Artigos

O ferrete de Pilatos

Em 1945, Branch Rickey, um homem branco já com seus 65 anos, dono de um dos principais times de beisebol dos Estados Unidos, o Brooklyn Dodgers, resolveu quebrar um poderoso tabu social: contratou um jogador negro (Jackie Roosevelt Robinson) para compor seu time, que disputava o principal campeonato do país. Nessa liga especial, só jogavam homens brancos.

Antes de firmar o contrato, Rickey foi cortante em relação aos desafios que estariam por vir:  menosprezo, injúrias e provocações até o limite do tolerável. Uma eventual reação de Jackie à altura dos ultrajes recebidos seria suficiente para a claque apoiar os algozes, confirmando que o negro não tinha as habilitações necessárias para jogar com brancos. Os ataques contra Jackie – físicos e morais –  seriam invisíveis para a plateia, que só teria olhos para a reação do negro “destemperado” e “incivilizado”. Seria necessário, explicava Rickey, fleuma e disciplina para vencer naquele ambiente hostil. Era o preço a ser pago para iniciar a mudança de uma cultura incrustada no país.

Quem acompanha com imparcialidade o cenário político atual no Brasil, entristeceu-se com o desempenho dantesco do órgão máximo da Justiça Eleitoral brasileira e aquilatou claramente o custo para mudar nossa cultura de corrupção e impunidade. Concebido para fazer valer a vontade legítima do eleitor, resguardando os pleitos de influências indevidas do poder político e econômico, o TSE entrou na última semana com força na refrega da política, não como árbitro, como seria curial, mas na condição de competidor que escolheu lado e pauta partidária a ser defendidos. O Ministério Público, altivo, cumpriu seu papel, mas purgou toda sorte de difamações.

>> As incoerências do julgamento que absolveu a chapa Dilma-Temer

Não havia nenhuma sombra de imparcialidade nos votos de alguns dos ministros. Aliás, não houve nem mesmo preocupação em aparentar isenção. No fatídico julgamento, o vício arrogante nem sequer cuidou de render homenagem à virtude para que, ao menos em simulações hipócritas, se revelasse alguma vergonha pelo malfeito: foi tudo às escâncaras e televisionado para todo o país.

Ao refletir sobre o episódio ocorrido na última semana, duas possibilidades me ocorrem: ou assistimos ao ato de um grande recomeço, ou testemunhamos o começo de um terrível fim.

Julgamento da chapa Dilma e Temer no TSE. (Foto: Sergio Lima/ Epoca)

Nos últimos três anos estivemos na labuta anticorrupção com amplo e ativo apoio da sociedade, mas desde o impeachment houve um claro esfriamento de ânimo em relação ao tema. Não mais se repetiu em intensidade o espetáculo cívico até então visto pelas ruas do país.

A Lava Jato, ainda assim, seguiu seu curso e intensificou o trabalho. Acuados e sem a pressão social no encalço, os investigados encorajaram-se a reagir. Nessa linha, o julgamento do TSE foi apenas a expressão mais evidente das ações destinadas a trazer o país de volta a sua antiga “normalidade”.

Como otimista convicto, recuso-me a aceitar que a sessão do TSE tenha sido o começo de um fim melancólico para a Lava Jato, para o combate à corrupção e à impunidade. Ao contrário, estou certo de que a frustração com o episódio servirá como mola propulsora de mudanças e de que estamos mesmo é diante de um grande recomeço para o país.
Para isso, ao menos duas condições precisam se fazer presentes. A primeira e mais importante diz respeito à participação da sociedade e sua intensificação na cobrança por reformas no sistema político e na defesa da pauta de combate à corrupção. A democracia exige vigilância atenta e perene.

A segunda refere-se à postura dos órgãos envolvidos na defesa do patrimônio público e da probidade, especialmente o Ministério Público e o Judiciário. Nesse ponto, retomo a história de Jackie Robinson para reavivar os conselhos do visionário cartola do beisebol: quem deseja fomentar mudanças em cultura – porque é disso que se trata – precisa ser dotado de resiliência. Ofensas e calúnias devem ser respondidas com mais trabalho; na lama da difamação, supostos “excessos”, “messianismos” e “ilegalidades” serão iluminados e realçados, enquanto as ofensas injustas e as aleivosias insidiosas serão ofuscadas e devidamente escondidas tão sistematicamente que, em algum ponto, as pessoas podem não mais enxergar crimes e corrupção, mas apenas os aparentes defeitos dos agentes da lei.

No julgamento histórico, o Ministério Público sofreu toda sorte de leviandades e acusações irresponsáveis. Nessa hora difícil, a firme resistência e a coragem ponderada foram fundamentais para a travessia tormentosa. O ilustre baiano Rui Barbosa, em passagem sugestivamente citada pelo ministro Gilmar Mendes no TSE, remete-nos ao julgamento ignominioso do Cristo, para advertir os juízes – aplicável hoje também ao Ministério Público – contra o ferrete de Pilatos: “O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o magistrado covarde”.

* Danilo Dias é procurador regional da República e coordenador da assessoria criminal da PGR

(Publicado originalmente em Época)

logo-anpr