Democracia se constrói e se fortalece exatamente no seu exercício diário, no debate constante sobre os seus contornos e as práticas que a revigoram ou a diminuem
Democracia é um ente vivo, que precisa ser acompanhado, alimentado e defendido, até mesmo por ser, em larga medida, uma ideia que se contrapõe a séculos de postura autocrática e um reconhecido viés dominador. Em outras palavras, democracia precisa ser vivenciada e não apenas imaginada.
É exatamente no contexto de um debate sobre democracia e seus instrumentos que se insere a discussão sobre a forma de indicação do procurador-geral da República e a observância, ou não, da lista tríplice votada pelo Ministério Público Federal[1].
O argumento formal constitucional é sempre realçado: a Constituição Federal de 1988, repetindo suas antecessoras, não obrigou o presidente da República a seguir uma lista tríplice enviada pelo Ministério Público Federal.
O argumento, todavia, nem sempre é seguido de algumas chaves essenciais para compreender o debate: 1) o MPF é o único dos 30 Ministérios Públicos brasileiros a não ter seu procurador-geral escolhido a partir de uma lista tríplice; 2) em 1988, o MPF exercia, ainda, a função da Advocacia-Geral da União e, portanto, o PGR era, ao tempo, o Advogado-Geral da União, integrante do Poder Executivo, como havia sido em praticamente toda a sua história. O fato somente se alterou em março de 1993, quando a AGU foi efetivamente instalada, mas não houve alteração constitucional posterior.
Desde 2001, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) provoca o diálogo com o presidente da República e com a sociedade brasileira para trazer ao MPF a mesma forma de indicação do procurador-geral, com a formação de uma lista tríplice que permitirá ao presidente da República fazer o juízo político quanto aos nomes indicados, em um processo transparente e que permite à sociedade e aos membros do MPF avaliar a história institucional de cada um dos candidatos ao cargo, como se portaram nos momentos institucionais mais críticos e o que pensam sobre temas como direitos humanos, defesa de populações tradicionais, atuação criminal, dentre tantos outros assuntos com os quais lida a instituição.
É, então, um processo transparente de escolha e indicação, que evita a opacidade inerente a uma seleção em que não se sabe os nomes que concorrem, os motivos que os levam a se apresentar e os compromissos que eventualmente assumam. Não se trata propriamente de nomes, por melhores que sejam, mas de modelos de seleção e decisão.
Democracia é, em si, um processo, uma forma de agir e a escolha pela transparência e por filtros sucessivos na formação de um rol de nomes para ocupar o cargo de PGR indica, para o futuro, um pensamento republicano, que independa do perfil do ocupante do cargo de presidente da República.
No qualificado debate que a lista tríplice tem provocado, Rogério Arantes e Fábio Kerche[2] apontam um conjunto de fatores que indicariam não ter a lista tríplice as qualidades necessárias para que viesse a ser seguida.
Partimos de um ponto comum aos dois articulistas, reafirmando a necessidade de que a escolha do próximo PGR recaia sobre alguém comprometido com a democracia e os direitos humanos, mas divergimos nas críticas formuladas ou, quando menos, precisamos recolocar os argumentos em seu local adequado.
O primeiro ponto, o mais jurídico deles, diz respeito à exclusão, que seria feita artificialmente pela ANPR, dos demais ramos que formam o Ministério Público da União, ou seja, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Sistemas incoerentes até podem resultar, acidentalmente, em resultados coerentes, mas sempre estarão sujeitos a uma falha inicial, no que poderíamos denominar de risco sistêmico.
O Ministério Público da União teve sua primeira menção constitucional em 1946 e foi objeto da Lei 1.341/1951, quando a instituição fazia parte do Poder Executivo, tanto que o PGR tomava posse junto ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, o procurador-geral da Justiça do Trabalho junto ao ministro do Trabalho e o procurador-geral da Justiça Militar junto ao ministro da Guerra.
Desde 1951, quando os procuradores-gerais poderiam ser escolhidos e demitidos livremente, o MPU se organiza em carreiras distintas e que não permitem transferências entre elas. Ou seja, o procurador da República, que integra o MPF, não pode transferir-se para o MPT ou MPM e assim por diante.
As carreiras eram, portanto, estanques, separadas, ainda que integrantes do MPU.
