a média de duração das liminares concedidas pelos ministros da corte é 653 dias, quando se leva em consideração todas as classes processuais. Porém, o tempo é de: 6,2 anos nas ações diretas de inconstitucionalidade; 6,1 anos nas ações declaratórias de constitucionalidade; 4,4 anos nas arguições de descumprimento de preceito fundamental; e 7,3 anos nos recursos extraordinários[8].

Diante de tamanha demora na prestação jurisdicional, como esperar o trânsito em julgado de condenações para se iniciar a execução da pena? Aguardar o trânsito em julgado é uma escolha eficiente?

Países como a Alemanha, que aguardam o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena[10], não possuem um Judiciário abarrotado de processos como o Brasil, sem se olvidar do sistema recursal criminal brasileiro, que impossibilita o trânsito em julgado. Esse status jurídico (trânsito em julgado) é atingido no processo penal alemão após um, no máximo três, recursos.

Um exemplo de que a posição atual do STF é socialmente ineficiente, estimulando o condenado a interpor recursos meramente protelatórios, é a situação do ex-senador Luiz Estevão. Com o entendimento do STF no HC 126.292-SP, permitindo o início da execução desde que exista uma sentença condenatória confirmada em segunda instância, decretou-se, em 7 de março de 2016, a prisão desse ex-senador, oportunidade em que se divulgou que Luiz Estevão havia interposto, até então, 34 recursos, muitos procrastinatórios, visando a evitar o trânsito em julgado e, consequentemente, o início da execução.[11]

Diante da narrada realidade jurídica, foi possível observar que o atual posicionamento do STF sobre a execução da pena é ineficiente.

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[1] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Trad.Rachel Sztajn. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[2] TABAK, Benjamin Miranda. Análise Econômica do Direito – proposições legislativas e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, ano 52, n.205, 2015.

[3]COOTER, R. D.; ULEN, T. S. Direito e economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

[4] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Trad.Rachel Sztajn. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[5] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Coordenadoria de Gestão da Informação. Disponível em: https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/pesquisa_recursos.pdf. Acesso em: 2 de maio de 2022.

[6] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2021 (Ano-base 2020). Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em 6 de maio de 2022.

[7] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Boletim Estatístico do Superior Tribunal de Justiça. Relatório Estatístico – 2019. Disponível em: http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/verpagina.asp? vPag=0&vSeq=343. Acesso em: 2 abr. 2022.

[8] FALCÃO, Joaquim; HARTMANN, Ivar A.; CHAVES, Vitor P. III Relatório Supremo em Números: o Supremo e o tempo. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2014.

[9] FALCÃO, Joaquim; HARTMANN, Ivar A.; CHAVES, Vitor P. III Relatório Supremo em Números: o Supremo e o tempo. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2014.

[10] GLEIZER, Orlandino; GÓES, Guilherme. Breves comentários sobre a execução da pena no Direito alemão. Análise sobre o sistema recursal alemão em matéria penal e o início da execução da pena no país. JOTA. Disponível: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/breves-comentarios-sobre-a-execucao-da-pena-no-direito-alemao-16102019. Acesso em: 2 de maio de 2022.

[11] LUCHETE, Felipe. Juiz manda prender ex-senador Luiz Estêvão, condenado em segunda instância. Disponível em:< http://www.conjur.com.br.: Acesso em: 22 abr. 2017.

*Galtiênio da Cruz Paulino – Formado em direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestre pela Universidade Católica de Brasília e doutorando pela Universidade do Porto. Possui pós-graduação em direito público pela ESMPU e em ciências criminais pela Uniderp. Orientador pedagógico da ESMPU. Ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República. No MPF, foi membro-auxiliar do procurador-geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no STF e atualmente é membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ

*Publicado originalmente em Jota

 

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