O senador caiu do topo do Legislativo para o fundo do poço. Uma caudalosa cachoeira afogou-o numa maré de azar, que já vai alta. Além do curriculum, passou a ter folha corrida. Disseram por aí que o parlamentar teria falado com o empresário Carlinhos Cachoeira mais de uma vez por dia ao telefone entre fevereiro e agosto de 2011. Acho que nem com uma amante um sujeito tem tanto assunto.
O cara que ajudou o Brasil a descobrir o verdadeiro senador goiano foi o sujeito que lhe garantiu (“eu agarantcho”, disse ele) que o celular, tipo rádio, que Carlos Cachoeira lhe deu seria imune a grampos. O aparelho estava registrado nos EUA. Realmente, interceptar comunicações no exterior é mais difícil, mas não é impossível, graças a ferramentas de cooperação internacional. No caso de Goiás, nem isso foi necessário. Bastou pedir a escuta dos telefones em roaming aqui mesmo no Brasil. A garantia tabajara ajudou a nação, e o senador, depois de passar por um strip pocker, entrou num perigoso jogo que podia se chamar buraco. Ouça aqui parte dos diálogos.
Operação Monte Carlo (feito n. 12023-03.2011.4.01.3500), conduzida pelo Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) e pela Polícia Federal no Distrito Federal (DPF/DF), abateu o antes respeitado senador goiano, que parecia uma ave rara na Câmara Alta. Contudo, de uma queda, ele foi ao chão. Acudiu-lhe um só cavalheiro, o único disposto a lhe estender a mão.
Quando a “casa ca-cai”, homens públicos em severos apuros costumam convocar para sua defesa o dr. Antônio Carlos de Almeida Castro, o “Kakay”. Dublê de restauranteur e advogado, Kakay é um advogado de causas impossíveis e um ás de ouros da embaralhada prática forense brasileira. Por sua vez, Cachoeira convocou uma respeitada grife para sua defesa, o ex-ministro Márcio Thomáz Bastos, acostumado a incríveis royal straight flushes no tapetão judiciário. Para grandes males, grandes remédios. Essas bancas são muito bem pagas. É preciso ganhar na megasena para quitar esses honorários.
Partindo de declarações iniciais de Kakay à imprensa, podemos adivinhar suas cartas em juízo:
a) a primeira será questionar a competência da Justiça Federal de primeiro grau em Goiás;
b) como consequência, sua segunda tese será impugnar os indícios obtidos contra o senador, pois teriam sido ilicitamente coletados.
O homem não está blefando. Tentará mesmo dar um roque dentão no Ministério Público. – “Para que discutir a inocência de meu cliente se posso impugnar as provas da acusação?”. Em outras palavras, com base no art. 5º, incisos LIII e LVI, da CF, a defesa deve sustentar a incompetência absoluta do juiz federal que autorizou as escutas e a tese da ilicitude das provas assim obtidas. Vai tentar usar uma carta-coringa, manjada por qualquer croupier forense:
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
Para isto, Kakay deve lançar na mesa o instituto da reclamação constitucional, apresentada ao STF (art. 102, inciso I, alínea `l`, da CF), “para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões”.
Esses argumentos defensivos têm por base o foro especial por prerrogativa de função (o foro privilegiado). Várias autoridades, incluindo os parlamentares federais, gozam dessa prerrogativa, o que lhes dá o direito de serem processados apenas pelo Procurador-Geral da República (PGR) e julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nos termos do art. 102, inciso I, alínea `b`, da CF.
A tese defensiva, já anunciada na imprensa, parece consistente. Mas não é um xeque-mate. Tal como a do senador flagrado, as aparências iludem. Não será assim tão fácil mandar esse caso para um pizzaiolo. Nenhuma garantia é absoluta. Todas sofrem algum temperamento. Primeiramente, há de se observar que a investigação goiana tinha em mira pessoas não detentoras de foro especial. Os telefones destas é que foram grampeados pelo juiz federal (juiz natural). Os diálogos do senador com o principal suspeito foram capturados apenas porque o telefone deste último estava sob interceptação. As conversas de ambos não tinham relação direta com o esquema de caça-níqueis e máquinas de bingo. Trata-se de mero encontro fortuito de prova, a tal “serendipidade”. O MPF jogou um dardo no que viu e acertou no que não via.
