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Direito à saúde e amianto: a fibra do diabo em Bom Jesus da Serra

A busca ilimitada do homem pelo progresso, mesmo à custa de valores que forjaram a nossa sociedade, já foi bem retratada em muitas obras. Na que é talvez a mais famosa, Goethe descreve o acordo entabulado entre Fausto e o Diabo – Mefistófeles –, que permite ao primeiro personagem adquirir extenso patrimônio.

Na terceira cena do quinto ato, Mefistófeles relata a Fausto como se livrou de dois anciães que representavam uma barreira ao anseio desenvolvimentista do personagem principal, relatando a ele que “[d]eles livramos-te num triz/não sofreu muito o par vetusto/caiu sem vida, já, com o susto”[1].

Antes, Linceu, que observava a ação destrutiva do alto da Torre, afligiu-se com a situação e, em referência também a agressão a natureza, expressou seu descontentamento: “[O] que a vista deliciava, com os séculos se foi” [2]. Idêntico desalento sente quem acompanhou a saga da exploração do amianto em Bom Jesus da Serra.

Bom Jesus da Serra é um município baiano, distante 395 km de Salvador. Em 1936, no então vilarejo de Bom Jesus da Serra, Hipólito Pujol descobriu uma jazida de amianto, que, por aproximadamente três décadas, foi a principal fonte de abastecimento do mercado nacional. A partir de 1940, a jazida passou a ser explorada comercialmente pela empresa Sama Minerações Associadas Ltda.

A exploração da mina se fez sem observância de normas de segurança que pudessem evitar ou minorar os impactos à saúde decorrentes da exposição dos trabalhadores ao amianto. As suas famílias foram inadvertidamente expostas ao minério, seja na forma de resíduos conduzidos até as suas residências, seja na forma de brita utilizada para construção civil, ornamentos de decoração ou, simplesmente, impregnados nas vestes dos trabalhadores.

Com o exaurimento da mina e a descoberta da jazida de Canabrava, em Minaçu/GO, a área foi abandonada e as atividades minerárias formalmente encerradas em 24/04/1971. As marcas de quase quatro décadas de exploração desabrida ficaram. A paisagem, a flora, o solo e o relevo foram degradados em razão de escavações e detonações. Os rejeitos foram lançados a céu aberto. Um vale artificial, com encostas íngremes e instáveis, foi deixado.

O abandono de pilhas de rejeito de mineração (serpentino) no local, sem nenhum controle, gerou o inconveniente da sua utilização – sem qualquer atenção às cautelas necessárias – na construção civil. Há relatos de seu emprego até mesmo na pavimentação da estrada que liga Bom Jesus da Serra a Poções.

A gravidade da situação foi levada ao conhecimento do Ministério Público do Estado da Bahia e, posteriormente, do Ministério Público Federal, a partir de 2000, por meio de representações formuladas pela Associação Brasileira do Amianto Crisotila e pela Comissão de Proteção ao Meio Ambiente da Assembleia Legislativa da Bahia.

Para apuração dos fatos, foram instaurados três inquéritos civis, depois reunidos, nos quais foram coletadas diversas provas, especialmente depoimentos de potenciais vítimas, compilação de cópias de exames médicos, relatórios de vistorias e laudos periciais.

Nesse contexto, são de grande importância, pelo rigor científico e riqueza de detalhes, os relatórios e laudos produzidos pelo IBAMA[3], DNPM[4], SRH[5], CRA[6], CESAT[7], Fundação José Silveira[8], Fundacentro[9] e Ceama[10].

Com fundamento nesses dados todos, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado da Bahia uniram esforços e ajuizaram, no primeiro semestre de 2009, duas ações civis públicas, uma tendo por propósito a reparação dos danos ambientais, e outra o amparo à saúde das vítimas da exposição ao amianto.

Para sua identificação, optou-se pela realização, no curso do próprio processo, de uma busca ativa. Para esse trabalho foi fundamental a capacitação de agentes comunitários de saúde, feita pelo CESAT e pelo CEREST[11].

