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Sistema de justiça pelos direitos dos povos e comunidades tradicionais

O estado do Paraná possui uma expressiva diversidade cultural de comunidades tradicionais e populações indígenas. Há atualmente no estado quatro etnias indígenas: Guarani, Kaigang, Xokleng e Xetá[1].

Já com relação às comunidades tradicionais há cadastrados junto ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais[2], Povos Indígenas, Povos da Religião de Matriz Africana, Povos Ciganos, Comunidades de Remanescentes de Quilombos, Comunidades Tradicionais Negras, Comunidades de Ilhéus do Litoral do Paraná, Comunidades de Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná, Comunidades de Caiçaras do Litoral do Paraná, Comunidades de Cipoeiros(as), Comunidades de Faxinalenses, Comunidades de Ribeirinhos e Ilhéus do Rio Paraná e Comunidades de benzedores e benzedeiras.

A riqueza cultural do estado, trazida por anos de vivência e costumes das suas comunidades tradicionais, muitas vezes desconhecida pelos próprios municípios,  convive em uma região do país onde há povos de região fronteiras (Paraguai e Argentina), povos que vivem no litoral, povos que vivem no campo, povos que vivem na cidade, cada um com seu modo de vida e tradição diferenciados e protegidos constitucionalmente.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que estas comunidades fazem parte da diversidade cultural do estado, há uma face de vulnerabilidade social que se evidenciou ainda mais no período de pandemia, causado pela Covid-19, colocando em risco a segurança e a própria sobrevivência desses povos.

Com vistas a assegurar direitos básicos para estes povos e comunidades durante a pandemia, como acesso à alimentação, atendimento médico, água potável, equipamentos de proteção como máscaras, álcool gel, local adequado para isolamento, houve e ainda há intensa atuação interinstitucional entre Ministério Público Federal e outros órgãos públicos, através de reuniões constantes sobre as medidas mais adequadas para prevenção da doença em cada comunidade, respeitando sempre suas peculiaridades e costumes.

O caso paradigma, que embasou a atuação nas demais comunidades, ocorreu na Terra Indígena Tekoha Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, no Oeste do estado, onde vivem indígenas da etnia Avá-Guarani.

No dia 17 de junho, houve a comunicação às autoridades municipais do primeiro caso de Covid-19 na aldeia, proveniente de indígena trabalhador de frigorífico, locais onde foram constatados inúmeros casos de surto da doença em todo o país.

No dia seguinte, houve a confirmação de um segundo caso na aldeia (um bebê indígena sem nenhuma correlação com o primeiro caso) e a comunicação do iminente surto aos respectivos membros dos Ministérios Público Federal e Estadual.

Diante da gravidade da situação, de forma conjunta, os órgãos optaram por mobilizar através de uma reunião por videoconferência, designada para o dia 19 de junho (uma sexta-feira à noite), o maior número de autoridades, órgãos, entidades e lideranças que pudessem contribuir de alguma forma na resolução do problema, estratégia que futuramente se revelou extremamente eficaz e proveitosa.

Assim, utilizando-se precipuamente de um inusual, informal porém extremamente simples eficaz meio de comunicação (criação de um grupo de Whatsapp),  a reunião efetivamente realizou-se aos 19 de junho de 2020, com início às 17h40, com aproximadamente três horas de duração e contou com a presença de membros do Ministério Público do Estado do Paraná, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Defensorias Públicas do Estado e da União, Casa Civil do Governo do Estado do Paraná, SUDIS/PR GT povos tradicionais, Funai Regional e de Brasília, Itaipu Binacional, Comissão Jurídica Guarani, Conselho dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, Defesa Civil, SANEPAR, UNILA – Universidade Federal da Interação Latino-Americana, que disponibilizou especialistas na área da saúde para elaborar um plano emergencial de enfrentamento da doença na aldeia[3]. Além, é claro, do cacique da Aldeia Tekoha Ocoy, sr. Celso Topoty Alves, de autoridades sanitárias do estado, município e representantes da Secretaria de Saúde Indígena.[4]

Por ser o primeiro caso de Covid-19 em comunidades tradicionais do Estado, e considerando que de apenas um caso positivo no dia 17 de junho passou-se rapidamente para 35 casos positivados em apenas 3 dias, e, ao final de dois meses de intenso acompanhamento e atuação interinstitucional integrada, totalizou-se apenas 77 casos positivados, tudo isso em uma aldeia onde vivem em torno de 200 famílias e 900 pessoas, acredita-se que a atuação ministerial, o trabalho de interlocução entre os órgãos e o monitoramento diário da situação foram bem-sucedidos e fundamentais para se evitar uma potencial tragédia na aldeia.