Em outras palavras, as conversas do parlamentar só foram interceptadas ocasionalmente, por acidente, nos momentos em que este dialogou ao telefone com uma pessoa submetida a um grampo legítimo, instaurado com base no art. 5º, inciso XII, da CF e na Lei 9.296/96. Diálogos seus foram pescados, e ele enredou-se.
O senador não era o alvo da Operação Monte Carlo (íntegra aqui). Logo, era possível prosseguir com as investigações contra os suspeitos originais, antes de cogitar a investigação do terceiro que surgiu nos diálogos. A interceptação não é um fim em si mesma e pode não provar nada. É quase sempre mera ferramenta de obtenção de provas, para um inquérito ou processo. O senador, que é o “terceiro” nesta história, nunca foi investigado pelo MPF em primeiro grau, e ninguém tem bola de cristal para adivinhar com quem o alvo inicial de um grampo vai dialogar. Segundo o que se lê na imprensa, os indícios que diziam respeito ao senador foram encaminhados ao PGR, preservando-se o princípio do “promotor natural” e a competência criminal constitucional.
A esta técnica de persecução dá-se o nome de “isolamento”. Os indícios sobre o terceiro dotado de foro privilegiado foram encapsulados e remetidos ao foro adequado, sem análise das escutas ou dos eventos. Outros diálogos suspeitos foram mandados para a PGR assim que a Monte Carlo mostrou suas cartas. Cabe às autoridades competentes, o PGR e o STF, determinar o início de uma investigação autônoma contra o suspeito assim identificado, e apontar a conexão, se houver. Isto porque os elementos colhidos pelos órgãos de base servem apenas como notícia-crime, meros indícios cuja confirmação dependerá de providências investigativas autônomas.
Não se pode esquecer que a interceptação é um meio excepcional de investigação. Não é e não pode ser a primeira opção de apuração, dado o seu caráter intrusivo. Foi, portanto, absolutamente correta a atuação do juiz federal, dos procuradores da República em Goiânia e do delegado federal de Brasília, quando destacaram e encapsularam os indícios relativos ao senador e os encaminharam ao PGR. A este caberia iniciar uma investigação criminal específica, ou aguardar a conclusão da apuração original em primeiro grau, para não prejudicar a deflagração da operação Monte Carlo e preservar as provas contra o maior número possível de suspeitos. Pelo que dizem os jornais parece ter sido esta última a opção do PGR, o que resultou na identificação de 43 agentes públicos envolvidos no esquema Monte Carlo (agentes e/ou delegados da Polícia Federal, Polícia Cvil, Polícia Rodoviária e Polícia MIlitar) e depois na instauração do Inquérito 3430/DF, contra o senador. Longe de representar um engavetamento do caso, a retenção dos indícios pela PGR serviu ao interesse público. Tais elementos foram complementados logo após a deflagração da Operação Monte Carlo, por nova remessa feita pelo MPF em Goiás.
