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Lava Jato e a política externa

Operação Lava Jato atravessou fronteiras. Tornou-se, possivelmente, o maior caso de corrupção do mundo.

Pelo menos 17 países, a maioria na Europa, fizeram pedidos de cooperação ao Brasil até janeiro. Muitas conexões internacionais foram tornadas públicas pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

 

Ao lado do Ministério Público Federal e das autoridades suíças, os americanos assinaram um grande acordo com o grupo Odebrecht em 2016, que produziu por sua vez uma nova onda de investigações.

 

Nesse contexto, nosso procurador-Geral da República se reuniu em Brasília em fevereiro com uma dezena de procuradores estrangeiros para discutir o fluxo de informações.

Diante da internacionalização da Justiça, que se segue à expansão global das empresas brasileiras nas décadas passadas, não há dúvida de que a Lava Jato afetará a política externa. Hoje a questão consiste em saber se a revelação sem precedentes das relações criminosas entre poder político e econômico será um ativo ou um passivo em nossas relações com outros países.

 

Nem sempre é muito claro o sentido desse impacto. Tomemos o exemplo do Peru. Na opinião pública de nosso vizinho, faz-se sentir um sentimento antibrasileiro, que chega até mesmo a sugerir que o Brasil, por ter se beneficiado indiretamente da farra, deveria indenizar os prejuízos causados pela corrupção do outro lado da fronteira amazônica.

 

A lógica dessa reação nada tem de complexa. Como a projeção internacional de grandes empresas foi patrocinada com entusiasmo pelo governo brasileiro 12 anos que precederam a Lava Jato, parece quase inevitável associar a corrupção à estratégia de criação de multinacionais verde-amarelas que tiveram grandes lucros com o investimento em propinas.

Esse dano de imagem se agrava com as dificuldades jurídicas e operacionais de dar uma pronta resposta a todos os pedidos de cooperação jurídica.

Entretanto, para além dos problemas, que são temporários, há um aspecto positivo e duradouro na Lava Jato que, bem explorado, pode não só contornar as dificuldades atuais, mas também auxiliar a política externa a consolidar o papel do Brasil no mundo.

Não obstante o peso econômico, o imenso território e a grande população, o Brasil se apoia no plano internacional mais sobre o soft power do que sobre fatores reais de poder.

A Lava Jato pode ampliar a influência brasileira e dar mais densidade a relações bilaterais e multilaterais por meio de três caminhos principais, geradores de soft power, que se abrem com a investigação. A fim de que sejam aproveitadas ao máximo as consequências positivas da operação para a política externa, será preciso um esforço do Poder Executivo e do Congresso Nacional, seja no sentido de não por em risco o legado da Lava Jato, seja na busca de aperfeiçoar a legislação nacional.

Além disso, a diplomacia tem um papel decisivo na utilização dos novos recursos oferecidos pelas investigações para melhorar a imagem do Brasil no exterior e obter benefícios concretos para o País.

A primeira e inevitável consequência: o fortalecimento da cooperação jurídica internacional. Em virtude da excelência da Lava Jato, o Brasil se apresenta como parceiro extremamente confiável e preparado aos olhos das autoridades estrangeiras.

Esse processo teve início há alguns anos, sofreu algumas interrupções e recuos, porém agora começa a explodir em frutos. Para não desperdiçar o momento favorável, a política exterior do Brasil deve aprofundar as relações com os principais parceiros atingidos direta ou indiretamente pelas descobertas da Lava Jato, inclusive mediante cooperação técnica.

A maior cooperação implica também iniciar a revisão de tratados obsoletos em matéria criminal, celebrar acordos mais modernos e apoiar as iniciativas internacionais responsáveis das autoridades brasileiras que atuam na operação.

São muito claros os ganhos dessa estratégia. Se, de um lado, recuperar dinheiro ocultado e obter provas no exterior pode se tornar mais fácil, de outro o Brasil pode encontrar nesse percurso oportunidades para a formação ou consolidação de alianças.

Por meio da cooperação jurídica internacional, será possível alinhar ainda mais o interesse nacional com os de nossos parceiros, uma vez que o tema – sobretudo no que se refere ao tráfico de drogas, aos crimes fiscais, à lavagem de dinheiro, ao terrorismo e seu financiamento – está no topo das prioridades da comunidade internacional.

