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Epitáfio, ou a vitória da derrota

Em 17 de novembro de 2016, o noticiário amanheceu com mais uma fase da Operação Lava-Jato, mas dessa vez conduzida pela Força-Tarefa do Rio de Janeiro: era a Operação Calicute, que descortinou um gigantesco esquema de corrupção e lavagem de dinheiro no governo do estado, liderado pelo ex-governador Sérgio Cabral. Ele foi apontado como chefe da organização criminosa que recebia vantagens indevidas para garantir contratos com o estado.

À época, não se tinha ainda muita noção do tamanho da organização criminosa que se começava a investigar, a infinitude de atos criminosos praticados ou mesmo as altas cifras movimentadas.

Tampouco se imaginava que as promissoras investigações sofreriam tantos reveses no sistema de (in)Justiça penal brasileiro. Ali ainda se acreditava que os rumos da responsabilização penal de crimes do colarinho branco, enfim, tomariam direção diversa da impunidade.

De lá para cá, muita coisa mudou.

No dia 31 de março de 2021, se encerrou formalmente a Força-Tarefa do Rio de Janeiro. Após quase cinco anos de investigações, o grupo de procuradores designados para auxiliar o titular de um caso de porte inédito no MPF/RJ se dissolveu, deixando um legado de conquistas que expuseram sórdidas feridas talhadas sobre a coisa pública no estado.

Foram 55 fases deflagradas, com 806 buscas e apreensões, 264 prisões preventivas, 70 prisões temporárias, 105 denúncias, 894 denunciados. O valor requerido para reparação de danos ultrapassa 11 bilhões de reais. Até agora, foram condenadas em primeira instância 183 pessoas.

Mas o trabalho foi além da primeira instância. Quando se fala que os procuradores do Rio investigaram pessoas com foro por prerrogativa de função, é verdade. Por delegação da Procuradoria-Geral da República, alguns de nós, procuradores, auxiliamos nas apurações que alcançaram três governadores, sendo 2 deles em pleno exercício do mandato, diversos secretários de estado, deputados estaduais e federais, conselheiros do Tribunal de Contas, servidores públicos, empresários, juízes, promotores, desembargadores, advogados.

Não por acaso, a dissolução se dá em momento de ataques a procuradores, em movimento que pretende não só apagar certos resultados significativos, mas converter-nos em investigados.

A reação que pretende deslegitimar esse trabalho, por ter chegado longe demais, é covarde e se aproveita de um momento triste da Humanidade. Abalada pela pandemia e descrente de instituições democráticas, a sociedade assiste anestesiada aos retrocessos pululantes e ao restabelecimento do status quo que pouco incomodava camadas mais poderosas da sociedade.

Parafraseando Darcy Ribeiro, a força-tarefa fracassou em quase tudo que tentou.

Tentamos mitigar a corrupção sistêmica instalada no governo do Rio, mas as denúncias contra o governador Wilson Witzel mostram que fracassamos. Tentamos apontar a gravidade dos crimes de corrupção cometidos por agentes políticos e particulares, mas a transferência de casos para a Justiça Eleitoral talvez sinalize que falhamos. Tentamos conscientizar para a necessidade de aprimoramento do sistema processual penal, mas os retrocessos legislativos mostram que fracassamos. Tentamos demonstrar que as prisões para a garantia da ordem pública não podem se restringir a pretos e pobres, mas sucessivos habeas corpus concedidos provam que falhamos.

Mas nossos fracassos são nossas vitórias. Detestaríamos estar no lugar dos que nos venceram.

* Felipe Bogado é procurador da República integrante da Força-Tarefa do RJ

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