A jurisprudência dos tribunais superiores reconhece a validade de provas ou indícios fortuitamente encontrados. O STF assim se pronunciou:
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA LICITAMENTE CONDUZIDA. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA DA PRÁTICA DE CRIME PUNIDO COM DETENÇÃO. LEGITIMIDADE DO USO COMO JUSTA CAUSA PARA OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição da República, considerou compatível com o art. 5º, XII e LVI, o uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto da interceptação, seja punido com detenção. 2. Agravo Regimental desprovido. (AI 626214 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/09/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010)
Também o Superior Tribunal de Justiça tem posição sobre o tema:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART. 288 DO CÓDIGO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA OFERECIDA EM DESFAVOR DOS PACIENTES BASEADA EM MATERIAL COLHIDO DURANTE A REALIZAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA PARA APURAR A PRÁTICA DE CRIME DIVERSO. ENCONTRO FORTUITO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONEXÃO ENTRE O CRIME INICIALMENTE INVESTIGADO E AQUELE FORTUITAMENTE DESCOBERTO. I – Em princípio, havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demonstração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, a uma, porque a própria Lei nº 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se quedar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitucional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. II – A discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa. Habeas corpus denegado. (HC 69.552/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2007, DJ 14/05/2007, p. 347)
O encontro fortuito de prova (hallazgo fortuito) não está regulado pela Lei 9.296/96, mas a doutrina brasileira e estrangeira a admitem. A escuta realizada em Fulano e Beltrano flagra crime de Sicrano. Este último deverá ser investigado em conjunto com os dois primeiros, se cúmplices, ou em inquérito autônomo, a partir dos indícios reunidos na investigação originária. Não importa se este fato é conexo ou não com os delitos inicialmente apurados. O Estado tem o dever de iniciar a persecução criminal contra Sicrano, sem fingir que nada aconteceu. A prova do caso “xis” será emprestada para deflagrar o caso “y”.
No caso Monte Carlo, é aparente a incompetência do juízo federal que autorizou as escutas que flagraram o senador. Na sua origem, a investigação focou pessoas sem foro especial. O alvo eram os peões, não as Torres. Casualmente, chegou-se ao senador. Os indícios colhidos contra ele foram então deslocados para o novo juízo competente, o STF. Situação algo semelhante foi objeto do conflito de competência CC 87.589/SP, julgado pela 3ª Seção do STJ. Para esta corte, a competência se firma no momento em que a escuta é requerida. Se esta situação se alterar após a inserção dos grampos, a prova pretérita continua a ser absolutamente legítima (licitamente obtida):
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DEFERIDA POR JUÍZO FEDERAL. INDÍCIOS DE CRIME DE RUFIANISMO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. Embora o procedimento tenha se originado por meio de medida cautelar (interceptação telefônica), deferida pelo Juízo Federal, se as investigações lograram comprovar tão-somente a prática, em tese, do delito de rufianismo, irrelevante a alegação de existência de dependência com ação penal versando acerca de tráfico de pessoas, porquanto não se verifica que as provas produzidas tenham relação com o processo principal em curso na Justiça Federal. 2. Inocorre o instituto da prevenção previsto no art. 83 do Código de Processo Penal porquanto inexistem dois juízos igualmente competentes. Em que pese a decretação da interceptação telefônica ter se dado pelo Juízo Federal, óbice não se verifica para que a apuração do suposto crime ali revelado ocorra perante a Justiça Estadual por ser a competente para o exame do feito, sob pena de afronta ao princípio do juiz natural. 3. Conflito conhecido para determinar competente o suscitado, Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos e Polícia Judiciária de São Paulo/SP. (STJ, 3ª Seção, CC 87.589/SP, rel. Min. Og Fernandes, j. 25/03/2009).
Mesmo aqueles que exigem a conexão entre o delito investigado e o crime descoberto admitem que as escutas sobre o terceiro servem como fonte de prova, isto é, como notícia-crime que fundamentará investigação específica sobre o “estranho” identificado. Este ponto é relevante porque, salvo raríssimas exceções, a escuta não prova diretamente nada. Não incrimina nem exonera. É somente um indício a ser confirmado por outras fontes ou provas.
