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Prova da atividade criminosa antecedente na lavagem de dinheiro: uma breve mirada comparada

Antigo chefe do cartel colombiano Norte del Valle, Juan Carlos Ramirez Abadia foi um dos narcotraficantes mais ricos e poderosos do planeta.

De acordo com informações do Departamento de Justiça norte-americano , o cartel liderado por Abadia, entre os anos de 1990 e 2004, exportou aos Estados Unidos¹ aproximadamente 500 toneladas de cocaína, quantidade cujo valor de mercado supera US$ 10 bilhões. Para transportar a droga da Colômbia ao México, país que servia como “porta de entrada” no território norte-americano, Abadia utilizava embarcações e aeronaves, já tendo enviado 15 aviões carregados de cocaína numa única noite².

Preso no Brasil em 2007, Abadia teria dito que todo o dinheiro que possuía, e com o qual adquirira bens no território nacional, era produto direto do tráfico de drogas ou de empresas montadas com recursos provenientes dessa atividade criminosa³.

A notável história do famoso narcotraficante pode servir como contexto para a discussão sobre um dos aspectos mais importantes relacionados à imputação do crime de lavagem de dinheiro. Afinal, a responsabilização pelo crime de lavagem de capitais exige a prova das circunstâncias particulares do delito antecedente?
Imaginemos a situação hipotética de alguém que, envolvido em atividades criminosas idênticas às de Abadia, decida, para ocultar a sua natureza e origem, empregar integralmente na atividade econômica no Brasil o produto de um ano de exploração do tráfico internacional de drogas.

Nesse caso, teria o órgão acusador o dever de narrar, na acusação de lavagem de dinheiro, de forma pormenorizada, cada crime específico de tráfico de drogas cometido ao longo dos 12 meses? Seria indispensável a narrativa da natureza e quantidade da droga transportada, bem como do destinatário e do local da partida e da entrega da droga? Também teria o órgão acusador a obrigação de narrar precisamente o valor auferido por cada evento criminoso?

Em outros termos, para que uma imputação pelo crime de lavagem de dinheiro seja considerada apta, é necessário que órgão acusador descreva as circunstâncias específicas da infração penal da qual provém os bens, direitos e valores objeto de branqueamento?

Embora não se desconsidere a importância da reflexão acerca das opções político-criminais já adotadas pelo legislador ao aprovar a Lei 9.613/1998, o presente ensaio pretende explorar outra abordagem. A discussão proposta terá natureza prescritiva, refletindo sobre como deve funcionar o sistema. Em suma, deseja-se propor algumas reflexões sobre quais os rumos político-criminais que devem ser seguidos quanto à imputação e prova da infração antecedente. Para tanto, buscar-se-á apresentar, com a profundidade possível, um panorama geral do tratamento do tema na experiência estrangeira.

O momento para travar esse debate não poderia ser mais oportuno. Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia adotaram, no fim de 2018, a Diretiva (EU) 2018/1673, ato normativo vinculante que enfrentou especificamente essa questão. Se é certo que os efeitos vinculantes da Diretiva não alcançam o Brasil, também é correto assumir que não se pode ignorar a importância dos esforços de uniformidade empreendidos pelos países europeus. Em segundo lugar, a Câmara dos Deputados, reconhecendo a necessidade de aperfeiçoamento do tratamento dispensado ao crime de lavagem de dinheiro, instituiu Comissão de Juristas para elaborar anteprojeto de reforma da Lei nº 9.613/1998. A análise de como os demais países optaram por enfrentar problemas semelhantes pode enriquecer sobremaneira as discussões.

Análise da experiência comparada

Não é destituída de riscos a atividade de empreender análise jurídica comparada. É cediço que a compreensão e interpretação dos institutos estrangeiros pode ser comprometida e levar a resultados socialmente indesejáveis, sobretudo quando apartada de cuidados relacionados a considerações de ordem cultural, fática e contextual. Os riscos de resultados não desejáveis são potencializados pela tendência natural de invocar-se o direito estrangeiro quando convém e ignorá-lo quando ele não corresponde ao esperado, o que, segundo o ex-juiz da Suprema Corte norte-americana, Antonin Scalia, se aproximaria do sofismo4.

