Artigos

Caso Siro Darlan: É possível a retroatividade jurisprudencial?

Recentemente, o ministro Edson Fachin reconheceu, em sede de Habeas Corpus (HC n. 200.197/RJ), a ineficácia de acordo de colaboração premiada e declarou nulas as provas obtidas em decorrência do acordo, trancando, por conseguinte, a Ação Penal n. 951/RJ, em curso no Superior Tribunal de Justiça[1].

Na ocasião, considerou-se que houve usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça quando o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro homologou acordo de colaboração premiada que abarcava, entre os delatados, Desembargador de Justiça. Segundo o ministro, a análise e a homologação do acordo deveria ter sido realizada pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo como base a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria[2].

Ocorre que o referido acordo foi celebrado e homologado em 2016, sendo que apenas em 2018 o Supremo Tribunal Federal passou a entender que, na hipótese de o acordo de colaboração premiada englobar autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função entre os delatados, será competente para análise e homologação do pacto o juízo mais graduado, ou seja, o responsável por eventual ação penal em face da autoridade. Antes, porém, admitia-se a homologação do acordo na esfera inferior e o encaminhamento para a esfera superior, para possível homologação, apenas do(s) anexo(s) envolvendo a autoridade com foro, procedimento adotado no caso em questão.

Diante dessa realidade, é admissível a retroatividade de posicionamento jurisprudencial para favorecer o réu?

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 642.185/MG que a mudança jurisprudencial posterior ao trânsito em julgado não constitui fundamento para revisão criminal, não tendo sido admitido, portanto, a retroatividade do posicionamento jurisprudencial, sob pena de violação dos princípios da coisa julgada e da segurança jurídica.

E como fica a retroatividade em matéria processual, no caso competência, é admissível?

Diferentemente do que ocorre no direito material penal, que admite a retroatividade da norma que venha a favorecer o réu, no campo processual penal vigora a regra da aplicação imediata da norma, preservando-se incólumes os atos realizados com base na legislação anterior.

Além disso, ao tratar sobre a competência nos casos de processo envolvendo autoridade com foro, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento que “a partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais – do STF ou de qualquer outro órgão – não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional”[3]. Tem-se a denominada perpetuatio jurisdictionis. Por meio desse posicionamento, o Supremo busca preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional.

E no campo da colaboração premiada, como fica?

Na colaboração premiada, a jurisdição se consolida no instante que o juízo homologa o acordo de colaboração premiada. Neste momento, caberá ao juízo analisar os aspectos de legalidade, utilidade e interesse público do acordo, baseando-se nas normas vigentes durante a decisão. Desse modo, com a homologação é inadmissível a retroatividade de norma jurídica, mesmo que mais favorável, por exemplo, a um delatado, seja a norma de caráter legal ou jurisprudencial, visto que as normas processuais são irretroativas, bem como se busca evitar riscos à efetividade e à racionalidade da persecução penal. Entendimento em sentido diverso gerará um contexto de insegurança jurídica na incidência de institutos processuais, como é o caso da colaboração premiada, que é “negócio jurídico processual”, e de instabilidade na prestação jurisdicional.

Referências

[1]https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/23/fachin-encerra-acao-penal-contra-desembargador-do-rio-siro-darlan.ghtml.

[2] Habeas Corpus. 2. Inquérito originário do Superior Tribunal de Justiça. Delitos de corrupção passiva (art. 317 do CP), lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei 9.613/98) e falsidade ideológica eleitoral (art. 350 do Código Eleitoral). 3. Conforme art. 4º, § 7º, da Lei 12.850/13, o acordo de colaboração premiada “será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade”. Muito embora a lei fale apenas em juiz, é possível que a homologação de delações seja da competência de Tribunal. O colaborador admite seus próprios delitos e delata outros crimes. Assim, quanto à prerrogativa de função, será competente o Juízo mais graduado, observadas as prerrogativas de função do delator e dos delatados. Precedentes. 4. Acordos de colaboração premiada celebrados pelo Ministério Público Estadual e homologados por Juiz de Direito, delatando Governador de Estado. Ilegitimidade e incompetência. 5. Legitimidade da autoridade com prerrogativa de foro para discutir a eficácia das provas colhidas mediante acordo de colaboração realizado sem a supervisão do foro competente. A impugnação quanto à competência para homologação do acordo diz respeito às disposições constitucionais quanto à prerrogativa de foro. Assim, ainda que, ordinariamente, seja negada ao delatado a possibilidade de impugnar o acordo, esse entendimento não se aplica em caso de homologação sem respeito à prerrogativa de foro. Inaplicabilidade da jurisprudência firmada a partir do HC 127.483, rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 27.8.2017. 6. Ineficácia, em relação ao Governador do Estado, dos atos de colaboração premiada, decorrentes de acordo de colaboração homologado em usurpação de competência do Superior Tribunal de Justiça. 7. Tendo em vista que o inquérito foi instaurado tendo por base material exclusiva os atos de colaboração, deve ser trancado. 8. Concedida a ordem, para reconhecer a ineficácia, em relação ao paciente, das provas produzidas mediante atos de colaboração premiada e, em consequência, determinar o trancamento do Inquérito 1.093, do Superior Tribunal de Justiça. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 151605. Disponível em:<https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&queryString=compet%C3%AAncia%20colabora%C3%A7%C3%A3o%20foro&sort=_score&sortBy=desc.> Acesso em: 05 de junho. de 2020.

[3] Direito Constitucional e Processual Penal. Questão de Ordem em Ação Penal. Limitação do foro por prerrogativa de função aos crimes praticados no cargo e em razão dele. Estabelecimento de marco temporal de fixação de competência. I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. 4. A orientação aqui preconizada encontra-se em harmonia com diversos precedentes do STF. De fato, o Tribunal adotou idêntica lógica ao condicionar a imunidade parlamentar material – i.e., a que os protege por 2 suas opiniões, palavras e votos – à exigência de que a manifestação tivesse relação com o exercício do mandato. Ademais, em inúmeros casos, o STF realizou interpretação restritiva de suas competências constitucionais, para adequá-las às suas finalidades. Precedentes. II. Quanto ao momento da fixação definitiva da competência do STF 5. A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais – do STF ou de qualquer outro órgão – não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Precedentes. III. Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. 8. Como resultado, determinação de baixa da ação penal ao Juízo da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, em razão de o réu ter renunciado ao cargo de Deputado Federal e tendo em vista que a instrução processual já havia sido finalizada perante a 1ª instância.
(AP 937 QO, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-265 DIVULG 10-12-2018 PUBLIC 11-12-2018).

* texto publicado originalmente no site Jota

logo-anpr