Em 2019, ambas as ações foram sentenciadas pela Justiça Federal em Vitória da Conquista/BA. Na ação ambiental, a Sama S.A. e a Saint-Gobain do Brasil foram condenadas ao pagamento de R$ 31.423.370,00 a título de danos morais coletivos, além das seguintes obrigações: realocação topográfica das pilhas de rejeito, afixação de placas de advertência, demolição e reconstrução de edificações erguidas com rejeitos; e implementação de plano de recuperação de área degradada.

Na ação da saúde, a Sama S.A. foi condenada a fornecer plano de saúde; depositar mensalmente a quantia de um salário mínimo e meio aos contaminados; e a pagar danos morais no valor de R$ 150.000,00, além de fornecer todos medicamentos e equipamentos necessários ao eventual tratamento de pacientes acometidos de doença associada ao amianto.

As sentenças foram impugnadas pelas rés. Até o momento, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região apreciou apenas um dos dois recursos, oportunidade em que alterou pontos essenciais do julgamento proferido em primeiro grau.

Foram excluídas da condenação algumas das obrigações destacadas acima, em especial, a realocação topográfica das pilhas de rejeito, afixação de placas de advertência, demolição e reconstrução de edificações erguidas com rejeitos.

Nada obstante, resultados concretos foram alcançados, especialmente na ação da saúde.

Inicialmente, apenas onze pessoas haviam sido identificadas com alguma alteração de saúde em razão da exposição ao amianto. Posteriormente, o Ministério Público Federal teve acesso a avaliações individuais realizadas em pesquisa desenvolvida em conjunto pela Universidade de São Paulo, Universidade Federal de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas, que permitiram a extensão das obrigações impostas na sentença a mais 38 trabalhadores, em razão do desenvolvimento de placas pleurais ou câncer associado ao amianto.

Atualmente, todos eles gozam de plano de saúde e pensão de alimentos provisionais no valor de um salário mínimo e meio. Em nome de todos eles, o Ministério Público Federal requereu também a habilitação do crédito individual de R$ 150.000,00 na recuperação judicial da Eternit (controladora da Sama S.A.) em andamento na Justiça Estadual de São Paulo.

O trabalho ainda não foi encerrado. O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho, em conjunto com as Prefeituras de Vitória da Conquista, de Poções, de Bom Jesus da Serra, e Planalto, além da CESAT e do CEREST, continuam a busca ativa de expostos ambientais ou laborais que desenvolveram alguma doença associada ao amianto. A nocividade do produto e o período de latência entre a exposição a ele e o surgimento de alguma alteração de saúde impõem atenção constante.

Por sua resistência a altas temperaturas e pelos riscos que o envolvem, o amianto tem o triste apelido de “fibra do diabo”. Todavia, nas palavras de Riobaldo, nosso Fausto da Caatinga, “[o] diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia” [12].

É contra a atuação deletéria do homem em Bom Jesus da Serra que o outrora conivente Estado brasileiro passa a agir, desincumbindo-se do dever de restaurar o meio ambiente e a saúde degradados.

Referências

[1] V. 11.360/11.362.

[2] V. 11.336-11.337.

[3] Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, autarquia federal.

[4] Departamento Nacional de Produção Mineral, autarquia federal.

[5] Superintendência de Recursos Hídricos, hoje absorvida pelo INEMA – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, autarquia estadual.

[6] Centro de Recursos Ambientais, também absorvido pelo INEMA.

[7] Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador, órgão integrante da estrutura da SESAB – Secretaria de Estado da Saúde da Bahia.

[8] Importante entidade filantrópica baiana, sem fins lucrativos, de natureza científico-cultural. Maiores informações: <www.fjs.org.br>.

[9] Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, tutelada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

[10] Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, órgão integrante da estrutura do Ministério Público do Estado da Bahia.

[11] Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Vitória da Conquista, órgão integrante da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória da Conquista, componente do SUS.

[12] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 624.

* Artigo publicado originalmente no site Jota

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