No caso concreto, todavia, as vantagens da análise comparada justificam com sobra os riscos. Isso porque poucos fenômenos jurídicos foram discutidos de forma tão intensa e aprofundada na ordem internacional como a lavagem de dinheiro. Logo, analisar e aprender com as experiências de como os países equacionaram internamente esse problema é importante não apenas para o aperfeiçoamento da legislação nacional, mas sobretudo para facilitar a cooperação internacional e assegurar o cumprimento das obrigações convencionais do Brasil.

No âmbito europeu, um dos marcos quanto ao tema foi a Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo, adotada na cidade de Varsóvia em 16 de maio de 2005. Em seu texto, a Convenção de Varsóvia enfrenta especificamente a questão:

Artigo 9.º Infracções de branqueamento

6 — Cada uma das Partes assegurará a possibilidade de condenação por branqueamento, nos termos do presente artigo, se se provar que os bens objecto de um dos actos referidos nas alíneas a) ou b) do n.º 1 do presente artigo provêm de uma infracção subjacente, sem que seja necessário especificar qual a infracção em causa.

O relatório explicativo da Convenção apresenta as justificativas da adoção desse dispositivo. Segundo os proponentes, o referido artigo, que lida com a questão probatória da infração antecedente, foi pensado para facilitar a persecução pelo crime de lavagem de dinheiro. Havendo evidências da origem ilícita do objeto do crime de lavagem, além de provas de que o autor tinha conhecimento da sua origem, não se faz necessária a prova dos elementos factuais de uma infração específica.

Cerca de uma década após a entrada em vigor na ordem internacional da Convenção de Varsóvia, foi adotada a Diretiva 2018/1673, o mais importante ato normativo internacional que trata da lavagem de Dinheiro, seja pela abrangência e nível de detalhamento, seja pelo próprio valor normativo vinculante5.

Além de reconhecer os efeitos lesivos da lavagem de dinheiro para a integridade, estabilidade e reputação do setor financeiro, a Diretiva admite que as medidas adotadas nacionalmente possuem efeitos limitados se não levar em conta a atividade de harmonização da lei, colocando em risco a segurança interna da União Europeia. Dito de outro modo, reconheceu-se que os requisitos estabelecidos para a criminalização do branqueamento de capitais não eram suficientemente coerentes para combater o fenômeno, o que se traduzia em lacunas na aplicação da lei e em obstáculos à cooperação entre as autoridades competentes dos diferentes Estados-Membros.

Tendo em conta esse pano de fundo, a questão da relacionada à prova da infração antecedente recebeu destacado e minucioso tratamento na Diretiva. De acordo com seu texto, superou-se a necessidade de demonstração de um delito específico nas imputações de lavagem de dinheiro, bastando determinar que o produto a ser branqueado provém de atividade criminosa:

Artigo 3º
Infrações de branqueamento de capitais

Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que:

a) Uma condenação anterior ou simultânea pela atividade criminosa de que os bens provenham não seja condição prévia para uma condenação pelas infrações a que se referem os n.os 1 e 2;

b) Uma condenação pelas infrações a que se referem os n.os 1 e 2 seja possível quando se tiver determinado que os bens provêm de uma atividade criminosa, sem que haja necessidade de determinar todos os elementos factuais ou todas as circunstâncias relacionadas com essa atividade criminosa, incluindo a identidade do autor da infração;

Para afastar dúvidas, o considerando nº 12 da Diretiva esclareceu que a eficácia no combate à lavagem de dinheiro exige uma mudança nos critérios de imputação e prova da infração antecedente. De acordo com seu texto:


Com vista a que as medidas de direito penal sejam eficazes no combate ao branqueamento de capitais, deverá ser possível haver uma condenação sem que seja necessário determinar com precisão qual a atividade criminosa que gerou os bens, ou que haja uma condenação anterior ou simultânea por essa atividade criminosa, tendo simultaneamente em conta todas as circunstâncias e elementos de prova pertinentes. Os Estados-Membros deverão poder, nos termos das respetivas ordens jurídicas, assegurar que assim seja através de outros meios que não a legislação. As ações penais no âmbito do branqueamento de capitais também não deverão ser dificultadas pelo facto de a atividade criminosa ter sido cometida noutro Estado-Membro ou num país terceiro, sob reserva das condições estabelecidas na presente diretiva.