Dentre as medidas adotadas, com esforço comum de todos entes públicos e particulares envolvidos, pode-se citar a doação de cestas básicas para evitar que a população saísse da quarentena para comprar mantimentos, fornecimento de máscaras, kit higiene e álcool gel 70%, testagem por amostragem promovida pelas secretarias de saúde e universidade, local para que pudesse ser realizado o isolamento das pessoas que testaram positivo para a doença, fechamento da aldeia, permitindo a entrada apenas para moradores, desinfecção dos locais de uso comum, utilização de carro de som informando os moradores sobre as medidas de distanciamento social e prevenção à doença e afastamento remunerado dos trabalhadores indígenas dos frigoríficos, já que considerados grupo de risco pelo §3 do Art. 19, do Decreto Estadual n. 4320/20.

A pronta atuação dos órgãos públicos, juntamente com o Cacique da Aldeia Ocoy, evitou que a doença, altamente contagiosa, pudesse contaminar grande parte da população, causando risco à saúde e à vida dos indígenas Avá-Guarani. A atuação só não pode ser considerada plenamente exitosa, em razão da perda inestimável para a comunidade e para a própria História dos indígenas, do Pajé Gregório Venega, de 105 anos, que vivia na aldeia do Ocoy, em São Miguel do Iguaçu[5], vítima da Covid-19.

A atuação na Aldeia Ocoy seguiu nos mesmos moldes exitosos para outras aldeias da região oeste (Municípios de Diamante do Oeste, Santa Helena, Itaipulândia) e também para outras comunidades tradicionais[6] como as dos ilhéus, caiçaras e pescadores artesanais, em Guaraqueçaba, quilombolas e tradicionais negras, em Adrianópolis, ilhéus, caiçaras e pescadores artesanais no município de Paranaguá, dentre outras atuações, reforçando sempre a necessidade de presença constante dos entes públicos na prestação de serviços básicos de alimentação e saúde, prevenindo assim a contaminação e o risco à saúde e à vida dessas populações que possuem uma imensa riqueza cultural a ser compartilhada e reverenciada no estado.

Além disso, revelou-se uma nova forma de atuação por parte dos órgãos de fiscalização, extremamente simples, célere e eficaz: a atuação interinstitucional (MPF MPE, MPT e DPU) centrada em comunicações de aplicativos de mensagens, com menos burocracia e mais controle, menos papel e mais resolutividade, menos impessoalidade e mais humanidade, tudo sob os primórdios da Carta de Brasília[7].e dentro do verdadeiro papel institucional do Ministério Público.

Referências

[1] Disponível em: <http://www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=68>. Acesso em 21 de agosto de 2020.

[2] Informações fornecidas pela presidente do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná, professora Clemilda Santiago Neto, data 25 de agosto de 2020.

[3] Plano de Contingência para Enfrentamento Covid-19 na Aldeia Ocoy 20/06/2020 Aspectos Técnicos: assistenciais, logísticos, operacionais Colaboração. Professores da UNILA: prof. Luis Fernando Zarpelon, prof. Roberto de Almeida, prof.ª Wilma Nancy Arze. Equipe na Visita Técnica: enfermeira Lilian, Luiz Antônio. Secretário de Saúde São Miguel, diretora da Escola Marli R.

[4] Disponível em: <http://mppr.mp.br/2020/06/22690,10/MPPR-atua-para-garantir-saude-de-indigenas-durante-a-pandemia.html>; <https://globoplay.globo.com/v/8642879/?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar>; <https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2020/06/21/apos-24-confirmacoes-de-covid-19-reserva-indigena-e-interditada-e-comunidade-passa-por-testagem.ghtml>.

[5] Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2020/07/27/paje-de-105-anos-morre-de-covid-19-na-aldeia-ocoy-em-sao-miguel-do-iguacu.ghtml?fbclid=IwAR3iHO2kLKKuh8osWhVyBlVxDhEcafQlOa7B0aFu7EgFWvdWA8ftufV3DSQ>.

[6] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/reuniao-discute-combate-a-covid-em-aldeias-indigenas-de-itaipulandia-pr>; <http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/mpf-se-une-a-outras-instituicoes-em-atencao-ao-combate-a-covid-19-em-comunidades-tradicionais>.

[7] Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/corregedoria/carta-de-brasilia>.

* Artigo publicado originalmente no site Jota

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