Em 1988, a Constituição Federal confere nova estrutura ao MPU, agora composto pelo MPF, MPT, MPM e pelo MPDFT, o que será objeto de uma Lei Complementar específica, a LC 75/1993, que novamente estrutura cada uma das carreiras de forma estanque, separada e não comunicável, impedindo que se confundam os membros do MPF, do MPT, do MPM e do MPDFT, cada uma das carreiras com sua atribuição específica e com seu âmbito de atuação.
A LC 75/1993, nos artigos 88, 121 e 156, expressamente definiu que os procuradores-gerais do MPT, MPM e MPDFT serão escolhidos em listas tríplices, formadas pelos membros das respectivas carreiras, em procedimento idêntico ao aplicado aos procuradores-gerais de Justiça dos 26 Ministérios Públicos estaduais.
Também a LC 75/1993 deixou claro que o procurador-geral da República será, ao mesmo tempo, o chefe do Ministério Público Federal e do Ministério Público da União.
A Constituição Federal, ao tratar do procurador-geral da República, menciona que será nomeado pelo presidente da República dentre membros da carreira, maiores de 35 anos, e, na sequência, disciplina para os Ministérios Públicos do estado e o do Distrito Federal e Territórios o mesmo critério, mas agora com a expressa menção à adoção de listas tríplices.
A pergunta central passa a ser: qual a noção de carreira a que alude a Constituição Federal?
Uma análise sistemática e coerente da estrutura do Texto Constitucional levará a uma conclusão: se o MPT, o MPM e o MPDFT escolhem, dentre os membros das respectivas carreiras, seus próprios procuradores-gerais, em lista tríplice, também ao MPF se reservou a um dos seus membros o cargo de chefe da própria instituição.
O que explicaria que apenas o MPF pudesse ter como seu chefe um integrante de uma carreira estranha a ele? Relembre-se: as carreiras no MPU sempre foram e continuam a ser separadas entre si, não permitindo comunicação entre elas.
É certo que ao PGR, como chefe do MPU, se reservou funções administrativas típicas, mas elas se resumem a um conjunto muito bem delineado de atribuições gerais e não interferem na administração direta de nenhum dos ramos do MPU, que ostentam autonomia e independência.
De outro lado, na sua atuação mais típica e relevante, que é a atuação junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, o PGR exerce exatamente as atribuições que são do Ministério Público Federal e, de novo, não impedem ou interferem na autonomia e independência do MPT, MPM ou do MPDFT.
A LC 75/1993, ao estruturar o MPF, estabeleceu que os cargos de vice-procurador-geral da República, vice-procurador-geral Eleitoral, conselheiro do Conselho Superior do Ministério Público Federal, procurador federal dos Direitos do Cidadão, corregedor-geral do Ministério Público Federal são de designação exclusiva de subprocuradores-gerais da República, os que, também, poderão ser designados para atuar no STF, por delegação, e que, preferencialmente, integrarão e coordenarão as Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF.
Ora, se tais cargos somente podem ser ocupados por membros do Ministério Público Federal, por que poderia, então, o procurador-geral da República ser um elemento estranho à carreira do MPF?
A coerência, portanto, leva a uma conclusão simples: o PGR será escolhido dentre os membros do MPF e estes, por meio da ANPR, provocam desde 2001 a discussão sobre a necessidade da lista tríplice.
Mas deveriam os membros do MPT, MPM e MPDFT terem direito ao voto para a escolha da lista tríplice? A discussão é válida, mas parece desprezar que tais membros, na definição dos seus respectivos procuradores-gerais, já participam diretamente em suas próprias instituições, com as respectivas listas tríplices.
Em uma alegoria, seria como se os advogados inscritos na OAB-SP pretendessem votar também nas eleições para a OAB-RJ, mesmo sem terem sua inscrição na outra seccional.
Ou se os docentes da UFRJ ou da Unirio pretendessem participar da lista tríplice para a escolha do reitor da Unifesp, apenas para ficarmos no âmbito de universidades federais, onde a crítica a um alegado corporativismo da adoção de listas tríplices nunca se propaga, tanto quanto não se propaga o argumento na escolha dos procuradores-gerais de Justiça feita pelos governadores de estado.
Não há, então, uma exclusão, mas uma definição de quem pode votar e ser votado e com base em um critério racional e coerente, buscando uma aplicação sistemática do modelo constitucional.
