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Autonomia universitária e Ministério Público

A efetiva criação de universidades no Brasil é um fenômeno recente, ocorrido a partir da década de 30 do século 20, com o que não contamos com 100 anos de história universitária no Brasil[1].

Parece um curto tempo de existência se compararmos com as Universidades europeias já existentes há 800 anos (ou mais), ou ainda se comparado com países vizinhos na América: Universidade do México em 1553, Universidade de São Marcos de Lima em 1555, Universidade de Córdoba em 1613, ou ainda Harvard em 1636 ou Yale em 1701 e Princeton em 1746.

Contudo, apesar da “juventude” de nossas Universidades brasileiras, se compararmos seus indicadores de pesquisa e de produção intelectual, veremos que nossas Universidades apresentam níveis semelhantes às grandes Universidades mundiais. E se formos comparar os orçamentos disponíveis, certamente se constatará que nossas Universidades produzem com muito menos recursos.

O ponto que queremos tratar, contudo, é a Autonomia Universitária, um aspecto fundamental para que as Universidades possam efetivamente cumprir seu papel e finalidade constitucional.

Para que se possa compreender a importância da Autonomia Universitária, foi com base nela que as Universidades brasileiras, mesmo antes da previsão em lei, puderam instituir e garantir a implementação de política de ação afirmativa com a reserva de quotas de vagas para negros e indígenas, ou ainda, ampliar esses programas para atingir outros segmentos em vulnerabilidade social e historicamente discriminados. É com base nessa mesma autonomia que as Universidades brasileiras hoje podem (e devem) garantir política de ação afirmativa em cursos de mestrado e doutorado.

Diga-se que esse princípio da Autonomia Universitária é reconhecido pelo menos desde 1231 (século XIII), quando o Papa Gregório IX, através da Bula Parens Scientarum, garantiu e confirmou a autonomia da Universidade de Paris, a qual havia feito uma greve em 1229 para assegurar esse direito. E ali estava já presente claramente a autonomia de fazer seus próprios regulamentos, de garantia da liberdade de expressão e de cátedra dos seus professores, bem como de liberdade sobre a definição dos conteúdos de suas disciplinas.

Dada a recente criação das Universidades no país, deve-se dizer que a Autonomia Universitária foi assegurada constitucionalmente somente em 1988, com a afirmação no seu art. 207 de que as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.

Antes disso, tivemos essa afirmação na Lei de Diretrizes e Bases de 1961, princípio esse que foi revogado em 1969 por um Decreto-Lei, já durante o regime de ditadura civil-militar instaurado em 1964. Ou seja, a Autonomia  Universitária mostrava-se incompatível com um regime que não aceitava a liberdade de pensamento e de sua expressão.

Desde a redemocratização do país e da Constituição de 1988 tivemos um longo período em que não se debateu essa autonomia. Recentemente, contudo, algumas situações acabaram por violar essa previsão constitucional de Autonomia Universitária e que demandaram atuações pelo Ministério Público Federal. Vamos referir três delas aqui.

primeira situação resultou de representações e ajuizamento de ações populares que buscavam impedir que as Universidades realizassem cursos e disciplinas com a denominação de “Curso sobre o Golpe”, em referência ao processo de afastamento da Presidenta Dilma Roussef.

Na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, chegou representação formulada por Deputado Federal, a qual foi de pronto arquivada pelo fundamento da Autonomia Universitária, usando-se inclusive o precedente do Supremo Tribunal Federal no HC n. 40.910/PE (Ministro Victor Nunes Leal, julgamento em , em 24 de agosto de 1964), que diz o seguinte[2]:

“Se o professor foge do programa, se falta ao seu dever de professor, os órgãos universitários que o admoestem, pelos meios próprios, que o advirtam para não empregar o tempo de suas lições em assuntos   de outra disciplina, ou que não devessem ser tratados na Universidade. Mas tudo isso deve ser resolvido no âmbito da Universidade”.

“Os riscos da liberdade do pensamento universitário são altamente compensados com os benefícios que a Universidade livre proporciona ao povo, ao desenvolvimento econômico do País, ao aperfeiçoamento moral e intelectual da humanidade”.

