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Moïse Kabagambe e as duas Tropicálias

Até pouco tempo atrás, a menção à palavra Tropicália nos remeteria ao movimento artístico que projetou à fama gênios como Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Rita Lee, além de revolucionar a cena musical brasileira dos anos 1960.

No último dia 24 de janeiro de 2022, isso mudou. A palavra passou a designar também o palco de uma tragédia.

No quiosque Tropicália, instalado na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi espancado por três homens. Submetido a socos, chutes e pauladas, o jovem não resistiu às agressões, agonizando por 10 minutos no calçadão, com as mãos amarradas, antes de falecer.

Segundo seus familiares, o rapaz havia ido ao estabelecimento cobrar diárias atrasadas por serviços prestados anteriormente. A dívida seria de R$ 200.

Moïse era migrante e negro. Essas duas características são fundamentais para compreender melhor as circunstâncias de sua morte.

Observando o aspecto migratório, Moïse chegou ao Brasil em 2011, fugindo da República Democrática do Congo, sua terra natal. Temia ser morto em seu país, devido a conflitos étnicos que lá persistem até hoje. Deixou seu lar em busca de segurança e oportunidades em outra nação.

O Estado brasileiro reconheceu Moïse como refugiado em 2014. Isso significa que, à exceção de votar e ser votado, o jovem tinha as mesmas prerrogativas de qualquer cidadão brasileiro. Entre elas o direito à educação, ao trabalho digno, à segurança e à vida.

Tais direitos não lhe foram totalmente garantidos aqui. Embora falasse quatro idiomas (português, francês, lingala e um pouco de inglês) e tivesse estudado até o segundo ano do ensino médio, ele jamais conseguiu inserção no mercado formal de trabalho.

No quiosque Tropicália, de forma bastante precária, recebia diárias para vender comidas e bebidas aos frequentadores da praia. Suas condições de trabalho eram tão frágeis que se encontram sob investigação do Ministério Público do Trabalho ( MPT ).

A situação de Moïse ilustra a de milhares de outros refugiados no Brasil, que carecem de políticas públicas consistentes para seu efetivo acolhimento em nossa sociedade.

Boa parte desses migrantes possui nível de escolaridade superior à média nacional - caso dos congoleses residentes no Brasil, que, em sua maioria, concluíram o ensino médio, sendo que parte deles tem curso superior -, mas não consegue encontrar colocações compatíveis com suas habilidades.

Um levantamento do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), feito principalmente com migrantes de Angola, Colômbia, Congo e Síria, revelou que quase 84% deles haviam completado o ensino médio e 34% concluíram o ensino superior. Mesmo assim, os empregos mais comuns destinados a essas pessoas são trabalhos braçais.

Além da ausência de políticas públicas, o problema laboral dos refugiados deve-se ao crescimento da xenofobia em nosso país. Muitos deles não são formalmente contratados por serem vistos como menos instruídos ou civilizados, especialmente os oriundos do continente africano. Mesmo quando conseguem uma colocação, têm salários menores ou volumes de trabalho maiores do que os de outras pessoas com idênticas funções. Em boa parte dos casos, esses estrangeiros são superexplorados exatamente por sua condição de migrantes, como se fossem uma espécie de "cidadãos de segunda categoria".

Note-se que o não aproveitamento desses recursos humanos capacitados redunda em prejuízo dobrado. O Brasil deixa de contar com profissionais capazes, enquanto os migrantes deixam de ter oportunidades de avanço em nosso país.

A existência de políticas públicas destinadas aos migrantes poderia minimizar essa perda duplicada. Infelizmente, o governo brasileiro age na contramão do estabelecimento de tais ações.

Em dezembro de 2018, o Brasil - junto de outras 163 nações - foi signatário do Pacto Global para Migração Segura, Regular e Ordenada, um acordo estabelecido pela ONU para trazer mais dignidade e segurança aos migrantes.

O objetivo do acordo é permitir uma discussão em nível mundial quanto às questões migratórias, além de criar meios de intercâmbio de informações sobre os migrantes, de forma a aumentar a proteção às massas de pessoas deslocadas de suas terras natais.

Ocorre que, menos de um mês após a assinatura do pacto, o atual governo retirou o Brasil do acordo, alegando questões de soberania nacional.