As razões político-criminais que justificaram a mudança na abordagem foram apresentadas de forma mais minudente na exposição de motivos que acompanhou a proposta da qual derivou a Diretiva 2018/1673. Nesse documento, a Comissão Europeia indicou as razões pelas quais propôs a mudança de tratamento quanto à prova da infração antecedente. Primeiramente, apontou que essa abordagem, que já era compatível com práticas nacionais, atendia às exigências da Convenção de Varsóvia. Na sequência, destacou a visão das partes interessadas e, especialmente, dos órgãos relacionados ao tema do combate à lavagem de dinheiro. Segundo a Eurojust, a Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal, a exigência de demonstração precisa da infração antecedente é um grande obstáculo ao combate transnacional eficaz da lavagem de dinheiro. Por seu turno, de acordo com a Europol, a necessidade de provar uma específica infração antecedente é o problema mais significativo para as investigações de lavagem de dinheiro, especialmente quando há a necessidade de cooperação internacional para a produção de provas.

De fato, a Comissão Europeia tem razão ao pontuar que a abordagem já era compatível com práticas nacionais. Um exemplo significativo pode ser mencionado: o sistema jurídico-penal espanhol.

Na Espanha, desde pelo menos o ano de 2001, o Tribunal Supremo vem decidindo no sentido de ser desnecessária para a responsabilização pelo crime de lavagem de dinheiro a comprovação de um ato delitivo concreto como infração antecedente. Para a jurisprudência pacífica e estável da referida Corte espanhola, é suficiente a prova consistente de uma atividade delitiva de modo genérico, o que vai ao encontro do objetivo político-criminal de combater a lavagem de dinheiro sem desproteger direitos individuais dos acusados.

É por essa razão que para Blanco Cordero (2012, p. 171) a reforma do Código Penal espanhol, operada em 2010, que substituiu do tipo penal do art. 301 o termo “delito” pela expressão “atividade delictiva”, embora acertada, mostrou-se desnecessária. Segundo ele, à época da mudança já prevalecia na jurisprudência, de forma consolidada, o entendimento de que a prova de uma infração específica era desnecessária para a responsabilização pelo crime de branqueamento de capitais. Para tanto, basta “acreditar simplemente la presencia antecedente de una actividad delictiva de modo genérico, que permita en atención a las circunstancias del caso concreto la exclusión de otros posibles orígenes”.

A Sala Segunda do Tribunal Supremo espanhol, em 28 de setembro de 2020, ao julgar o caso STS 480/2020, que envolvia duas pessoas acusadas pelo crime de lavagem de dinheiro, reiterou esse entendimento:

“En definitiva, el tipo penal de blanqueo no exige la previa condena del delito del que proceden los bienes que se aprovechan u ocultan, sino que queda integrado con la mera existencia de bienes o ganancias procedentes de un anterior delito. Y la jurisprudencia ha establecido que no es preciso acreditar una condena anterior por el delito del que proceden los bienes o dinero lavado, siendo bastante con establecer la relación con actividades delictivas y la inexistencia de otro posible origen del dinero, en función de los demás datos disponibles. Dicho de otra forma, que dados los indicios, la conclusión razonable sea su origen delictivo.”

Mesmo a despeito do consenso no âmbito europeu quanto à conveniência de adoção dessa abordagem, restava pendente de resposta uma questão decisiva: a desnecessidade de comprovação específica da infração anterior no crime de lavagem de dinheiro é compatível com os parâmetros de um processo justo?
Essa pergunta foi recentemente respondida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), Corte cujas decisões, pelo cuidado ao equilibrar os interesses de efetividade e as garantias individuais, exercem decisiva influência nos sistemas jurídicos ao redor do mundo.

Em 2017, o TEDH apreciou dois casos que tratavam da questão da descrição pormenorizada e da prova da infração anterior na imputação do crime de lavagem de dinheiro. Foram o caso Zschüschen c. Bélgica e o Caso Timmermans c. Bélgica.