E assim quer a Constituição, porque além de consagrar a liberdade de pensamento em geral, também garantiu, redundantemente, a liberdade de cátedra (art.168, VII). Concedo a ordem. (Grifo nosso)

Referido arquivamento foi mantido nas instâncias de revisão interna do Ministério Público Federal e posteriormente seus fundamentos também foram adotados em sentença judicial proferida em Ação Popular ajuizada perante a Justiça Federal do Rio Grande do Sul (Ação Popular nº 5009227-87.2018.4.04.7100 – 1ª Vara Federal de Porto Alegre[3]).

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal veio a confirmar que a Autonomia Universitária garante o direito das Universidades a realizarem os seus cursos, definindo as suas temáticas, permitindo assim a realização de curso sobre o Golpe na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), nos termos da decisão proferida na Reclamação nº 39.089.

Uma segunda situação, já ligada à violação da Autonomia administrativa das Universidades, diz respeito à extinção de funções comissionadas no âmbito das Universidades Federais e institutos Federais por meio do Decreto Presidencial nº 9.725, de 12 de março de 2019.

Tratou referido decreto de extinguir cargos e funções, inclusive ocupados, afrontando também a expressa disposição constitucional do art. 84, VI, b (extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos).

Importante referir que se tratava de inúmeros cargos com um valor mensal individual extremamente baixo (na faixa de até R$ 200,00 por mês), com uma economia global que chegava a ínfimos 0,05% do orçamento das instituições de ensino, mas cargos e funções com grande relevância administrativa: chefia de bibliotecas, chefias de setor de licitações, entre outras inúmeras atividades, e que gerariam, se extintos, uma parca economia e uma grande dificuldade administrativa, até mesmo para atividades rotineiras, como a ausência de chefias para controle de cumprimento de ponto.

Ajuizada Ação Civil Pública no Rio Grande do Sul[4], obteve-se liminar e sentença para impedir a extinção dessas funções comissionadas, e em atuação coordenada nacionalmente pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, foram propostas inúmeras Ações Civis Públicas em âmbito nacional, obtendo-se liminares e decisões favoráveis à Autonomia Universitária na esmagadora maioria dos casos, com o que se preservou nesse ponto a Autonomia administrativa das Universidades.

Por último, uma terceira atuação de grande relevância partiu diretamente da Procuradora-Geral da República com o ajuizamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Federal, distribuída ao STF sob nº 548, e que teve a seguinte decisão cautelarmente deferida pela Ministra Carmen Lúcia:

“para suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos, emanados de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos”.

Para que se tenha uma ideia dos atos que se obstavam, pode-se citar a retirada de faixa de campus universitário com a inscrição “Direito Uerj Antifascismo”, proibição de aula pública referente ao tema “Esmagar o Fascismo”, retirada de faixas em homenagem à vereadora Marielle Franco, ou de impedimento de assembleias estudantis ou de professores com temas intitulados “contra o Fascismo, a Ditadura e o Fim da Educação Pública”.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, instado por ação proposta pela Procuradoria-Geral da República, concedeu liminar em decisão monocrática, referendada à unanimidade pelo demais Ministros do STF e, recentemente em 15 de maio de 2020, julgada definitivamente procedente, garantindo e dando ampla interpretação à Autonomia Universitária, inclusive como garantia fundamental do Estado Democrático e de Direito.

Essas atuações pelo Ministério Público Federal respaldam-se em seu papel constitucionalmente previsto como garantidor da ordem democrática e dos direitos constitucionais, entre eles o de liberdade de expressão como valor fundamental de nossa República.

Importante reafirmar que a Autonomia Universitária é essencial para as Universidades mas, e ,sobretudo, fundamental para a própria democracia brasileira como garantia de espaços livres para criação, pesquisa e produção de conhecimento necessários à construção do Brasil projetado no art. 3º de nossa Constituição, que deve se constituir em uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e livre de preconceitos ou de qualquer forma de discriminação.

Referências

[1]Embora tenhamos já no século XIX a instituição de alguns cursos superiores no Brasil, estes não se caracterizam como Universidades.

[2]A integra da decisão de arquivamento pode ser conferida em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/educacao/atuacao/arquivamento-de-representacao-sobre-curso-o-golpe-de-2016-e-a-nova-onda-conservadora-do-brasil

[3]https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/662582376/sentenca-de-improcedencia-em-acao-contra-o-curso-da-ufrgs-o-golpe-de-2016-e-a-nova-onda-conservadora-no-brasil-acata-parecer-do-mpf

[4]Ação Civil Pública nº 5043209-58.2019.4.04.7100/RS – 10ª Vara Federal de Porto Alegre.

* Artigo publicado originalmente no site Jota

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