*As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a posição da ANPR.
Lucas Almeida Dias, procurador da República
Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)
O projeto de lei 580 de 2007, que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foi pautado na 3ª feira (19.set.2023) na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados.
Durante a sessão, a Casa Baixa foi palco de: transfobia – a deputada Erika Hilton foi chamada de “meu amigo” por um congressista; violência política de gênero – a deputada Sâmia Bonfim foi mandada “calar a boca”; e ruptura democrática – sociedade civil ameaçada de ser retirada da sala de votação. Todos esses atos intoleráveis devem ser rigorosamente apurados pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.
Por acordo entre os líderes partidários, em meio ao caos dessa sessão, a votação foi adiada para 4ª feira (27.set.2023). Ficou ainda ajustada a realização de uma audiência pública na 3ª feira (26.set.2023) para ampliar o debate sobre tão relevante tema antes da votação. Famílias LGBTQIA+ sempre existiram, apesar das violências. Mas elas foram postas na clandestinidade porque eram repelidas pelas instituições do Estado. Assim, o casamento se tornou bandeira central da comunidade para restituir a esse grupo exatamente aquilo de que foi privado por força do preconceito: uma família. Rejeitadas pelos pais e por outros familiares, muitas dessas pessoas acabavam –e ainda acabam– expulsas ou fugindo de casa. Apesar de importantes precedentes judiciais da década de 1990 e 2000, essa história mudou mesmo em 2011, quando o STF (Supremo Tribunal Federal), por unanimidade, reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares e, portanto, merecedoras da proteção estatal. Em 2013, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou também o casamento homoafetivo.
Depois disso, em nosso ordenamento jurídico, não há diferença entre famílias hétero e homoafetivas. Até abril de 2023, os cartórios contabilizaram 76.430 casamentos entre pessoas do mesmo sexo no país, segundo dados da Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais).
Agora, todas essas famílias –e as novas que se pretende constituir– estão sendo atacadas em sua existência por uma proposição legislativa flagrantemente inconstitucional. Isso porque a liberdade de conformação do Legislativo é restrita àqueles limites já fixados pelo STF e que foram endossados pela Opinião Consultiva 24 de 2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil se arrisca, ainda, a descumprir recomendações da última Recomendação Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Em nosso país, impõe-se o princípio do não retrocesso como limite material implícito que impede a supressão dos direitos fundamentais sociais já conquistados, como é o caso da união estável e do casamento homoafetivos.
A despeito das poucas chances de êxito da proposta, tal iniciativa já consumou um retrocesso no debate público, legitimando ainda mais a violência homotransfóbica na sociedade. Além disso, retirou o foco do que realmente deveria estar em debate em um Legislativo historicamente omisso quanto aos direitos das minorias sexuais: leis de proteção à comunidade LGBTQIA+.
É significativo que, enquanto mais de 7 milhões de pessoas aguardam revisão de benefícios previdenciários com um aplicativo pouco eficiente, a Comissão de Previdência se debruce sobre um direito civil já pacificado. Não é possível que direitos LGBTQIA+ continuem servindo de trampolim eleitoral para políticos fundamentalistas, com um dispêndio enorme de dinheiro público e de tempo.
A identidade de gênero e a orientação sexual de uma pessoa definem e moldam muitos aspectos de suas vidas. A população LGBTQIA+ continua a experimentar estigmas danosos e enfrenta vários encargos pessoais e sociais relacionados à saúde física e mental, altas taxas de suicídio, dificuldades familiares, discriminação, falta de moradia e emprego, marginalização e barreiras ao acesso a serviços públicos que demandam apoio governamental direcionado.
O Congresso Nacional, contudo, vai na contramão desses avanços: elege como prioridade a destruição de nossas famílias. Até quando?
*Artigo publicado originalmente no Poder360.