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Colaboração premiada, sanção pecuniária e a morte do colaborador

A colaboração premiada é um negócio jurídico personalíssimo que gera uma série de direitos e obrigações entre as partes. Diante dessa realidade, é inadmissível que terceiros, inclusive o juízo homologador1, possa participar das negociações, bem como interferir no mérito de um acordo de colaboração premiada2.

Com a celebração de um acordo de colaboração premiada, diversos direitos e obrigações entre as partes são fixados, entre os quais estão, em desfavor do colaborador, deveres de caráter pecuniário. Diante do caráter personalíssimo da colaboração premiada, a morte do colaborador extingue todas as obrigações fixadas no acordo, inclusive as pecuniárias?

O Código Penal, em seu art. 107, inciso I3, estabelece que a morte do agente ocasiona a extinção da punibilidade. Diante da redação deste dispositivo e a natureza personalíssima do acordo de colaboração premiada, a princípio a morte do colaborador deveria resultar na extinção de todas as obrigações fixadas no acordo.

Ocorre que entre as obrigações estabelecidas em um acordo de colaborações premiada, algumas são de caráter pecuniário, normalmente denominadas no termo do acordo como “multa”.

Esta engloba duas espécies de obrigações pecuniárias, uma de caráter sancionatório e outra de cunho reparatório, que poderá corresponder ao ressarcimento do dano ocasionado pela atuação ilícita do colaborador e/ou perdimento de produtos advindos da atividade ilícita. A natureza diversa da obrigação pecuniária fixada gerará efeitos diversos no destino do recurso, bem como na permanência ou não do dever após a morte do colaborador.

A primeira espécie de obrigação pecuniária, as de caráter sancionatório, serão extintas com a morte do colaborador, nos termos do art. 107, I do Código Penal. O destino do recurso será estabelecido pelo Ministério Público nos limites da lei.

Já na outra espécie de obrigação pecuniária, a destinação do recurso e a morte do colaborador ocasionará efeitos totalmente diversos. A parte da “multa” que englobe o ressarcimento do dano ocasionado pela atuação ilícita do colaborador e/ou perdimento de produtos advindos da atividade ilícita deverá ser destinada ao ente que sofreu o dano ou prejuízo, como mecanismo de recomposição do prejuízo ocasionado pela atividade ilícita praticada pelo colaborador. Desse modo, não deverá ser admitido que o Ministério Público e/ou o juiz estabeleçam destinação diversa ao recurso, em decorrência da impossibilidade de disporem de patrimônio alheio. Em caso de morte do colaborador, diferentemente do que acontece com as demais obrigações estabelecidas no acordo, a obrigação reparatória fixada não será extinta automaticamente, podendo incidir (ser cobrada) do espólio do colaborador, em razão de se enquadrar como uma situação de incorporação ilícita de bens de terceiro pelo colaborador, devendo, por conseguinte, ser retirada do patrimônio do colaborador mesmo após a sua morte. A natureza dessa obrigação pecuniária é similar a dos feitos genéricos e específicos da condenação, constantes nos artigos 91, 91A e 92 do Código Penal4. Ou seja, foge do caráter personalíssimo da pena, enquadrando-se, portanto, como um efeito de caráter pecuniário voltado à reparação do dano ocasionado pelo crime.

Em razão dessa dúplice natureza da “multa” (obrigação pecuniária) estabelecida no acordo de colaboração premiada, é de suma importância que seja especificado no termo do acordo a natureza das obrigações pecuniárias fixadas entre as partes.

Referências

[1] Lei n. 12850/2013 – “art. 4. (…) § 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – regularidade e legalidade; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (…)”

[2] AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. COLABORAÇÃO PREMIADA REALIZADA ANTES DA LEI 12.850/2013. IMPUGNAÇÃO POR CORRÉU. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE OUTRAS NORMAS LEGAIS REGULAMENTANDO O INSTITUTO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DAS CLÁUSULAS DO ACORDO E DAS LEIS 9.613/1998 E 9.807/1999. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – “Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas […]. De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor” (HC 127.483, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno). II – Para dissentir do acórdão impugnado e verificar a procedência dos argumentos consignados no apelo extremo, seria necessário o reexame das cláusulas constantes do termo de colaboração premiada – o que é vedado pela Súmula 454/STF – e das normas infraconstitucionais pertinentes ao caso, sendo certo que eventual ofensa à Constituição seria apenas indireta. III – Agravo regimental a que se nega provimento. STF RE 1103435 AgR / SP

[3]“Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

I – pela morte do agente;

(…)”

[4] Efeitos genéricos e específicos

Art. 91 – São efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.

1o Poderá ser decretada a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior. (Incluído pela Lei nº 12.694, de 2012)

2o Na hipótese do § 1o, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda. (Incluído pela Lei nº 12.694, de 2012)

Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Art. 92 – São também efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

II – a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado; (Redação dada pela Lei nº 13.715, de 2018)

III – a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único – Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

 

* GALTIÊNIO DA CRUZ PAULINO Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestre pela Universidade Católica de Brasília e doutorando pela Universidade do Porto. Possui pós-graduação em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp. Orientador pedagógico da ESMPU. Ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República. No MPF, foi membro-auxiliar do procurador-geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no STF, entre 2018 e 2019, e atualmente é membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

** Artigo publicado originalmente no site Jota

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