Em ambos os casos, entre outros argumentos, os cidadãos Steve Mitchell Zschüschen e Marc Timmermans alegaram terem sido condenados, à luz do tipo de lavagem de dinheiro do Código Penal belga, sem que o órgão acusador tivesse descrito de forma precisa a infração antecedente geradora dos produtos. Em virtude disso, os cidadãos sustentaram violação ao direito ao processo equitativo, na medida em que foi infringido o direito a ser informado da natureza e da causa da acusação contra eles formuladas (art. 6º, § 3º, a da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).

O TEDH entendeu, quanto ao ponto, que o direito ao processo justo não foi violado. Inicialmente, mencionou a Convenção de Varsóvia, que permite a condenação pelo crime de lavagem sem que seja necessário provar as circunstâncias particulares da infração antecedente. Em seguida, observou que não é possível inferir do direito a ser informado o dever de os órgãos acusatórios narrarem com detalhes a infração antecedente, uma vez que é diverso o objeto do processo de lavagem. Na decisão que não admitiu o recurso manejado por Marc Timmermans, a Corte deixou consignado que:

4 La Cour considère que, dès lors que le requérant était poursuivi pour des faits de blanchiment d’argent, le fait que la citation se limitait à décrire les opérations servant à établir l’existence de ce délit suffisait pour permettre au requérant d’exercer ses droits de la défense. On ne saurait déduire de l’article 6 § 3 a) de la Convention une obligation de préciser en outre les activités illicites ayant généré les bénéfices qui ont fait l’objet du blanchiment en cause, ces activités ne constituant pas l’objet de l’accusation.


Como se vê, no âmbito europeu, a utilização da atividade criminosa como infração anterior não apenas é obrigatória a todos os Estados-Membros, mas já foi chancelada por cortes constitucionais nacionais e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Em relação à América Latina, embora não exista um esforço de coordenação e harmonização semelhante ao europeu, percebe-se que os países têm seguido a mesma orientação.

Nesse sentido, é possível apontar três experiências: a do México e da Colômbia, que enfrentam problemas semelhantes aos brasileiros no campo da macrocriminalidade, e da Argentina.

O art. 400 Bis do Código Penal Federal mexicano estabelece expressamente que as atividades de branqueamento são criminalizadas quando os ativos “proceden o representan el producto de una actividad ilícita”. Assim, como pontua Fidel Llamacponcca (2016), a lavagem de dinheiro no México, tal como ocorre nos Estados Unidos e no Peru, não incorpora o delito prévio como um de seus elementos objetivos. Logo, em um processo de lavagem de dinheiro no qual a origem criminosa anterior deve ser provada, não se exige a demonstração das características específicas do delito antecedente.

O mesmo ocorre na Colômbia, cujo Código Penal, em seu art. 323, disciplina o crime de lavagem de dinheiro. De acordo com a previsão típica, comete o crime de lavagem de dinheiro aquele que pratica atos de branqueamento em relação a bens que tenham sua origem mediata ou imediata em um rol de atividades criminosas. Conforme posicionamento jurisprudencial consolidado, é dispensável a comprovação das circunstâncias particulares de uma infração penal prévia, sendo suficiente demonstrar que os bens objeto da lavagem de dinheiro são provenientes de atividade criminosa. Nesse sentido é a recente decisão da Corte Suprema de Justiça da Colômbia no processo 49906, julgado em 06/05/2020:

Sobre el particular la Corte afirmó, en primer lugar, que el delito de lavado de activos es autónomo respecto de las actividades delictivas que dieron origen, mediato o inmediato, a los bienes sobre los que recae la conducta. En segundo lugar, que, por tal razón, no se requiere que exista una sentencia condenatoria por un delito en específico del que se hayan derivado dichos bienes o ganancias. Tampoco es exigible la demostración de que el delito base se cometió en específicas circunstancias de tiempo, modo y lugar. Basta con que se establezca que los bienes sobre los que recae la conducta tienen origen mediato o inmediato en alguna de las actividades al margen de la ley que enlista la norma. Tampoco se requiere que la persona a la que se le acusa por el lavado de activos haya participado en alguna de las actividades ilícitas que dieron origen a esos capitales.

