Introdução1
O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão e, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos (EUA), o processo de abolição não foi seguido por nenhuma política de cunho reparatório ou indenizatório. Nas duas últimas décadas, o tema entrou em pauta no Brasil em razão da polêmica sobre as chamadas cotas raciais, através das quais se reserva um percentual do número de vagas nos exames e seleções públicas para candidatos negros ou indígenas.
A primeira universidade pública a prever esse tipo de ação afirmativa no país, isto é, baseada exclusivamente no critério racial, foi a Universidade estadual do Rio Janeiro (UERJ), no ano 2000. Desde então, várias outras instituições públicas de ensino superior, no exercício da autonomia universitária definida constitucionalmente2, implementaram sistemas de cotas raciais nos seus respectivos exames de acesso (vestibulares), seja de modo associado ao critério econômico baseado na renda mínima familiar do candidato, seja mediante a utilização do critério racial autonomamente, de que é exemplo deste último caso a Universidade de Brasília (UNB), em conformidade com suas respectivas especificidades locais e regionais.
Após um período de instabilidade jurisprudencial, em que várias ações questionando as cotas raciais universitárias foram ajuizadas por todo o país e geraram decisões contraditórias, ora favoráveis às cotas, no sentido de julgá-las constitucionais, ora desfavoráveis, para declarar sua inconstitucionalidade em controle concreto, o assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF) através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186/DF, julgada pelo pleno do tribunal em 2012. A ação fora ajuizada pelo partido político Democratas-DEM, em face da UNB e outros para impugnar os atos administrativos da universidade que instituíram o sistema de reserva de vagas, baseado no critério racial, no processo de seleção para ingresso em seus cursos.
A ADPF foi julgada improcedente, à unanimidade, pelo STF que, em suma e nos termos do voto do Relator da arguição, o Ministro Ricardo Lewandowski, entendeu que a ação afirmativa, para fins de promover a inclusão no ensino público superior, está em consonância com o princípio da igualdade material. O objetivo do presente trabalho é, portanto, o estudo das questões teóricas que o acórdão suscita a fim de descortinar se o princípio da igualdade fora ou não bem aplicado pela corte constitucional brasileira na presente hipótese.
O primeiro questionamento é perquirir se o objetivo da discriminação, qual seja, promover o acesso de estudantes em situação de vulnerabilidade ao ensino superior, através da sistemática da reserva de vagas, possui suporte constitucional. Na sequência, em sendo positiva a resposta, consoante se pretende demonstrar, verificar-se-á se a utilização do critério racial para se efetuar a discriminação positiva no caso é, de fato, adequada, conforme decidido pelos ministros do STF. Ou se o critério econômico, baseado exclusivamente na renda familiar seria suficiente para contemplar todos os estudantes em situação de desvantagem - inclusive os negros - e promover a igualdade no corpo discente universitário, como pugnou o arguente na ADPF em foco.
Para se formular esse juízo sobre a adequação ou não do critério racial adotado pela universidade, a análise da igualdade será feita sob a vertente do princípio da proporcionalidade, recorrendo-se ao estudo de acórdãos do Tribunal Constitucional português sobre a matéria (igualdade proporcional).
Nesse raciocínio, a utilização do recurso à analogia será também abordada com o propósito de definir se, no caso concreto, a diferença entre brancos de baixa renda e negros justifica a discriminação positiva para fins de acesso às universidades públicas, uma vez que os juízos de adequação e analogia estão intrinsecamente relacionados.
Qual o fator preponderante, considerando o objetivo em causa, para se concluir pela distinção entre os estudantes de baixa renda e os beneficiários da cota racial e, consequentemente, pela (in)constitucionalidade da reserva de vagas no ensino público superior para pessoas negras? Essa é a grande questão que se coloca e em relação à qual se pretende chegar a algumas respostas através do presente trabalho, tomando-se por base razões jurídicas e epistêmicas, consoante demonstrar-se-á na sequência.