A segunda consequência é a melhora do ambiente de negócios. Ao desmontar um esquema gigantesco de corrupção e cartel, e assim revolucionar a governança de grandes grupos econômicos, a Lava Jato cria condições para uma competição mais saudável nos setores de energia e infraestrutura, reduzindo custos e incentivando a entrada de concorrentes.

A política externa pode usar essa plataforma para promover o Brasil como um país que luta para abandonar práticas espúrias e impor padrões elevados de comportamento a suas empresas – tanto aqui quanto no exterior. Desse modo, pode-se potencializar a capacidade de atração de investimentos e reduzir eventual resistência à expansão global das companhias brasileiras.

Por fim, o Brasil ganha um novo item de exportação, com o prestígio a ele associado. Nós conseguimos operar, não sem dificuldades, um modelo razoavelmente bem-sucedido de independência e qualificação técnica dos magistrados do Ministério Público (estes, dotados de poderes de investigação) e do Poder Judiciário. Trata-se de uma lenta e paciente construção institucional, cuja eficácia, apesar dos defeitos conhecidos, está à mostra com os espantosos resultados da Lava Jato.

Nossa experiência, em que pese à necessidade de reformas profundas em alguns pontos sistema de justiça criminal, em especial na estrutura das polícias, na política penitenciária e na questão das drogas, pode servir de exemplo para outros países no combate à corrupção.

A possibilidade de exportar nosso sistema não seria algo novo. Há uma longa história de comércio jurídico brasileiro. Para ficar no século 19, e apenas em um ramo do direito, o Esboço do Código Civil, de autoria do genial baiano Augusto Teixeira de Freitas, influenciou decisivamente o Código Civil argentino e várias outras codificações.

As lições da Lava Jato valem agora sobretudo para aqueles que têm problemas semelhantes de promiscuidade entre agentes públicos e privados, muitos dos quais naturalmente olham agora para o Brasil em busca de inspiração e soluções para seus desafios.

Não fosse o bastante, a defesa da independência judicial e do rule of law pelo Brasil nos foros internacionais, por ter lastro visível na realidade, reveste-se de um novo sentido, com mais consistência e credibilidade.

Nem tudo, claro, serão flores no caminho. Além de possíveis abalos em relações bilaterais, os espinhos aparecem na forma de uma queda brutal da posição do Brasil nos índices de percepção da corrupção (que ensaiam, contudo, uma recuperação), sem mencionar a gravidade da crise política, que turva a visão estrangeira sobre o País.

A forte polarização da sociedade brasileira mobiliza redes de apoio internacionais de um e de outro lado, o que também pode prejudicar a transformação da Lava Jato em ativo por meio da política externa. Tudo isso exige atenção para se fazer uma defesa adequada das instituições contra eventuais acusações levianas. É importante lembrar ainda que, enquanto não ocorrer a retomada do crescimento econômico, os efeitos da melhora do ambiente de negócios ficarão mais ou menos em suspenso.

Entretanto, o maior limite ao círculo virtuoso, que pode frear o impulso dado pela maior investigação de corrupção da História às relações internacionais do Brasil são as ameaças ao êxito da Lava Jato, por ação ou omissão.

Defender a operação – sem abrir mão de críticas justas e bem fundamentadas – é também defender o interesse nacional em sua acepção mais rigorosa. Fazer do limão da corrupção uma limonada na política externa exige nada menos do que o sucesso absoluto das investigações e dos processos, com a condenação dos culpados, a absolvição dos inocentes, o cumprimento rigoroso das penas impostas pelos juízes, a recuperação mais ampla possível dos valores roubados e, no mínimo, a manutenção da legislação que permitiu levantar o tapete sob o qual se escondia toda a sujeira.

É o exemplo nossa maior bandeira.

* Angelo Augusto Costa é procurador da República em São José dos Campos.

*Este artigo é de autoria de colaboradores do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o Huffington Post é um espaço que tem como objetivo ampliar vozes e garantir a pluralidade do debate sobre temas importantes para a agenda pública.

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