Em suma, não existe limitação subjetiva para a utilização da prova derivada de escuta telefônica legítima. Tendo ou não tendo relação com o esquema investigado, o terceiro que surgir nas escutas também pode ser investigado, seja no inquérito original ou em apuração autônoma. A partir desses elementos fortuitamente encontrados uma nova apuração poderá ser iniciada, se necessário. Eis o que decidiu o STJ, exigindo, porém, a conexão:
HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. PERDA DO OBJETO. PROVA. ESCUTA TELEFÔNICA. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. 1. Constatada a revogação da prisão preventiva do ora Paciente, resta esvaído parte do objeto do presente writ, que visava ao reconhecimento de constrangimento ilegal pela manutenção da prisão cautelar.2. É lícita a prova de crime diverso, obtida por meio de interceptação de ligações telefônicas de terceiro não mencionado na autorização judicial de escuta, desde que relacionada com o fato criminoso objeto da investigação. 3. A legitimidade do Ministério Público para conduzir diligências investigatórias decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/93. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial – titular exclusivo da ação penal pública -, proceder a coleta de elementos de convicção, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria. Writ prejudicado em parte e, na parte conhecida, denegado.(STJ, 5ª Turma, HC 33.553/CE, rel. Min. Laurita Vaz, j. 17/03/2005).
No mesmo sentido foi a decisão do STJ no HC 123.285/AM, relatado pelo ministro Jorge Mussi, da 5ª Turma, e julgado em 8/fev/2011.
Dito isto, parece-me que o STF terá boa matéria-prima para definir esta importante questão. Na mesa de julgamento, não haverá espaço para katchanga. O direito comparado indica que o Ministério Público tem uma canastra real nas mãos. O primeiro julgador a ser chamado a decidir sobre a validade da prova será o ministro Ricardo Lewandowski, relator do Inquérito 3430/DF contra D.L.X.T. (é assim que o nome do investigado aparece no site da suprema corte).
Num caso recente, o STF deixou bem claro que admite o encontro fortuito de provas em interceptação telefônica, mesmo contra autoridades que gozam de foro especial. Foi no MS 28.003/DF, relatado pelo ministro Luiz Fux:
CNJ: dispensa de sindicância e interceptação telefônica – 6
No mérito, aduziu-se competir ao CNJ o controle do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados brasileiros, cabendo-lhe receber e conhecer de reclamações contra membros do Poder Judiciário (CF, art. 103-B, § 4 º, III e V). Consignou-se que, tendo em conta o princípio da hermenêutica constitucional dos “poderes implícitos”, se a esse órgão administrativo fora concedida a faculdade de avocar processos disciplinares em curso, de igual modo, poderia obstar o processamento de sindicância em tramitação no tribunal de origem, mero procedimento preparatório. Ademais, realçou-se que, no caso, o CNJ concluíra pela existência de elementos suficientes para a instauração de processo administrativo disciplinar, com dispensa da sindicância. Rechaçou-se, ainda, a alegação de invalidade da primeira interceptação telefônica. Registrou-se que, na situação em apreço, a autoridade judiciária competente teria autorizado o aludido monitoramento dos telefones de outros envolvidos em supostas irregularidades em execuções de convênios firmados entre determinada prefeitura e órgãos do governo federal. Ocorre que a impetrante teria mantido contatos, principalmente, com o secretário municipal de governo, cujo número também seria objeto da interceptação. Assim, quando das degravações das conversas, teriam sido verificadas condutas da impetrante consideradas, em princípio, eticamente duvidosas — recebimento de vantagens provenientes da prefeitura —, o que ensejara a instauração do processo administrativo disciplinar. Acresceu-se que a descoberta fortuita ou casual do possível envolvimento da impetrante não teria o condão de qualificar essa prova como ilícita. Dessa forma, reputou-se não ser razoável que o CNJ deixasse de apurar esses fatos apenas porque o objeto da citada investigação criminal seria diferente das supostas irregularidades imputadas à impetrante. Discorreu-se, ademais, não poder o Judiciário, do qual o CNJ seria órgão, omitir-se no tocante à averiguação de eventuais fatos graves que dissessem respeito à conduta de seus magistrados, ainda que colhidos via interceptação de comunicações telefônicas judicialmente autorizada em inquérito instaurado com o fito de investigar outras pessoas e fatos diversos.
(STF, MS 28.003/DF, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/o acórdão Min. Luiz Fuz, 8.2.2012).