- Case study: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/DF do Supremo Tribunal Federal
Em 2009, o partido político Democratas-DEM ajuizou a ADPF no STF, com pedido de liminar, tendo por objetivo a declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 38/CEPE, de 18 de junho de 2003, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNB, dentre outros atos administrativos da universidade, que instituiu o sistema de cotas para ingresso nos cursos da universidade (20% do total de vagas em cada curso), baseado no critério étnico-racial, no que diz respeito à reserva de vagas para estudantes negros3 (pretos e pardos4) especificamente.
Alegou o arguente, em sua petição inicial, violação a uma série de normas e princípios da Constituição Federal brasileira (CF/88), dentre os quais destacam-se os artigos 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana), 3º, IV (redução das desigualdades sociais), 4º, VIII (repudio ao terrorismo e racismo), 5º, I (igualdade), princípio da proporcionalidade e artigo 208, V (princípio meritocrático para acesso ao ensino superior). Como argumentos para fundamentar o pedido, aduziu, basicamente, que (i) políticas afirmativas baseadas no critério racial, nos moldes daquelas adotadas nos Estados Unidos, não são adequadas à realidade brasileira e decorrem de uma interpretação superficial dos dados estatísticos; (ii) a dificuldade e acesso à educação e, consequentemente, de ocupar posições destacadas na sociedade decorre da precariedade da situação econômica das pessoas negras, que, infelizmente, constituem a maioria da população pobre do país, e não pela cor de sua pele; (iii) a instituição de cotas para negros não resolve o problema, ao contrário, pode gerar uma discriminação reversa em relação aos brancos pobres e beneficiar indevidamente negros de classe média em ofensa ao princípio da igualdade. Por fim, critica a ausência de critérios objetivos para identificar os beneficiários da cota, o que seria possível somente a partir de exames de DNA e que essa dificuldade é agravada no caso do Brasil por se tratar de um país com elevado índice de miscigenação, consoante aduziu na petição inicial.
Várias entidades e associações, em sua maioria dedicadas à defesa de pessoas negras, além da Defensoria Pública da União (DPU), requereram o ingresso no processo como amicus curiae. O relator do processo, o Ministro Ricardo Lewandowski, acolheu os requerimentos de ingresso e determinou a realização de audiências públicas. Durante as audiências, foram ouvidos, além das partes envolvidas no processo, instituições estatais encarregadas da execução de políticas de educação e combate à discriminação étnica e racial, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão público responsável por mensurar os resultados dessas políticas públicas, além de outros representantes de diversos setores da sociedade civil, em especial acadêmico e jurídico, e pelo menos um médico da área da genética, entre defensores e contrários ao sistema de cotas raciais.
Após as polêmicas audiências, o pedido deduzido na ADPF foi julgado totalmente improcedente pelo relator da arguição. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski, inicialmente, afastou as questões preliminares e conclui pelo cabimento da arguição por se achar preenchido o requisito da subsidiariedade, uma vez que não haveria outro meio de sanar a alegada lesividade, porquanto o ato impugnado não decorre de lei em sentido estrito, o que torna incabível a ação direta de inconstitucionalidade.
No mérito, julgou que o sistema de reserva de vagas para candidatos negros está em consonância com a CF/88, que consagrou o princípio da igualdade em sua acepção material e autoriza o Estado a implementar ações afirmativas com o objetivo de superar desigualdades históricas que atingem determinados grupos sociais, conferindo-lhes vantagens específicas por um período temporal limitado. Com relação aos critérios de acesso ao ensino superior, consignou que a aferição exclusivamente pelo mérito não está de acordo com os princípios e fins norteadores do direito à educação (desenvolvimento da pessoa humana, exercício para cidadania, igualdade de acesso, pluralismo de ideias e gestão democrática, dentre outros), razão pela qual tal previsão deve ser abrandada e lida em conformidade com a concepção da igualdade material espraiada por todo o texto constitucional. Na sequência, reconheceu a adequação do critério racial para se fazer a discriminação positiva na presente hipótese, não como dado biológico ou científico, mas enquanto conceito construído histórica e socialmente, na linha do decidido no caso Ellwanger (HC nº 82.424/RS)5, com vistas a promover a inclusão e integração social dos negros. O ministro relator se utilizou, ainda, de dados estatísticos para acrescentar que os cidadãos de cor negra são excluídos da sociedade brasileira, seja na esfera pública como privada, em decorrência do preconceito e da discriminação a que estão submetidos, conquanto, na maioria das vezes, de forma velada. Com espeque em tais fundamentos, entendeu que a política de reserva de vagas para candidatos negros adotada pela UNB revela proporcionalidade e razoabilidade, porquanto adequada para atingir os fins perseguidos.
