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Racismo estrutural orçamentário na questão quilombola

Em 2021 foram empenhados apenas 10 mil reais para “Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas” (Ação 210Z vinculada ao Programa 2034/Incra, no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). A previsão orçamentária para 2022 subiu mas ficou na quantia pífia de 405 mil reais, valor que agora é repetido no orçamento previsto para 2023. 

 

Nunca houve a devida previsão orçamentária para a regularização das terras quilombolas, mas, para uma mera comparação, em 2013 era de cerca de 72 milhões. Esse valor foi decrescendo. Em 2016, leva um verdadeiro tombo, chegando a cerca de 9 milhões. A queda segue forte até uma subida em 2020, seguida então por esse valor insignificante de 10 mil reais em 2021 (são, portanto, duas reduções acentuadas, uma em 2016, de 75,49%, e outra em 2021, de 99,85%). Não é por menos que, em 2021, o TCU classificou a regularização quilombola desenvolvida pelo Incra como de “extremo risco”, em função da carência de recursos, dentre outros fatores.

O reconhecimento da propriedade das comunidades remanescentes de quilombos sobre suas terras, promovido pela Constituição de 1988, tem como sujeito de direito um povo que sofreu e continua suportando as consequências da opressão histórica relacionada à escravidão. Trata-se, portanto, de direito constitucional fundamental, necessário para assegurar os modos de criar, fazer e viver dessas comunidades, conferir-lhes existência digna e efetivar um ideal de justiça, essencialmente ligado à igualdade. 

Esses dados orçamentários não representam apenas uma atuação frustrante do Estado brasileiro na realização desse direito fundamental. Esses números pífios nos colocam diante de um racismo estrutural, que perpetua nos dias de hoje a discriminação aos negros e a vedação do seu acesso à terra.

O Regimento dos Capitães-do-mato de 1722 , de Dom Lourenço de Almeida, então governador da capitania de Minas Gerais, é apontado como possivelmente a primeira criminalização oficial de “quilombos formados distantes de povoação onde estejam acima de quatro negros”. O Alvará Régio de 3 de março de 1741 também determinava que os que fossem “achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espadua com a letra F”. Nas palavras de Luiz Gama, advogado baiano negro: “Em nós, até a cor é um defeito.” 

Índios e negros foram escravizados. Todavia, já em 1511, a partir do sermão do padre dominicano espanhol António de Montesinos, na Ilha de São Domingos (onde hoje se situam a República Dominicana e o Haiti), instala-se um debate quanto ao cabimento da escravização de índios americanos. A bula papal Dum Diversa, emitida em 1452 pelo papa Nicolau V, autorizava a conquista de territórios e a escravatura perpétua de pagãos. Mas na bula Sublime Deus, de 1537, o papa Paulo III passa a afirmar que a liberdade dos índios não seria roubada. O missionário dominicano Bartolomé de Las Casas, ao defender a mesma tese, já em 1535, sugeria mandar para cada colono nas Antilhas um número conveniente de negros, para resolver o problema crônico de falta de mão de obra. Assim, ao se colocar contra o sistema de “encomienda”, de submissão dos índios, apresentava como opção a escravidão dos negros. O padre Antônio Vieira, jesuíta provincial da Companhia de Jesus no Maranhão, antes de ser expulso em 1661, também defendia como solução a substituição da mão de obra indígena por escravos africanos. 

A crônica falta de mão de obra indígena decorria do aniquilamento dessa população pelas guerras de colonização e, principalmente, pelo choque epidemiológico em razão das moléstias trazidas pelos europeus, com as quais já tinham contato os escravos africanos. Todavia, como se vê, também houve em certa medida uma opção pela escravidão de negros, que acabaram por experimentar um tratamento ainda mais aviltante. 

A concentração de terras e a injustiça agrária brasileiras datam de muito cedo, mas há um episódio marcante, que foi o protagonizado pela Lei de Terras (Lei 601/1850). A lei teve pouca consequência prática, na parte em que pretendia regularizar as terras, inspirada no plano de colonização da Austrália. Mas foi eficaz em reter nas terras com vínculos de trabalho os escravos libertos, impedindo sua dispersão pelo território nacional e o acesso à pequena propriedade. Aliás, isso tem ligação com o fato mais determinante para a nossa desigualdade: o do Brasil ter sido o último a abolir a escravatura, em 1888. André Rebouças, engenheiro baiano negro, em carta a Joaquim Nabuco, afirmava: “A abolição da escravatura eu vivi para ver. A democracia rural, não. Quem possui a terra possui o homem”.

A Constituição de 1824 já havia deixado claro que a proteção dos direitos civis e políticos se voltava aos “Cidadãos Brazileiros”, que eram os proprietários (art. 179, inc. XXII). Na iminência da abolição da escravatura, a Lei de Terras, em 1850, transforma a terra em mercadoria, só admitindo o acesso a ela por meio da compra, e a Lei Saraiva, em 1881, exige renda mínima e proíbe o voto de analfabetos. 

Assim, quando finalmente advém a Lei Áurea (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888), a abolição da escravidão foi apenas relativa ou formal. No campo, o negro não tinha acesso à terra. Na cidade, o Código Criminal de 1890 passou a sancionar a “vadiagem” com pena de 15 a 30 dias de prisão, como forma de controle da população negra, diferentemente da pena de trabalho de 8 a 20 dias do Código Criminal do Império de 1831. No contexto em que se deu, a escravidão adquiriu uma característica de indelebilidade, se constituindo no traço essencial da sociedade brasileira.

Joaquim Nabuco vaticinava que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. É por todos esses fundamentos que foi revolucionária a Constituição de 1988, no sentido de quebrar paradigma, ao prever que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir lhes os títulos respectivos” (art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias). De crime no Regimento dos Capitães-do-mato de 1722, a reunião de negros em quilombo passa a constituir direito fundamental constitucional.

Mas o acesso do negro à terra permanece negado até os dias atuais, com a questão se desdobrando no reconhecimento da propriedade das comunidades remanescentes de quilombos sobre suas terras. Desde a promulgação da Constituição de 1988, apenas 314 títulos foram expedidos, sendo 143 pela União e 171 pelos estados e municípios. Uma vez que são 1.796 processos abertos no âmbito federal, isso representa que apenas 7,96% das demandas quilombolas reivindicadas foram atendidas (em números de 2022). 

A Constituição de 1988, para os quilombolas, não contém norma similar ao art. 67 do ADCT que prevê que a “União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” Já a Constituição Estadual da Bahia, sim: “Art. 51. O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a identificação, discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.” A Constituição Estadual do Mato Grosso também, assim como a Constituição do Estado do Pará. 

Em setembro de 2020, na ADPF 742, o STF reconheceu a omissão do Estado brasileiro na proteção territorial quilombola. Já havia sido determinada, na mesma ação, em fevereiro de 2021, a adoção de medidas de urgência no combate à pandemia nos quilombos por parte do governo Bolsonaro. Passados mais de cinco meses da decisão, as informações prestadas evidenciaram a permanência de uma omissão estatal histórica na garantia dos direitos territoriais quilombolas, com impactos acentuados à população quilombola na pandemia. Diante da omissão, foi determinado que a União apresentasse, no prazo de 15 dias, metas, cronograma e dotação orçamentária para finalização dos processos de titulação das comunidades distribuídas por todo país. 

Assim, a mudança desse quadro exige a eliminação do racismo estrutural no orçamento de 2023.

*Publicado originalmente no Jota

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