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O regime de cumprimento de pena e a isonomia entre os colaboradores

Diante da previsão do art. 4º, § 7º, inciso II, da Lei n. 12.850/2013, com a redação estabelecida pela lei nº 13.964/2019, que declara nulas as cláusulas do acordo de colaboração premiada, relacionadas à sanção pactuada, que “violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo”, passou-se a questionar se é possível a fixação de regime de cumprimento das sanções pactuadas no acordo de colaboração premiada em dissonância com o Código Penal e a Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210/ 1984.

Atualmente, essa é a principal discussão existente sobre os termos de um acordo de colaboração.

Em artigo anteriormente publicado, defendeu-se que a restrição legal se aplicava apenas ao Ministério Público, sendo possível, portanto, a fixação de um regime mais benéfico do que o legalmente previsto em favor do colaborador, por meio de uma interpretação lógico-sistemática da lei, em consonância com os fins premiais do instituto da colaboração premiada[1].

Ocorre que, mesmo existindo vedação expressa, no art. 4º, § 7º, inciso II, da lei n. 12.850/2013, da possibilidade de fixação de regime de cumprimento de pena (ou regras de progressão) de maneira diversa da prevista em lei, o §5º do referido dispositivo estabelece que “se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.” Ou seja, àquele que colabora após ter sido condenado é permitida a progressão de regime sem a observância dos requisitos objetivos previstos em lei e ao colaborador que não foi condenado não é concedida essa possibilidade?

Mais uma vez, a interpretação literal de um dispositivo legal, no caso o art. 4º, § 7º, inciso II, e o §5º, da lei n. 12.850/2013, pode levar a incongruente conclusão de que é autorizada a concessão de progressão de regime (logicamente mais favorável) sem a observância dos requisitos objetivos previstos em lei apenas aos colaboradores que já tenham sido condenados no momento da celebração do acordo de colaboração premiada. Em contrapartida, o colaborador que resolve contribuir com a persecução penal antes de ser condenado, ou seja, em tese em uma situação jurídica de violação da ordem menos gravosa que o colaborador-condenado, não poderá ser beneficiado por uma progressão de regime sem observar os requisitos objetivos previstos em lei.

A interpretação acima fere a isonomia sob o aspecto formal e material. Os colaboradores passam a ser tratados formalmente (ambos são colaboradores) e materialmente de maneira desigual, em decorrência de serem diferenciados em razão do momento da celebração do acordo (um colaborador antes de ser condenado, o outro após ser condenado), sendo que o colaborador em situação, em tese, menos gravosa é tratado de maneira mais rigorosa.

Essa diferenciação fere, inclusive, a ideia de sistema do direito, visto que “uma interpretação jurídica que se tem por mais adequada, mais razoável, necessita ser contemporânea, sistêmica e evolutiva.”[2], sendo que “interpretar o Direito em sua completude não se resume na simples tarefa de ler o conteúdo literal dos textos (internos ou externos), sob pena de se desconsiderar e subestimar a complexidade fenomênica em que se vive”[3].

Desse modo, a melhor interpretação para os citados dispositivos é a que possibilita a progressão de regime de cumprimento de pena, sem a observância dos requisitos objetivos previstos em lei, para todos os acordos de colaboração premiada, independente da situação do colaborador (condenado ou não), buscando um contexto de tratamento isonômico entre os colaboradores, bem como uma interpretação lógica, sistemática e teleológica da lei n. 12.850/2013, conforme ressaltado acima e em artigo anteriormente publicado, já mencionado acima.

A previsão normativa do art. 4º, § 7º, inciso II, bem como do §5º do mesmo dispositivo, ambos da lei n. 12.850/2013, estão vigentes e, desse modo, devem ser compatíveis com a ideia de sistema do direito e adequada aos valores que regem a referida lei, especialmente o instituto da colaboração premiada, que, entre outros fins, busca premiar os acusados que resolvam colaborar com a persecução penal na medida da colaboração realizada.

[1] Vide https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-acordo-de-colaboracao-premiada-e-o-regime-de-cumprimento-de-pena-12072020.

[2] FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas. 2.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 42.

[3] FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas. 2.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 40/41.

* Galtiênio da Cruz Paulino – Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestre pela Universidade Católica de Brasília e doutorando pela Universidade do Porto. Possui pós-graduação em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp. Orientador pedagógico da ESMPU. Ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República. No MPF, foi membro-auxiliar do procurador-geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no STF, entre 2018 e 2019, e atualmente é membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

** Artigo publicado originalmente no site Jota

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