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Construindo o futuro

Determinados tipos de afirmações são muito arriscados, pois facilmente resvalam para a platitude ou para o acacianismo vazio. Dizer que determinado evento ou ano recentes foram históricos é uma das frases que têm enorme propensão para se enquadrar nessas categorias. Imersos que estamos no torvelinho dos acontecimentos, falta-nos isenção de ânimo e perspectiva para vaticinar sobre como o futuro perceberá o presente. Mesmo assim, resolvi arriscar. Findando o ano civil e também o ano judiciário, senti-me obrigado a fazer um balanço dos acontecimentos singulares que tive a honra de acompanhar no exercício dos meus encargos. Minha modesta conclusão: 2015 foi, sim, um ano histórico. Em mais de 30 anos de Ministério Público, não me lembro de outros anos que se possam equiparar em suas particularidades e nuanças. Mas vamos por partes.

Após muitos acontecimentos e reviravoltas, o já distante início de 2015 estreava cheio de surpresas e expectativas. A Operação Lava Jato chegava finalmente ao núcleo político da organização criminosa que pôs em funcionamento um dos mais intrincados e complexos esquemas de corrupção revelados, inclusive no plano internacional. O Brasil passava a ser destaque na imprensa mundial, pois o centro da corrupção irradiava de uma gigante do mercado de petróleo e gás, ramificando-se para outros países – da Europa, da América do Norte, da África e da Ásia. Dávamos então os primeiros passos que engajariam o País numa das maiores investigações contra a corrupção de que se tem notícia no mundo.

A chamada “lista do Janot” – título que sempre recusei pelo simples motivo de que a relação de investigados com prerrogativa de foro derivava diretamente de duas colaborações premiadas (Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa), e não da minha vontade pessoal – converteu-se na instauração de mais de 30 inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) contra figuras expressivas do plano político. Lembro-me das especulações e dos questionamentos infundados acerca das razões pelas quais não foram oferecidas denúncias imediatamente. O tempo encarregou-se de dar a resposta. Hoje temos senadores e deputados das mais variadas vertentes políticas denunciados a partir de robusto acervo de provas no STF.

Em meio à crise política e econômica, as investigações avançaram sem cor partidária ou ideológica. Não houve mesuras ao poder político, tampouco econômico – dois dos mais festejados e ricos empresários do País e um senador no exercício do cargo estão presos por motivos estritamente jurídicos. A democracia brasileira revelou, a espectadores entre incrédulos e estupefatos, um vigor e uma maturidade inimagináveis até então. Sinto, assim, que cruzamos aquela linha difusa e indeterminada que separa a pulsação juvenil da serenidade adulta: a democracia brasileira amadureceu e florou. Os frutos virão com o tempo; tempo este eminentemente jurídico, no mais das vezes dissociado do tempo jornalístico, do tempo político ou do clamor popular. A Lava Jato não foi nem será indolor e como líder do Ministério Público trairia a verdade e subestimaria a inteligência alheia se não admitisse esse fato. Mas devo esclarecer também que a crise por que passamos não foi causada pelas investigações, mas pela corrupção endêmica que contaminou o Estado brasileiro e precisa ser debelada, sob pena de perecerem seus mais sublimes valores republicanos. É isso que induvidosamente querem os brasileiros: da esquerda à direita, dos liberais aos conservadores. Há, quero crer, um consenso social: se o solo está corrompido, é inútil discutir o que plantar sobre ele.

Não é por outra razão que o Ministério Público Federal preparou um pacote com sugestão de dez medidas legislativas de combate à corrupção para aperfeiçoamento do nosso sistema jurídico, que infelizmente ainda é excessivamente brando com os crimes de colarinho-branco. A Lava Jato certamente passará e o furor do momento seguirá com ela. É fundamental que esse espírito cívico de mobilização permanente que hoje inspira a sociedade brasileira reverta em algo concreto e permanente contra a corrupção e a impunidade. Foi exatamente com esse pensamento que optamos por seguir o caminho mais longo do processo legislativo e legitimar as propostas com a chancela da iniciativa popular. Em quase seis meses de campanha, já engajamos a sociedade, que abraçou incondicionalmente a campanha. Angariamos, com o esforço conjunto dos membros do Ministério Público brasileiro e dos cidadãos, quase 800 mil assinaturas. Igrejas, times de futebol, escolas, artistas, ONGs, todos estão nessa luta. É preciso pensar o futuro agora.

Por óbvio, isso não quer dizer que estamos esmorecendo nos compromissos do presente. As investigações seguem firmes. Certa vez fui questionado sobre até onde iriam as investigações da Lava Jato. Respondi incontinenti: é preciso perguntar a essas pessoas até onde elas foram. E esse é o espírito que anima os membros do Ministério Público a seguir em frente. Iremos aonde tivermos de ir, além do Bojador, além da dor… Cumpriremos fielmente o nosso compromisso com a Constituição federal, com a sociedade brasileira.

Por fim, no anoitecer deste ano, que certamente entrará para a História, sem romantismo quixotesco, mas também sem o pessimismo byroniano, deixo uma mensagem de esperança: o Brasil passará e os bons passarão com ele. Estou consciente de que não cabe ao Ministério Público, nem individualmente a nenhuma pessoa ou instituição, a missão de salvar a pátria. Seria soberba e estupidez acreditar nisso. Compete, sim, ao parquet lutar contra a improbidade, investigar aqueles que negociam inescrupulosamente o interesse social, combater a apropriação do público pelo privado. E essa missão que a Constituição federal nos confiou será cumprida até o fim e sob quaisquer que sejam as condições. Estamos prontos para esse desafio. O resto, o Brasil fará, por si mesmo.

*Rodrigo Janot é procurador-geral da República e publicou o artigo no jornal O Estado de S. Paulo (http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/construindo-o-futuro/)

 

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