Artigos

Reduzir 80% do desmatamento ilegal na Amazônia em 3 anos é possível

Esse texto não desconhece as complexidades, peculiaridades e necessidades que a Região Amazônica possui. E não tem a ambição de exaurir tudo aquilo que deveria ser feito em virtude das carências e demandas acumuladas pela população local em decorrência de décadas de descaso e de políticas equivocadas para o bioma. O único propósito aqui é apresentar ações mínimas que, sem depender de novas leis e nem de substanciais incrementos orçamentários, reduziriam em 80% do desmatamento ilegal na Amazônia nos próximos três anos. 

1) O estabelecimento de um processo simplificado de regularização fundiária, sem a necessidade de vistorias presenciais por servidores públicos, com a regra de ouro para que nenhuma área desmatada ilegalmente, após 22 de julho de 2008, identificada pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), possa ser objeto de titulação. Havendo causas específicas como, dentre outras, o conflito entre particulares pela mesma área, o processo de titulação deve voltar a seguir o rito tradicional. Essa metodologia resolveria a titulação de cerca de 70 a 80% da demanda por regularização fundiária na região, ao mesmo tempo em que passaria uma forte mensagem  do Estado no sentido de que desmatamentos ilegais recentes não serão mais tolerados ou estimulados.

2) O embargo remoto, por parte do Ibama, de todo o desmatamento ilegal na Amazônia, identificado pelo sistema Prodes do Inpe, sem autorização do órgão competente, aplicando a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Projeto Amazônia Protege do Ministério Público Federal.

3) A realização de 12 operações por ano para retirada e apreensão de gado e soja, com base nos seguintes critérios: a produção estar dentro de áreas desmatadas ilegalmente após 1º de janeiro de 2018; e a área estar em município com desmatamento ilegal acima de 40 km2 por ano. Menos de 1% da área utilizada para fins produtivos na Amazônia está nesses dois critérios. A quase totalidade do setor produtivo estaria protegido das ações de apreensão, ao mesmo tempo em que o Ibama combateria com rigor as organizações criminosas atualmente estabelecidas. Além disso, o próprio município teria o poder de escolher se seria alvo ou não das operações ficando acima ou abaixo do limite de 40 Km2 por ano. Essa metodologia de criação de metas para as cidades apresentou resultados significativos no âmbito do Projeto Municípios Verdes, criado pelo MPF em parceria com o Governo do Estado do Pará, alcançando, dentre outros resultados, a retirada de seis municípios da lista dos maiores desmatadores da Amazônia.

4) A criação de uma plataforma pública oficial para consulta, por meio das coordenadas geográficas da área (latitude e longitude), contendo todo o desmatamento ilegal identificado pelo sistema Prodes do Inpe, sem autorização do órgão competente, após 22/07/2008. Essa ação deve ser seguida de ampla campanha publicitária, capitaneada pelo Governo Federal, para alertar que adquirir ou realizar qualquer atividade econômica naquelas áreas é crime e que nenhum possuidor pode alegar boa-fé nessa hipótese.

5) A execução conjunta, pelo MPF e pelo Ibama, de 12 decisões judiciais, transitadas em julgado, no âmbito do Projeto Amazônia Protege, por ano, para retomada de áreas públicas, com a apreensão e/ou destruição dos bens ali produzidos, em locais desmatados ilegalmente e recentemente.

6) A realização de, no mínimo, quatro operações por ano pelo MPF, Receita Federal, Polícia Federal e Ibama com o objetivo de combater grandes organizações criminosas na região. Essas operações devem investigar não só os crimes ambientais, mas também os financeiros correlatos, como a lavagem de dinheiro, a sonegação tributária, além de delitos como falsidade, corrupção e etc. A metodologia de trabalho já se mostrou exitosa na redução do desmatamento ilegal nas operações Rios Voadores e Castanheira.

7) A realização de auditorias anuais pelo Ibama, a partir do uso de tecnologia geoespacial, em todos os planos de manejo aprovados pelos órgãos estaduais.