A situação do senador Demóstenes Torres é um pouco diferente da de outros políticos aparentemente flagrados com a mão no pote ou no jackpot. Quando renunciou ao seu mandato em 2001, Jáder Barbalho perdeu o foro especial, foi preso e algemado. Por enquanto, o foro do parlamentar goiano é o STF. Mesmo que seja expulso do seu partido ou se desfilie – o que já o fez -, continuará a ter essa garantia processual. Se for cassado ou renunciar, sua situação mudará, mas não perderá o privilégio de foro. Como membro do Ministério Público do Estado de Goiás, o moribundo senador tem direito a foro especial no Tribunal de Justiça de seu Estado de origem.
Segundo o art. 96, inciso III, da Constituição, compete privativamente aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.
Assim, se não renunciar nem for cassado – o que é muitíssimo improvável –, o senador será julgado no STF. Caso contrário, será submetido a julgamento no TJ/GO, mesmo que tenha cometido crimes federais. Isto porque, para a doutrina, salvo nos crimes eleitorais, a competência para julgamento de juízes de Direito e promotores de Justiça é sempre do tribunal do Estado em que atuam, ainda que a infração penal não seja ordinariamente entregue a julgamento de tais cortes. Esta regra é diferente no caso dos prefeitos municipais, que podem ser julgados no TJ ou no TRF ou no TRE.
Em suma: as provas obtidas no caso Monte Carlos são legítimas. Os sinais ou indícios que surgiram contra o senador Demóstenes Torres não invalidam a operação Monte Carlo. A remessa integral dos autos à instância superior só se justificaria se houvesse elementos concretos contra a autoridade com prerrogativa de foro. O simples fato de o parlamentar `X` falar ao telefone com o investigado `Y`, estando este grampeado, não implica automaticamente a inclusão de `X` no rol dos suspeitos e tampouco exige imediata declinação de competência a foro superior. Em mais de uma oportunidade, em respeito às regras de competência funcional, o STJ e o STF admitiram, com base no art. 80 do CPP, o desmembramento de inquéritos ou ações penais originárias, com sujeição apenas do detentor do privilégio de foro à corte superior e manutenção da causa contra os demais agentes no foro de origem (STJ, Corte Especial, AP 529/MT, rel. Francisco Falcão, j. em 14/out/2009) (STF, Inq. 2548/DF, rel. min. Menezes Direito, j. em 13/mar/2008).
Idêntica orientação foi adotada na questão de ordem no Inq. 1871, julgado pelo pleno do STF em 01/ago/2003, tendo como relatora a ministra Ellen Gracie: “Inquérito. Investigação sobre tráfico de influência e suposto esquema de venda de habeas corpus. Apuração de crimes que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro privativo . Questão de Ordem resolvida no sentido do desmembramento do inquérito, preservando-se a competência constitucional de órgãos judiciários distintos.“
Enfim, estamos fartos dos sepulcros caiados. O senador Demóstenes Torres foi apontado diversas vezes pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar como um dos “cabeças do Congresso”. A Política pode ser uma roleta russa, e o Direito Penal uma loteria. Por seu aparente envolvimento com o rei do jogo, agora é a cabeça do senador que está a prêmio, sob a lâmina de uma guilhotina. Aparecer com poker face na mídia não lhe trará conforto. Na cachoeira de denúncias em que se meteu, cascatas não ajudarão D.L.X.T a manter-se na partida. Sua mão não está nada boa, e sua sorte já foi lançada. O plenário agora é outro e quem dá as cartas é o STF. Quer apostar qual será o resultado? Pode dar zebra. A presunção de inocência o favorece. Mas o antigo tribuno já é uma carta fora do baralho.
*Vladimir Aras é diretor de Assuntos Jurídicos da ANPR e procurador da República na PR/BA
Texto originalmente publicado em http://blogdovladimir.wordpress.com/2012/04/04/cachoeira-abaixo-o-caso-d-l-x-t/