No curso das críticas, os articulistas trazem um argumento adicional, segundo o qual “participar e se tornar liderança da política corporativa é precondição para figurar na lista que será levada ao presidente” e, com isso, presumem que a lista será necessariamente corporativa.
Para provar o argumento, aduzem que dos 33 nomes que constaram das 11 listas tríplices feitas pela ANPR desde 2001, apenas quatro não haviam integrado a diretoria da entidade.
Submetido o argumento a um olhar metodológico e acadêmico, os dados precisam ser esclarecidos para evitar leituras apressadas, a começar pelo fato de que, embora tenham sido feitas 11 listas tríplices, os 33 nomes, em verdade, se reduzem a 12 membros do MPF.
Um primeiro passo para identificarmos a força do argumento é situar no tempo os dois fatos (disputa na lista e presença na diretoria da ANPR), para fazer a correlação direta:
- Cláudio Lemos Fonteles participou das listas em 2001 e 2003, mas sua presença na Diretoria da ANPR se deu nos anos de 1975-77 e 1979-81;
- Antonio Fernando Barros e Silva de Souza participou das listas de 2001, 2003, 2005 e 2007 e integrou a diretoria da ANPR nos anos de 1985-87, 1987-89;
- Ela Wiecko Volkmer de Castilho esteve nas listas de 2001, 2003, 2005, 2009, 2011 e 2013 e, na ANPR, esteve na gestão de 1997-99;
- Wagner Gonçalves esteve na lista em 2005, 2007 e 2009 e, na ANPR, 1983-85, 1987-89 e 1993-1995;.
- Roberto Monteiro Gurgel Santos participou das listas em 2007, 2009 e 2011, enquanto, na ANPR, esteve nas gestões 1985-87 e 1987-89;
- Rodrigo Janot Monteiro de Barros constou nas listas de 2011, 2013 e 2015 e, na ANPR, 1993-95 e 1995-97;
- Mario Luiz Bonsaglia esteve nas listas de 2015, 2017, 2019 e 2021 e esteve na gestão 1999-2001 da ANPR;
- Nicolao Dino de Castro e Costa Neto compôs as listas de 2017 e 2021 e esteve na ANPR nas gestões 1999-2001, 2001-2003, 2003-2005 e 2005-2007;
- Luiza Cristina Fonseca Frischeisen integrou as listas de 2019 e 2021 e participou da gestão 2003-2005 e 2005-2007 da ANPR.
Uma primeira e importante constatação é a de que, com exceção de Ela Wiecko, cuja saída da direção da ANPR deu-se apenas dois anos antes da primeira presença em lista tríplice, os demais nomes, em média, estavam afastados da Associação há mais de 14 anos.
Não bastasse a distância no tempo a afastar a correlação direta feita pelos críticos, é importante trazer alguns dados sobre a composição da própria carreira e o tamanho da ANPR para demonstrar que a maior parte dos eleitores nas listas tríplices nem mesmo integravam a carreira no momento em que os eleitos estiveram na gestão da ANPR.
A ANPR completará 50 anos em 2023, fundada por 40 membros e teve seu crescimento ligado diretamente ao ritmo de concursos do próprio MPF, sendo o primeiro deles em 1972.
Em 1996, por ocasião do 14º Concurso de Ingresso, o MPF contava com cerca de 300 membros. Hoje, em que se realiza o 30º concurso, a instituição conta com 1.200 membros e a ANPR com número próximo de associados, sendo que cerca de 200 deles encontram-se aposentados.
O que demonstram tais números?
De um lado, que a renovação intensa dos membros aptos a votar nas listas tríplices faz com que a presença anterior na gestão da ANPR não seja um dado com a relevância pretendida pelos críticos.
Tal constatação nem é a mais relevante, já que a crítica, em si mesmo, parece desconsiderar um dado com o qual os cientistas sociais lidam diariamente: a liderança nas instituições decorre exatamente da efetiva participação na vida social dos grupos aos quais pertencem.
Como imaginar a carreira política do presidente Lula sem considerar sua atuação pretérita na vida sindical e na ocupação dos cargos no Partido dos Trabalhadores?
Percebe-se, então, que o argumento de que “participar e se tornar liderança da política corporativa é precondição para figurar na lista” está errado no tempo e no modo, pois o que qualifica o interessado em participar da lista tríplice é ter atividade de liderança na instituição e não na entidade de classe.