Ilustrativo é o exemplo do sistema argentino. No Código Penal da Nação, o tipo de lavagem de dinheiro é previsto no art. 303. De acordo com o texto normativo, os atos de branqueamento realizados em bens provenientes de “un ilícito penal” sujeitarão os infratores a uma pena de 03 a 10 anos de prisão. Chama a atenção o fato de que, diferentemente da construção redacional de outros países, o tipo da lavagem no referido Código Penal exige que os atos de lavagem recaiam sobre bens provenientes de “um ilícito penal”. Não se usa a expressão atividade criminosa.

Não obstante, como pondera Barbier (2013), a jurisprudência argentina caminha no sentido de reputar prescindível a individualização do delito anterior para a responsabilização pelo crime de lavagem de dinheiro. De fato, a Câmara Nacional de Cassação Penal, na causa de nº 6754, julgada em 21/03/2006, decidiu que no crime de lavagem de dinheiro é suficiente “la comprobación de una actividad delictiva previa de modo genérico, que permita la exclusión de otros orígenes posibles”. Na causa de nº 30.155, julgada em 14 de julho de 2011, o mesmo entendimento foi utilizado pela Corte:

(H)a de resaltarse que la procedencia criminal de los bienes que son objeto de blanqueo sólo requiere la comprobación genérica de una actividad delictiva previa que, según las circunstancias del caso, permita la exclusión de otros orígenes posibles, sin que sea necesaria ni la demostración plena de un acto delictivo específico ni de los concretos partícipes en el mismo

Por fim, não se poderia deixar de falar dos Estados Unidos. O Money Laundering Control Act, de 1986, incluiu no U.S Code duas seções de normas que criminalizaram a lavagem de dinheiro em âmbito federal.

Analisando a norma incriminadora da lavagem de dinheiro, Scura (2013) observa que a legislação federal criminaliza as transações que envolvem produtos de atividades ilegais especificadas em lei. Do uso da expressão atividades ilegais (unlawful activity) decorre que órgão acusador não precisa indicar ou provar um crime particular do qual o produto lavado é proveniente, bastando apresentar evidências de envolvimento em atividade criminosa elencada na lei.

Ilustrativo é o Caso U.S. v. Jamieson, julgado em 2005 pela United States Court of Appeals, Sixth Circuit. O recorrente, entre outros argumentos, impugnou sua condenação pelo crime de lavagem de dinheiro por um Júri federal alegando a ausência de provas quanto à infração antecedente. O Tribunal rejeitou o pedido de reforma, aduzindo o seguinte:

This argument has no merit. Counts 2-100 of the indictment charge Jamieson with money laundering under § 1956, and the circuits have almost unanimously held that § 1956 money-laundering charges do not require the government to trace the monies to specific unlawful activity.

Reflexões para o debate brasileiro

É o momento de retornar ao exemplo hipotético do narcotraficante que escolheu o território nacional para lavar o dinheiro proveniente da venda ilegal de drogas obtido no período de um ano.

Como vimos, nos países analisados não seria necessário, para alcançar a responsabilização penal pelo crime de lavagem, narrar e provar todas as circunstâncias objetivas dos crimes antecedentes que geraram os produtos objeto de branqueamento. Em tais sistemas jurídicos, bastaria imputar como crime antecedente a atividade de tráfico de drogas de forma genérica, com a expressa indicação de que o responsável pela lavagem tinha conhecimento da origem criminosa do produto.

Não se nega que a escolha dessa abordagem, na medida em que dispensa a onerosa prova das circunstâncias particulares dos crimes antecedentes, atenua as dificuldades de provar o crime de lavagem de dinheiro. Trata-se de tensão de difícil solução: de um lado, a efetividade do combate à macrocriminalidade depende de construção dogmática que forneça respostas à altura dos desafios contemporâneos, especialmente ao problema da complexidade dos casos e das consequentes dificuldades probatórias; de outro, as garantias individuais representam uma barreira de proteção que dão significado material ao modelo processual democrático.

A solução dessa tensão em favor de mais efetividade no combate à macrocriminalidade, entretanto, não implica o abandono completo da exigência de proteção individual. A realidade, por ser muito mais complexa do que sugerem algumas narrativas maniqueístas, também permite um campo maior de consenso e composição de valores antagônicos. Não se trata de escolher entre a efetividade e o respeito aos direitos individuais. Antes disso, trata-se de buscar harmonizá-los.