Tal argumento mostra-se totalmente infundado, uma vez que o texto do acordo explicita, entre seus princípios, o direito soberano dos Estados de determinar suas políticas migratórias, bem como de administrar a migração dentro de sua jurisdição, em conformidade com a lei internacional.

Ao subtrair-se desse ajuste, o governo brasileiro deixa de participar de um importante fórum de debates sobre migrações, e, por conseguinte, deixa também de influir em regulamentos internacionais sobre esse tema. Isso tem o potencial de afetar negativamente a vida dos 4,2 milhões de brasileiros em terras estrangeiras, já que não há quem os represente nessas discussões.

A falta de participação em um espaço internacional tão importante também empobrece os meios para lidar de forma eficiente com o 1,3 milhão de estrangeiros estabelecidos aqui. Essa ausência de intervenção estatal na proteção dos direitos dos migrantes tem produzido efeitos cada vez mais deletérios.

Entre esses efeitos está o aumento da animosidade contra os refugiados em terras brasileiras. Há discriminação por causa do sotaque, da origem e da cor da pele.

O tom da pele nos traz de volta à morte do jovem Moïse Kabagambe: é impossível não cogitar o vínculo entre o seu assassinato e o racismo estrutural arraigado em nossa cultura. A forma como o rapaz foi espancado remete às punições aplicadas aos escravos da época colonial.

A agressão selvagem contra Moïse foi levada a cabo por três homens em uma via pública, usando até mesmo um taco de beisebol, em um horário no qual havia pessoas na rua. Houve testemunhas do ocorrido, mas a vítima não recebeu socorro. Ninguém interrompeu a ação dos agressores.

Os atacantes justificaram a violência, alegando que Moïse estava alterado, tentando retirar bebidas do freezer do quiosque e ameaçando funcionários e clientes do local. Um deles chegou a afirmar que bateu no rapaz "para extravasar a raiva" que sentia dele.

Testemunhas afirmam que os agressores alegaram que estavam dando um "corretivo" em Moïse por roubar.

Analisando as circunstâncias do assassinato de Moïse, é difícil não traçar um paralelo com o caso de João Alberto Silveira Freitas, morto em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra. Beto, como era conhecido pelos amigos, foi espancado brutalmente por seguranças da rede Carrefour de supermercados, após se desentender com uma funcionária do estabelecimento. Ninguém impediu as agressões, que culminaram com a morte da vítima por asfixia.

Em comum, além da selvageria das agressões e da falta de auxílio aos espancados, há o fato de Moïse e João Alberto serem pessoas negras.

Outra conexão entre os dois casos é associar os espancamentos a uma conduta prévia das vítimas, de forma a justificar o emprego da violência exacerbada, culpando os agredidos pelo resultado final. No caso de Moïse, um suposto estado alterado e uma alegada tentativa de furto; no de João Alberto, um desentendimento com uma funcionária e um soco desferido por ele em um dos seguranças. Nas duas situações, não há como justificar o assassinato desses dois seres humanos.

Nossa estrutura social tem normalizado a agressão contra os negros de maneira assustadora. A população negra é desproporcionalmente afetada pela violência neste país, seja ela causada por particulares ou por agentes públicos.

Em 2020 o Brasil ultrapassou a marca de 50 mil mortes por violência intencional. Mais de 76% das vítimas eram pessoas pretas. No mesmo ano, as intervenções policiais causaram mais de 6.000 mortes em território nacional. Perto de 80% dos mortos eram negros. A chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é duas vezes e meia maior do que a de uma pessoa não negra.

As mortes de Moïse e de João Alberto infelizmente fazem parte de um padrão há muito disseminado em nossa sociedade, o de que as vidas negras valem menos, ou, como bem colocou a saudosa Elza Soares, de que a carne mais barata do mercado é a carne negra.Essa herança de nosso período colonial precisa ser extinta. Os conceitos de igualdade universal entre as pessoas, bem como o de respeito à vida devem predominar neste país.

Tanto a questão da igualdade quanto a da preservação da vida estão entre os pontos defendidos pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público da União (MPU) voltado à defesa dos direitos humanos.

A PFDC mantém diversos grupos de trabalho (GTs) destinados a temas específicos de direitos humanos. Dois deles ocupam-se das questões que levaram à morte de Moïse Kabagambe: o que trata de Migração e Refúgio e o que cuida do Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial. Ambos os grupos buscam criar um país mais equânime, independentemente de nacionalidades e tons de pele.