O voto do relator foi acolhido integralmente pelos demais ministros da corte que julgaram, à unanimidade, a ADPF improcedente e reconheceram a constitucionalidade do sistema de reserva de vagas baseado no critério étnico-racial. O então ministro Cezar Peluso utilizou como fundamento de seu voto o princípio da proporcionalidade e foi o único, dentre os ministros, que fez uma ponderação de forma mais explícita para declarar que a medida então questionada é adequada, necessária e possui peso axiológico suficiente para justificar as restrições aos candidatos de outros grupos ou etnias.
O voto do ministro Marco Aurélio foi na mesma direção, tendo acrescentado que, após mais de dez anos da prática na UERJ, não havia um único episódio de conflito racial que pudesse ser associado à adoção do sistema de cotas raciais para refutar a alegação do arguente de que a medida poderia acirrar o conflito e a discriminação em relação aos negros. Ademais, consignou que eventuais distorções ou arbitrariedades das comissões de avaliação e identificação dos beneficiários das cotas raciais não constituem argumento contra a adoção do sistema, o que pode ocorrer em relação a outros tipos de cotistas, como hipossuficientes e pessoas com deficiência, por exemplo, sem que isso impeça a implementação de benefícios favoráveis a esses grupos, ainda que, pontualmente, sejam verificadas fraudes ou equívocos.
O único voto que, apesar de não haver divergido do Relator na parte dispositiva, dissentiu em sua fundamentação foi o do ministro Gilmar Mendes. Com efeito, o ministro questionou a utilização do critério exclusivamente racial, desvinculado do socioeconômico, para a implementação da ação afirmativa em causa e, de acordo com seu entendimento, a sistemática precisaria ser aprimorada. Porém, nos termos de sua conclusão, como se tratava de um sistema ainda experimental, com previsão de duração de dez anos e que se encontrava em seu oitavo ano à época, julgou improcedente a arguição.
Logo após o julgamento, foi editada a Lei nº 12.711/2012, de 24 de agosto, a qual prevê a reserva de vagas nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio para alunos oriundos de escolas públicas e que comprovem baixa renda, dentro das quais deverá haver um percentual mínimo de pretos, pardos e indígenas (artigo 3º). A Lei determina a cota mínima de reserva dessas vagas, porém as universidades e institutos federais continuam com autonomia para, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir sistemas de cotas complementares, inclusive, lastreados no critério exclusivamente racial, sem mais possibilidade de questionamento judicial pela adoção desse critério em específico, conforme a decisão do STF na ADPF.
Verificar o acerto ou não dessa decisão, com base na aplicação conjugada dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, é o que se pretende a partir do desenvolvimento dos tópicos seguintes.
- Do Princípio da igualdade
O princípio da igualdade possui natureza eminentemente formal6, no sentido de que, ao contrário dos princípios materiais, não assegura nenhum direito específico de forma autônoma. A igualdade perante a lei expressa que o Estado deve conferir tratamento isonômico aos cidadãos, sem desconsiderar, todavia, as suas semelhanças e diferenças. Em outras palavras, Ronald Dworkin discorre que a XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos (Equal Protection Clause) assegura o direito de todos serem tratados com a mesma consideração e respeito, o que não implica, por outro lado, que o ordenamento jurídico deva conceder idênticos direitos e as mesmas posições de vantagem a todos os cidadãos indistintamente7.