Todos os nomes que integraram as listas tríplices se tornaram conhecidos no âmbito do Ministério Público Federal por conta de suas atuações institucionais, seja em casos concretos, na atividade finalística, seja nos órgãos internos do MPF, tal como a atuação no Conselho Superior e nas Câmaras de Coordenação e Revisão.
E é natural que assim seja, especialmente se considerado um outro dado essencial para o debate: quantos são os integrantes do último nível da carreira, de onde saíram todos os procuradores-gerais da República indicados após 1988?
Até o ano de 2003, eram 46 os cargos de subprocurador-geral da República, quando foram ampliados para 62 e, finalmente, alcançaram o total de 74 em 2013.
Como vimos, a Lei Complementar 75/1993, embora não o faça expressamente quanto ao cargo de procurador-geral da República, reserva para os subprocuradores-gerais da República as funções de vice-procurador-geral da República, vice-procurador-geral Eleitoral, as dez cadeiras do Conselho Superior do MPF, os 21 cargos de membros das Câmaras de Coordenação e Revisão, a Corregedoria-Geral, a Ouvidoria-Geral, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, além dos ofícios com atuação junto ao STJ e ao STF, por delegação do PGR.
A simples enumeração das funções, quando contraposta ao total de membros que podem ocupar tais cargos, já demonstra que, feita a escolha do PGR entre os subprocuradores-gerais da República, é inevitável tenham eles exercido, em algum momento, cargo de liderança institucional.
Imputam os críticos, ainda, a desigualdade de gênero no MPF a um filtro que seria feito pela ANPR, o que, novamente, carece de base para a confirmação.
A diretoria da ANPR é composta por 12 cargos, incluindo o de presidente. Nas últimas cinco gestões, a diretoria teve a presença de quatro a cinco mulheres em cada uma delas.
É fato que apenas uma mulher dirigiu a ANPR em seus quase 50 anos, do que não se orgulha a entidade, mas não se pode inferir de tais dados que haja uma postura voltada a desprezar mulheres nas listas tríplices, sendo certo que, dos 12 nomes que integraram as listas tríplices realizadas de 2001 a 2021, 4 eram mulheres.
A questão de gênero no MPF, com a qual a ANPR tem se preocupado e buscado obter alterações no quadro atual[3], passa por reconhecer que hoje as mulheres representam 30% do número de membros e que tal percentual se reduz à medida que se faz a progressão na carreira. As causas para tal constatação envolvem questões as mais diversas.
Mas, seja como for, a inferência é tão incorreta quanto seria afirmar-se que o Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP não considera a questão de gênero por ter apenas 5 mulheres dentre os 21 professores ou atribuir-se à atualidade o fato de que a Unirio, criada em 1969, teve apenas uma mulher como reitora, situação que também se observa no fato de a lista de reitores da USP, de 1934 a 2023, ter apenas uma mulher como reitora.
Determinadas afirmações, quando não considerado o contexto em que os fatos se processam, podem provocar uma leitura apressada da realidade. O argumento, tal como posto, nos levaria, por exemplo, a afirmar que o Partido dos Trabalhadores, criado em 1980, é apenas um partido paulista e não uma agremiação partidária nacional, já que, das 12 pessoas que ocuparam a presidência, apenas uma vez ocupada por uma mulher, 8 delas eram parlamentares eleitos pelo estado de São Paulo.
É evidente que a inferência seria apressada, incorreta e não consideraria o todo.
Assim, na discussão sobre a lista tríplice e na escolha do procurador-geral da República, a questão de gênero é também um elemento a ser considerado, assim como deverá ser no debate público sobre as indicações ao STF e tal recorte ainda comporta uma leitura étnico-racial, em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira.
Os problemas, portanto, se somam, mas não podem ser imputados à lista tríplice, que, quando muito, é um retrato da sociedade em que vivemos.
Voltamos, então, ao início para saber se, em uma sociedade que pretende se consolidar como democrática, qual o melhor método de indicação do procurador-geral da República: o opaco ou o transparente?
A resposta cabe ao debate público e, especialmente, ao destinatário da decisão: a sociedade brasileira.
Ubiratan Cazetta, presidente da ANPR
Publicado originalmente no Jota