É importante destacar a atuação do GT de Combate ao Racismo no caso João Alberto Silveira Freitas. O grupo de trabalho acompanhou de perto os desdobramentos do processo, cujo acordo resultou em dezenas de milhões de reais destinados à luta contra a discriminação racial.Vale notar que os Ministérios Públicos estaduais e federal estão apurando todos os aspectos do assassinato de Moïse Kabagambe. A PFDC tem acompanhado atentamente o desenvolvimento desses trabalhos, em especial no que tange às violações de direitos humanos associadas ao caso.A morte de Moïse demonstra que ainda falta muito para livrar o Brasil de eventos racistas ou xenófobos. Eles só irão acabar quando houver a implantação de uma cultura de direitos humanos em nosso país.

Para isso, é fundamental mudar a mentalidade de boa parte dos brasileiros. A ideia de que um suposto ladrão merece ser espancado ainda seduz muita gente. Esse tipo de pensamento leva à morte de pessoas inocentes, como Moïse e João Alberto, ou até mesmo de pessoas culpadas, mas cujo crime não mereceria punição tão grave.

Vale lembrar que nossa Constituição veda a pena de morte em tempo de paz, bem como o emprego de penas cruéis às pessoas condenadas por um crime. O que dizer então de uma pessoa apenas suspeita de ter praticado um delito?

Há quem argumente que esses dispositivos constitucionais servem apenas para proteger criminosos, mas é importante deixar claro que o direito a uma punição civilizada é extensivo a todos. Inclusive aos responsáveis pelas mortes de Moïse e de João Alberto. Os defensores do espancamento de quem rouba certamente mudariam de ideia se fossem eles os acusados pelo crime.

É preciso deixar cada vez mais claro que os direitos humanos são um conjunto de normas de proteção para toda e qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, e também neste país. Não interessando sua renda, suas crenças, sua origem, seu gênero, sua orientação sexual ou sua cor de pele.Muitos brasileiros invejam a qualidade de vida dos países nórdicos. Não por acaso, esses lugares têm uma sólida tradição de respeito aos direitos humanos. Não significa que sejam isentos de problemas, mas que dificilmente uma pessoa, seja ela quem for, será espancada até a morte em um lugar público, diante de transeuntes, sem que ninguém a socorra.No Brasil, a cultura de respeito aos direitos humanos poderia se consolidar mais rapidamente se a sociedade brasileira contasse com, pelo menos, uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH).

Essa entidade, dotada de autonomia operacional e financeira, busca promover uma sociedade na qual predomine o respeito aos direitos humanos. Atua em uma rede internacional de INDHs reconhecida pela ONU, mediante o intercâmbio de experiências voltadas ao fortalecimento da cultura de direitos humanos em nível mundial.

Hoje, embora seja um dos maiores países do mundo, o Brasil não dispõe de uma INDH reconhecida pelas Nações Unidas, o que dificulta a mudança necessária por aqui.

Se houvesse ao menos uma instituição dessa natureza no Brasil, movimentos desarrazoados como a saída do Pacto Mundial sobre Migração teriam uma oposição mais forte, sendo talvez até mesmo evitado.

A criação e o reconhecimento de uma INDH brasileira deve ser uma prioridade para todos os defensores dos direitos humanos neste país.Caetano Veloso, ícone da Tropicália que nos orgulha, lamentou a morte de Moïse Kabagambe na Tropicália que nos enluta e envergonha. Entre outras coisas, o artista disse que o Brasil não pode ser o que há de mesquinho e desumano em sua formação.Precisamos reformar, recuperar e reumanizar as relações sociais no Brasil. Visando a essa meta, é indispensável e fundamental que tenhamos também as nossas Instituições Nacionais de Direitos Humanos, que ombreadas em torno do mesmo objetivo, sejam capazes de enfrentar, num país tão plural e tão diverso, um quadro cada vez mais grave de violações à dignidade humana.Sem instituições desse porte, o Brasil conviverá sempre com duas Tropicálias: a do brilho artístico dos anos 1960 e a da mácula civilizatória de 2022. Pelo bem de todos, tal dualidade não pode prosperar.

*Carlos Alberto Vilhena - Subprocurador-geral da República e procurador federal dos direitos do cidadão

**Publicado originalmente em Jota 

 

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