Nesse sentido, pondera Robert Alexy que o legislador não pode assumir que os cidadãos tenham idênticas características e se encontrem nas mesmas situações fáticas8.
Assim, formulou-se o clássico enunciado segundo o qual “o igual deve ser tratado igualmente; o desigual, desigualmente”; ou, em outras palavras, que os desiguais devem ser tratados na exata medida de suas desigualdades9. Definir quais os critérios de distinção e em quais condições o tratamento desigual é legítimo é o ponto nodal do postulado da igualdade, do contrário, toda e qualquer discriminação seria possível, desde que feita em relação a pessoas e situações diferentes, qualquer que fosse o motivo da diferenciação10. Discriminações baseadas em preconceitos e estereótipos, por exemplo, jamais serão justas, ainda que tragam algum tipo de benefício social11. Daí falar-se em proibição do arbítrio como limite para a liberdade de conformação do legislador, que deverá sempre respaldar o tratamento diferenciado em fundamentos razoáveis e finalidades legítimas12.
Numa perspectiva mais filosófica, Dworkin rechaça a ideia de igualdade tendo como parâmetro o bem-estar, porquanto não se trata de um conceito suficientemente claro para permitir distinções na medida em que cada pessoa pode ter a sua concepção particular de bem-estar e avaliá-lo de forma diferente. Segundo o referido autor, a igualdade que o Estado deve assegurar é de recursos, a fim de criar um ambiente o mais equânime possível, onde as pessoas tenham as mesmas, ou ao menos assemelhadas, oportunidades de alcançar o bemestar. O êxito ou não de atingir a felicidade e outras realizações pessoais, profissionais etc. dependerá das escolhas e da capacidade de cada um13.
Essa concepção dworkiana vai ao encontro do que a doutrina convencionou chamar de princípio da igualdade material ou, consoante Cristina Queiroz, “«nova» fórmula ou «nova» formulação do princípio da igualdade”, o qual não compreende uma postura meramente passiva do Estado, no sentido de apenas não efetuar discriminações arbitrárias, mas antes o obriga a realizar discriminações positivas14. O ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa Gomes, dentro desta mesma perspectiva, discorre que o Estado passa de uma posição até então de neutralidade para uma atuação proativa na busca da concretização da igualdade substancial e promoção da justiça social, mediante a adoção de ações que visem erradicar ou mitigar desigualdades econômicas e sociais15.
Em outras palavras, porém de modo a corroborar com a acepção material do princípio da igualdade, Alexy, afirma que o referido princípio, previsto no artigo 3º, § 1º da Constituição alemã, engloba um complexo de direitos subjetivos e posições jurídicas, não sendo suficiente interpretá-lo numa perspectiva apenas negativa. Abstratamente, segundo o autor alemão, do princípio da igualdade decorrem dois tipos de direito: o “direito prima facie à igualdade jurídica”, traduzido como um direito prima facie à não realização de um tratamento desigual; e o “direito prima facie à igualdade fática”, que pressupõe um direito prima facie a uma ação positiva por parte do Estado16.
É no princípio da igualdade material que se fundamentam as ações afirmativas, através das quais se objetiva promover determinados grupos ou minorias em reconhecida situação de vulnerabilidade social. Ao contrário do que afirmam os críticos das medidas inclusivas, não se trata de favores ou privilégios, mas de direitos viabilizados através da concessão de determinadas vantagens, a fim de mitigar desigualdades estruturais, históricas e econômicas - que podem decorrer de questões de raça, gênero, origem etc. -, sem os que tais diferenças tendem a se perpetuar na sociedade. Esse tipo de política pública, portanto, possibilita que esses indivíduos alijados da sociedade tenham efetivas condições de acesso e de oportunidades, sobretudo, para usufruir dos bens sociais e concorrer no mercado de trabalho.