A análise comparada pretendeu cumprir a missão de demonstrar que é possível incrementar a efetividade sem ignorar os reclamos por proteção individual. Europa, Estados Unidos e grande parte da América Latina, democracias consolidadas com instituições fortes e zelosas em relação à proteção de garantias fundamentais, optaram pelo caminho de facilitar o combate à lavagem de dinheiro simplificando a imputação da atividade criminosa antecedente. Isso não significa que tenham escolhido ignorar em absoluto os interesses individuais. A chancela do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, nesse particular, demonstra como o equilíbrio entre efetividade e garantia é custoso, mas não impossível de se obter.

Sem contestar a necessidade de cuidadosa discussão sobre os limites dogmáticos e possibilidades da adoção da abordagem no país, não se enxergam razões jurídicas ou políticas para que ela seja prontamente rechaçada. Se boa parte do mundo democrático, inclusive com tradição jurídica semelhante ao Brasil, adotou a ideia da suficiência da atividade criminosa antecedente genérica, motivos igualmente relevantes apontam a conveniência da adoção dessa estratégia no país. Não é demais lembrar que o Brasil é país de dimensões continentais que enfrenta agudos problemas relacionados aos crimes cometidos por grupos criminosos bem estruturados e com conexões internacionais.

É igualmente oportuno mencionar que a lavagem de dinheiro está a anos-luz de distância dos crimes ordinários praticados por Caio, Mévio e Tício. É fenômeno complexo de macrocriminalidade que envolve preparação, planejamento e cuidadosa análise de risco e de benefícios esperados. Talvez poucos crimes se adequem com tanta precisão ao modelo de análise de custo-benefício da teoria econômica do crime. No caso do branqueamento de capitais, mais do que em outros delitos, os incentivos institucionais importam.

Atualmente, diante das dificuldades fiscais do país, muito se discute sobre a necessidade de atração de investimentos privados para fazer frente aos desafios estruturais brasileiros e promover o desenvolvimento socioeconômico. O ambiente institucional saudável, como demonstram os estudos econômicos mais modernos, é fundamental para o atingimento desses objetivos. Inibir a prática do crime de lavagem de dinheiro é peça chave para contribuir com a construção de um bom ambiente institucional. Certamente, a sociedade brasileira, que em breve será chamada a rever a Lei de Lavagem de Dinheiro, não deseja atrair para o país um novo Juan Carlos Abadia.

Notas de rodapé

[1] Obtidas no seguinte endereço eletrônico do Departamento de Estado dos Estados Unidos: https://2001-2009.state.gov/p/inl/narc/rewards/39427.htm

[2]De acordo com reportagem do Jornal El País (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/04/internacional/1543936986_791292.html).

[3] Como relata o sítio Consultor Jurídico, em matéria publicada no ano de 2007 (https://www.conjur.com.br/2007-ago-31/abadia_revela_detalhes_trajetoria_depoimento).

[4] No voto dissidente no Caso Roper v. Simmons, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 2004, Scalia observou o seguinte: “To invoke alien law when it agrees with one’s own thinking, and ignore it otherwise, is not reasoned decisionmaking, but sophistry”.

[5] De acordo com o art. 13 da Diretiva, os Estados-Membros têm até 03 de dezembro para colocar em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento ao ato normativo.

Referências

BARIBIER, N. F. El lavado de activos en la Jurisprudencia Argentina. Revista Derecho Penal, n. 4, p. 33-48, 2013. Disponivel em: <http://www.saij.gob.ar/doctrina/dacf130095-barbier-lavadoactivosen_jurisprudencia.htm>. Acesso em: 26 out 2020.

CORDERO, I. B. El delito de blanqueo de capitales. Pamplona: Aranzadi, 2012.
LLAMACPONCCA, F. N. M. El Delito Fuente en el Lavado de Activos. In: LLAMACPONCCA, F. N. M. Temas de Derecho Penal Económico: Empresa y Compliance. Anuario de Derecho Penal 2013-2014. Lima: Pontifcia Universidad Católica del Perú. Fondo Editorial, 2016. p. 293-357.
SCURA, K. Money laundering. American criminal law review, v. 50, n. 4, p. 1271-1298, 2013.

* Vítor Cunha é procurador da República e doutorando em processo penal pela Universidade de São Paulo (USP)

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