O estado de Rondônia tem um histórico singular no que diz respeito à ocupação de imóveis rurais. Durante o período da ditadura civil-militar, sob o lema “ocupar para não entregar”, o governo usou seu grande estoque de terras públicas da região para criar grandes assentamos no eixo da BR-364 com o objetivo de absorver os contingentes de mão-de-obra camponesa excedentes das demais regiões (especialmente Sul e Nordeste), aliviando a pressão por reforma agrária, além de entregar grandes lotes para licitantes, supostamente, com alta capacidade de investimento (empresas e particulares).
O movimento dirigido pelo governo gerou uma descontrolada onda migratória e, muitas vezes, a criação de verdadeiras “favelas rurais” que, em grande parte, prestaram-se e prestam até hoje ao desmatamento e à especulação imobiliária.
Grande número de empresários vencedores das licitações abandonou seus lotes, por falta de infraestrutura, iniciando uma cadeia de compra e venda de papéis (títulos de imóveis rurais) “podres” e grilagem de terras públicas. Isso porque os contratos celebrados (e os lotes cedidos pela reforma agrária) vedavam expressamente a concentração fundiária e estabeleciam condições para a manutenção da propriedade.
Por volta do ano de 2014, um grupo de trabalhadores rurais sem-terra ocupantes da fazenda chamada “Cruzeiro” (Arroba só Cacau) procurou o Ministério Público Federal com abaixo-assinado relatando ameaça constante de sofrerem reintegração de posse, bem como registro de diversas irregularidades na propriedade e no aspecto possessório do imóvel. Além disso, relatavam a dificuldade que suas crianças tinham para ter acesso à escola e a inexistência de rede de luz elétrica.
Como adiantado, a “compra de papéis” (de imóveis) com fins especulativos é expediente comum para grilagem de terras no Estado. Os ocupantes alegavam justamente que a maioria dos pretensos proprietários que pleiteavam “reintegração de posse” nunca foram, de fato, posseiros e nem sequer haviam comprado a posse de verdadeiros ocupantes, mas detentores ou adquirentes de títulos que, possivelmente, já não teriam qualquer validade legal, uma vez que rompidas as cláusulas originárias do contrato de alienação de terras públicas (CATP).
Movimentos sociais no Norte costumam ocupar terras griladas do poder público para forçar a destinação à reforma agrária. Na época em que foi feita a representação, o programa “Terral Legal” avaliava se os donos das CATP’s haviam ou não cumprido as cláusulas.
Apurou-se que a fazenda era formada pela concentração de 8 CATP’s, todas em situação de regularidade/irregularidade muito semelhante – cláusulas descumpridas. A par disso, curiosamente, 4 haviam sido “liberadas”, ou seja, o “Terral Legal” havia considerado consolidada a propriedade, e 4 haviam sido questionadas judicialmente (ação de retomada). Das 4 questionadas, o INCRA obteve vitória processual em relação a 2 e derrota em relação às outras duas.
Após discussão com equipes técnicas do INCRA, “Terra Legal” e MPF, decidiu-se por questionar judicialmente todas as CATP’s, dada sua idêntica situação jurídica (rompimento das cláusulas) e inexplicável tratamento diferenciado.
No entanto, surpreendentemente, o INCRA decidiu liberar as cláusulas de todas, legitimando, indiretamente, os supostos proprietários. A liberação, a par do parecer inicial do próprio INCRA pela invalidade das alienações, parecia completamente ilegal.
Investigando mais a fundo cada um dos lotes, verificou-se que 5 deles foram alienados inicialmente em 1979 para pessoas com relação de parentesco entre si, uma delas, a que assinou a procuração de compra e venda de todos, recebeu indevidamente dois lotes.
Configurou-se claramente a simulação desses 5 negócios jurídicos para fraudar a lei, que vedava a concentração de lotes por um proprietário. Além disso, um dos demais lotes foi vendido para estrangeiro não residente, o que era igualmente vedado.
Para tentar corrigir esse erro, o INCRA realizou nova licitação para beneficiar o estrangeiro especificamente, só que ele já havia alienado o lote para uma empresa. O INCRA adjudicou o lote a uma pessoa física que, na verdade, era interposta pessoa de pessoa jurídica – alienar lotes para pessoas jurídicas, ao tempo, também era vedado! Aliás, maior coincidência, a pessoa jurídica que comprou os 8 lotes era a mesma.