8) A implementação, pelo Governo Federal, de um amplo programa de rastreabilidade tecnológica para as commodities produzidas na Amazônia, como forma de garantir que a produção ali realizada não tenha contato com o desmatamento ilegal, unidades de conservação, áreas indígenas e de populações tradicionais e quilombolas. Devem ser utilizadas apenas ferramentas tecnológicas e de fácil verificação geoespacial, num processo escalonado. É possível começar em 2024, pelos cerca de 50 municípios da Amazônia que registram mais de 40 km2 de desmatamento ilegal por ano, e apenas para as propriedades rurais com mais de 3 mil hectares. Em 2025, o projeto avançaria para propriedades rurais entre 500 e 3 mil hectares e, em 2026, para as demais. O produtor rural não deve ter nenhum custo com a implementação do sistema que, além de servir para o controle, melhora a produtividade e a gestão da propriedade rural. Todo o financiamento deve ser feito pelo Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES. Na falta de liderança do Governo Federal nesse item, o protagonismo deve ser assumido pelos Governos Estaduais e pelas grandes empresas privadas, com destaque para as grandes redes de supermercados, frigoríficos e compradores de grãos que se abastecem da produção amazônica.

9) A reedição e ampliação, pelo Governo Federal, do programa Municípios Verdes, criado pelo MPF e pelo Governo do Estado do Pará com metas socioambientais para as cidades e prêmios (como, por exemplo, financiamento bancário com juros menores) em decorrência do cumprimento dos objetivos. Nesse contexto, deve ser criado um selo verde que valorize e traga benefícios para os produtores rurais dos municípios que alcançarem as metas.

10) As instituições financeiras devem interromper o financiamento bancário para áreas desmatadas ilegalmente, identificadas pelo sistema Prodes do Inpe e sem autorização do órgão competente, realizando a consulta dos locais em situação irregular diretamente no site desses órgãos.

11) Para o fortalecimento da ferramenta Prodes, o INPE deve criar um setor para recebimento e análise célere das contestações, a serem encaminhadas por via remota por qualquer interessado, em relação a eventual falso positivo na identificação do desmatamento ilegal.

12) Os Governos estaduais devem realizar a validação do Cadastro Ambiental Rural, retirando do sistema os cadastros falsos e verificando todos os itens, a partir de imagens de satélites, identificados nas diretrizes publicadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público sobre o assunto. Destaca-se, no referido documento, a necessidade de suspender ou cancelar o CAR com desmatamento ilegal após 22/07/2008.

13) Garantir transparência ao Cadastro Ambiental Rural em todos os estados, como já acontece no Estado do Pará há anos. A guia de trânsito animal também deve ser transparente nos termos de diversas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal.

14) Destinar, de forma urgente, mais de 56 milhões de hectares (o tamanho da Espanha) de florestas públicas não destinadas. Cerca de 50% do desmatamento ilegal na Amazônia ocorre nesses locais. Trata-se de um patrimônio de todos os brasileiros que, diariamente, é apropriado por organizações criminosas.

15) Finalizar a criação de todas as áreas indígenas, unidades de conservação, territórios quilombolas e de populações tradicionais pendentes de análise na região.

16) Em nenhuma hipótese, em todas as instâncias e órgãos administrativos, regularizar, indenizar ou considerar para qualquer aquisição de direito, áreas desmatadas ilegalmente após 22/07/2008, identificadas pelo sistema Prodes, do INPE, e sem autorização de desmatamento.

17) Criar um amplo portal eletrônico de regularização simplificada de áreas desmatadas ilegalmente, após 22/07/2008, com os seguintes requisitos: não utilizar tais áreas para qualquer finalidade produtiva permitindo a recomposição florestal; e pagar, a título de indenização civil, o valor de 5% do que é estabelecido para as multas do Ibama pelo Decreto 6514/2008. O monitoramento da recuperação dessas áreas deve ser feito de forma transparente e por tecnologia geoespacial.

18) Vincular os sistemas do CAR, GTA (Guia de trânsito animal) e das notas fiscais.

19) Priorizar a exploração madeireira por meio da concessão florestal.  As medidas elencadas ainda estão longe de suprir todas as legítimas necessidades da região, mas trariam uma redução rápida e significativa do desmatamento ilegal. São ações que abrangem não apenas punição e controle, mas também mecanismos para garantir segurança jurídica a 99% dos produtores da região que, além de estarem protegidos das ações de fiscalização, poderiam usufruir de incentivos e do ganho de imagem gerado pela redução de desmatamento ilegal. Por outro lado, as ações propostas são fortes, rigorosas e focadas no combate à criminalidade que está em ação no presente momento na região, com perspectiva de ganhos para toda a sociedade a curto, médio e longo prazo. 

 

*Daniel Azeredo, procurador da República

*Publicado originalmente no jornal O Globo 

logo-anpr