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Dolo de beneficiamento na improbidade administrativa - Quebrando mitos, medos e incertezas

Na redação original da Lei 8.429/92 conviviam a improbidade dolosa e a culposa, sendo esta apenas para casos de lesão ao erário (art. 10). Com relação ao dolo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tinha jurisprudência pacífica de que apenas se exigia o dolo genérico[1].

A reforma da Lei de Improbidade Administrativa, operada pela Lei 14.230/21, teve um foco deliberado no dolo, o qual foi mencionado[2] 12 vezes na “nova” Lei de Improbidade. O art. 1º deu bastante destaque a este instituto[3], sendo que a sua regulamentação seguiu a linha do dolo genérico, tendo-o conceituado dessa forma no § 2º, que é a vontade livre e consciente de praticar a conduta descrita na lei (tipo).

O grande problema é que o legislador resolveu criar uma figura parecida com dolo específico no § 1º do art. 11, inicialmente destinada à improbidade de violação a princípios, mas depois ampliada para todas as modalidades de improbidade administrativa, inclusive as previstas em leis especiais. Veja os dispositivos:

1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.
2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei.
De início, já se percebe uma desarmonia entre o modelo de dolo do art. 1º e o do art. 11, revelando que os §§ 1º e 2 º foram acrescentados depois e com o nítido propósito de dificultar a persecução, já que supostamente ampliou o standard de prova do elemento subjetivo.

Dolo específico é a vontade de realizar a conduta descrita na lei acrescentada de uma finalidade diferenciada descrita no próprio tipo. Esse tipo de dolo está presente nos tipos incongruentes, que são aqueles que contêm uma finalidade especial dentro do tipo, para além da conduta em si[4]. Por fugir da regra de que o dolo é aquilo que consta da conduta (teoria finalista), o dolo específico é tratado de forma excepcional em todo o ordenamento sancionador, do direito penal ao administrativo disciplinar, sendo exigido apenas quando constar dentro do tipo, para além da conduta em si.

Porém, na reforma da Lei de Improbidade Administrativa, o dolo específico foi criado “genericamente” para ser exigido em todas as modalidades e tipos de improbidade administrativa.

Inclusive, o legislador usou indevidamente como “argumento de autoridade” a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Isso porque, seguindo a lógica mundial de que o dolo específico é a exceção e não a regra, essa convenção anticorrupção só exige dolo específico no tipo do art. 19 (abuso de funções[5]), sendo que os vários outros tipos contemplados na norma internacional tratam apenas do dolo genérico (suborno, peculato, enriquecimento ilícito, apropriação indébita, malversação, desvio de bens, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, encobrimento, obstrução da justiça). Poder-se-ia pensar, aqui, num controle de convencionalidade ou interpretação conforme, mas não é necessário, pois, como veremos adiante, essa finalidade especial sempre foi comum aos tipos de improbidade administrativa.

Os novos §§ 1º e 2 º do art. 11 criaram um modelo de dolo que chamarei de dolo de beneficiamento, que consiste em valer-se do cargo para obter proveito ou benefício para si (beneficiamento próprio) ou para outra pessoa ou entidade (beneficiamento alheio).

O dolo de beneficiamento não é propriamente um dolo específico, pois está inserido genericamente em quase todas as condutas de crimes e infrações patrimoniais e também nas situações de abuso de função, cujas violações ocorrem para trazer algum benefício. Frise-se que o proveito ou benefício deve ser indevido, mas não precisa ser necessariamente financeiro.

É dizer, o beneficiamento está compreendido basicamente nas condutas das pessoas que se enriquecem; enriquecem outras pessoas ou tiram algum proveito indevido da sua função pública.

Se pararmos para pensar, a improbidade de enriquecimento ilícito sempre exigiu o dolo de beneficiamento próprio em todas as suas condutas, isto é, já está contemplado na própria descrição do tipo. Basta analisar o caput e os seus incisos, os quais exigem a conduta de auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício da função pública. É impossível criar um tipo de enriquecimento ilícito que não seja para beneficiamento de alguém!

Já a improbidade de lesão ao Erário contempla, na maioria das condutas, o dolo de beneficiamento alheio, cujo dano foi causado para gerar proveito para outra pessoa ou entidade. Podemos identificar esse dolo nos incisos I, II, III, IV, V, VII, VIII, XI, XII, XIII, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, pois em todas essas situações o dano ao Erário ocorre para beneficiar uma outra pessoa ou entidade, mediante a participação de um agente público.

De igual modo, o art. 11 (violação a princípios) também contempla o dolo de beneficiamento (próprio ou alheio) na maioria dos seus incisos (III, V, VI, VII, XI, XII), pois esse tipo é o de abuso de função, em que o agente publico se vale do seu ofício para tirar ou conceder algum proveito, justamente o mencionado no art. 19 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

Desse modo, percebe-se que o há de realmente novo no campo do elemento subjetivo é a extinção da modalidade de improbidade culposa. Já o dolo de beneficiamento sempre esteve presente em mais de 90% dos tipos de improbidade administrativa da Lei 8.429/92, desde a sua redação original.

Desse modo, perde o sentido a discussão sobre a retroatividade de norma de direito material mais benéfica (dolo específico) para alcançar processos em curso, emendando-se petições iniciais, renovando-se instruções ou até mesmo anulando-se sentenças que “não contemplaram” esse “novo” elemento subjetivo.

Conforme visto, na imensa maioria dos processos em tramitação, ajuizados antes da Lei 14.230/21, não há nada de novo para buscar numa retroatividade mais benéfica, pois seria um encontro com o próprio espelho. Esse elemento subjetivo sempre esteve contemplado na esmagadora maioria dos tipos e, dessa forma, está compreendido nas petições iniciais e, portanto, no âmbito de cognição judicial dos processos em curso, não havendo nada para ser adaptado, renovado ou anulado.

Portanto, não há motivo para pânico ou incerteza com relação ao tema do dolo na reforma da Lei de Improbidade Administrativa, pois nada de novo foi tratado com relação ao dolo, salvo a redundância dos §§ 1º e 2 º do art. 11, os quais reafirmaram um modelo de conduta e de elemento subjetivo que sempre foram contemplados na esmagadora maioria dos tipos da Lei 8.429/92.

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[1] Primeira Seção unificou a tese de que o elemento subjetivo necessário para caracterizar a improbidade é o dolo genérico (REsp 951.389).

[2] Art. 1º, § 1º, § 2º, § 3º; art. 3º, caput, art. 9º; art. 10, caput, § 2º; art. 11, caput, § 5º; art. 17, § 6º, II; art. 17-C, § 1º; art. 21, § 2º

[3] § 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.

2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

[4] O inciso VI do art. 11 traz um exemplo clássico de dolo específico, corretamente, dentro do tipo: VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades.

[5] Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o abuso de funções ou do cargo, ou seja, a realização ou omissão de um ato, em violação à lei, por parte de um funcionário público no exercício de suas funções, com o fim de obter um benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade.

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