Como adiantado, reconcentrar lotes era (e ainda é) vedado, havendo uma inscrição explícita no verso de todos os contratos: “este contrato é intransferível inter-vivos. Solicita-se ao cartório do registro de imóveis anotar este fato por ocasião da matrícula”. Assim, era impossível alegar “boa-fé” do adquirente. O registro público desse fato era prova bastante tanto da ilegalidade como da ciência da ilegalidade.
Diante disso, o MPF ajuizou ação civil pública em face dos pretensos proprietários que teve liminar prontamente deferida pelo judiciário para suspender a validade do registro público. Além disso, peticionou nos autos da ação possessória que tramitava na Justiça estadual pedindo a suspensão da ordem de reintegração de posse, tendo em vista que seu fundamento havia sido cassado (a propriedade do título), e o deslocamento para a Justiça Federal, tendo em vista que o possuidor indireto esbulhado é, em verdade, o INCRA.
Hoje os acampamentos “Canaã”, “Raio de Sol” e “Renato Nathan 2” são responsáveis pelo abastecimento de boa parte da região com leite e outros insumos alimentares, mas ainda se encontram ameçados.
Longe de ser um expediente fraudulento ocasional, a compra de títulos de imóveis rurais “podres” é muito comum e influencia diretamente a política de reforma agrária. Recentemente, a Força Tarefa Amazônia, após apuração do MPF em Rondônia, apontou a existência de uma quadrilha que envolvia servidores públicos (Executivo e Judiciário) e empresa privada especialista em “esquentar” esses títulos via judicial, obtendo indenizações bilionárias.
As fraudes consistiam em comprar títulos superpostos cancelados ou de áreas ocupadas por trabalhadores rurais sem-terra (ou simplesmente criar esses títulos) e obter indenizações pela desapropriação direta ou indireta.
A grilagem de terras é um empecilho para a reforma agrária especialmente em Rondônia não só por elevar a quantidade de dinheiro público que deve ser despendido para destinar uma área que, em tese, já era de domínio da União ao assentamento de trabalhadores rurais sem-terra ou por gerar super indenizações judiciais (entre entre 2011 e 2016, a União havia gastado R$ 978 milhões com o pagamento apenas de juros compensatórios, quase o dobro do que foi gasto com as indenizações pela desapropriação em si, R$ 555 milhões[1]), mas também por potencializar a violência, ainda mais agora que as verbas para reforma agrária quase inexistem.
Isso porque outra técnica de especulação imobiliária dos grileiros amazônicos é comprar terras ocupadas, efetivar a “limpeza” dos ocupantes, por via judicial – com as reintegrações de posse fundamentadas em títulos “podres” – ou contratando pistoleiros e assassinos, e vender essas mesmas terras muito mais valorizadas.
Além disso, a “regularização fundiária” administrativa e/ou judicial é mais fácil quando a terra está “limpa”, o que, por si só, também múltipla o valor do imóvel. Entre os anos de 2015 e 2016, segundo relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT)[2], Rondônia foi o território do país onde mais se registrou assassinatos relacionados a conflitos pela terra, triste liderança que alterna com o Pará há quase uma década.
Os trabalhadores rurais sem-terra que ocupam a fazenda “Cruzeiro” há décadas e foram vítimas de várias tentativas de reintegração de posse com fundamento nessa classe de títulos são um excelente exemplo de como o sistema de justiça não está preparado para lidar com a situação e como a reforma agrária é bloqueada, muitas vezes, de forma criminosa.
Pessoas pobres que efetivamente produzem em terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária são sistematicamente perseguidas, expulsas, ameaçadas ou mortas, muitas vezes com ajuda do próprio Estado, no interesse da especulação imobiliária de indivíduos que, muitas vezes, se associam criminosamente com agentes públicos.
Como demonstrado, a atuação do Ministério Público Federal, sem descurar de debelar as fraudes encontradas, deve ser no sentido de garantir que essas terras públicas não sejam apropriadas por particulares com interesses meramente especulativos, mas, sim, destinadas à reforma agrária, política constitucionalmente tutelada, reduzindo as desigualdades regionais e sociais e garantindo terreno seguro para agricultura familiar que hoje é a principal responsável pela segurança alimentar do país.
Referências
[1] Informações juntadas pela AGU no julgamento da ADI 2.332-DF.
[2] Massacres no campo. Comissão Pastoral da Terra, 2020. Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/index.php/component/jdownloads/category/3-cadernoconflitos?Itemid=-1>. Acesso em 20 de março de 2020.
* Artigo publicado originalmente no site Jota