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As armadilhas do projeto de lei sobre abuso de autoridade

A lei de abuso de autoridade hoje vigente (Lei n.º 4.898) é de 1965. O objetivo declarado do projeto é nobre, mas o seu texto está repleto de armadilhas que nada têm a ver com isso e que miram alvo certo: os agentes encarregados da segurança pública e da persecução penal. De outro lado, o projeto é omisso quanto aos abusos no exercício de prerrogativas parlamentares ou os praticados pelas autoridades políticas do governo.

A primeira armadilha diz respeito à possibilidade de o particular promover ação penal privada subsidiária (art. 3º, §5º). Como está redigido, o projeto permite interpretar que mesmo quando o Ministério Público houver fundamentadamente descartado a ocorrência de abuso de autoridade a auto-alegada vítima poderá mover processo contra o autor do suposto abuso. Com essa porta aberta, haverá a "privatização" da justiça criminal, fenômeno que beneficiará alguns escritórios de advocacia e pessoas com dinheiro para pagá-los, inclusive para que usem a ação penal subsidiária como instrumento de retaliação ou de intimidação contra policiais, membros do MP e juízes que estejam contrariando seus interesses.

A segunda armadilha reside na criação de novos tipos penais com redação extremamente imprecisa e aberta, sujeita a interpretações subjetivas, como os que criminalizam a obtenção de informações sigilosas sem autorização (arts. 22 e 42), o uso de provas que posteriormente venham a ser consideradas ilícitas (art. 25), o flagrante preparado e o teste de integridade (art. 26), o uso de diálogo entre investigado e advogado como prova (art. 28), o oferecimento de denúncia sem justa causa fundamentada (art. 30), o excesso de prazo na investigação (art. 31), ou exceder dos limites do mandado (art. 21 e 38). Tais irregularidades, hoje, causam a nulidade da prova e do processo, o que é suficiente para salvaguardar os direitos individuais, sendo desnecessário transformá-las em crimes punidos com prisão.

Na prática, os novos crimes permitirão acusações e condenações de agentes públicos com base numa subjetividade que o direito penal simplesmente não admite. Exemplo: o policial que apreender o celular do suspeito e identificar nele provas de crimes sexuais pode ser acusado de abuso de autoridade caso a Justiça entenda, anos depois, que aquela prova era ilícita porque o policial examinou o aparelho sem autorização. O mesmo acontecerá com o promotor que mover uma ação penal e um tribunal superior, discordando dos juízes que anteriormente julgaram o caso, e entender que "não havia justa causa fundamentada" para a denúncia.

A determinação do que seja "justa causa fundamentada", ilicitude de uma prova ou excesso no cumprimento das funções não possui balizas legais ou doutrinárias claras. A insegurança jurídica causada pela ameaça permanente de sofrer acusação de abuso de autoridade será um desestímulo para que membros do Ministério Público levem adiante acusações criminais, especialmente contra poderosos, por receio de que suas ações se voltem contra si. O mesmo ocorrerá em relação à atuação de policiais e juízes, sobretudo de primeiro grau. A impunidade aumentará.

A terceira armadilha é a exigência de que do mandado de prisão temporária conste a data em que o preso será libertado (art. 43). A previsão ignora o fato de que nem sempre a prisão é efetuada de imediato. A captura de um foragido pode demorar anos. Na prática, a polícia teria poucos dias para executar a prisão, sob pena de o mandado perder sua validade, o que estimulará a fuga dos investigados.

Entre as omissões mais sentidas no projeto está a falta de previsão de punição ao abuso das prerrogativas parlamentares, como a sua utilização para atender a interesses pessoais próprios ou de terceiros. Nem mesmo o argumento de "acabar com a carteirada", repetido nos últimos dias, procede: o projeto não prevê como crime o conhecido "você sabe com quem está falando?"

A atual lei sobre abuso de autoridade, sem dúvida, tem falhas e precisa ser melhorada. O projeto em discussão hoje no Senado, entretanto, é imprestável a esse propósito: servirá primordialmente para manietar, constranger e tolher a ação das autoridades encarregadas da segurança pública e da persecução penal, em especial o Ministério Público, as polícias e juízes de primeiro grau. O projeto inverte os valores da República a tal ponto que parece ter sido concebido para permitir que o bandido processe o mocinho.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Braziliense, no dia 19 de julho de 2016.

Bruno Calabrich é procurador regional da República.

Hélio Telho é procurador da República.

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