Costuma-se falar, principalmente quando baseadas no critério racial, que as ações afirmativas possuem natureza compensatória, ou seja, têm por escopo compensar as injustiças sofridas por determinados grupos no passado em decorrência da discriminação ou preconceito a que foram submetidos. Todavia, consoante ressalta Ronald Dworkin ao discorrer sobre os programas de admissão de universidades americanas fundados na raça, não se trata de uma compensação num sentido retroativo, mas de um mecanismo voltado essencialmente para o futuro, porquanto visa melhorar a situação e a representação proporcional desses grupos na sociedade, com ganhos para a comunidade como um todo, a qual, ao mesmo tempo em que tenta eliminar equívocos do passado, torna-se mais equilibrada e justa17.
Nos Estados Unidos, onde as ações afirmativas são adotadas desde os anos 196018, a Suprema Corte americana, ao julgar Regents of Univ. of California v. Bakke, 438 U.S. 265 (1978), entendeu que os programas de admissão nas universidades lastreados na raça são constitucionais e não violam a XIV Emenda, desde que não prevejam cotas fixas e considerem a raça em conjunto com outros fatores19.
No Brasil, as políticas inclusivas de acesso ao ensino superior são mais abrangentes e preveem inclusive sistemas de reserva de vagas, dentre outras técnicas, para determinados grupos, como estudantes de baixa renda e/ou oriundos de escolas públicas; ou raças, tais quais pessoas negras e indígenas. Aferir a constitucionalidade do sistema de cotas para acesso a universidades é o que se propõe no tópico seguinte, à luz de princípios e regras constitucionais extraídos da carta magna brasileira.
2.1. Constitucionalidade das ações afirmativas para inclusão no ensino superior
De acordo com o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADPF nº 186/DF, não há dúvidas de que a política pública de inclusão para ingresso em cursos universitários, através da sistemática da reserva de vagas, possui supedâneo constitucional. Algumas ações afirmativas foram definidas no próprio texto constitucional brasileiro, como a proteção das mulheres no mercado de trabalho, mediante a concessão de incentivos especiais (artigo 7º, XX), e pessoas com deficiência20 em concursos públicos (artigo 37, VIII), sendo, neste último caso, expresso quanto à reserva de vagas21. O que, por outro lado, consoante o acórdão proferido na referida ADPF, não impede a adoção de outras políticas de ações afirmativas não previstas expressamente na Constituição, desde que tenham o escopo de reparar desigualdades fáticas, razão pela qual não se trata de meras concessões ou benefícios, antes devem ser assumidas como deveres do Estado, em conformidade com princípios previstos constitucionalmente22.
Conforme se depreende das lições de Joaquim Barbosa Gomes, o sistema de cotas fixas começou a ser pensado a partir da associação das ações afirmativas à ideia mais ousada da igualdade de oportunidades, a fim de promover a efetiva representação de minorias em determinados setores do mercado de trabalho e instituições educacionais, para cujo objetivo os procedimentos tradicionais de combate à discriminação não estavam sendo suficientes. Isso não afasta, todavia, a utilização de outros mecanismos através dos quais ações afirmativas podem ser efetivadas, que vão desde a previsão de preferências e bonificações até a concessão de incentivos fiscais à iniciativa privada como estímulo à adoção de práticas inclusivas23.
A sub-representação e a marginalização social de minorias ou de determinados grupos, que fazem com que ocupem posições e cargos normalmente considerados subalternos ou de pouco relevância, aos quais suas imagens ficaram associadas, não decorrem de circunstâncias meramente individuais, muito mais do que isso revelam um problema social, como falta de renda e discriminação, em razão do gênero, da condição social, física ou da raça, por exemplo. Em consequência disso, os membros desses grupos, se não são impedidos, precisam percorrer um caminho bem mais árduo e tortuoso para lograr uma melhor posição social e outras conquistas pessoais e profissionais. Ações afirmativas visam, portanto, igualar as oportunidades de acesso aos bens sociais e eliminar o desequilíbrio existente entre os diversos grupos na sociedade24.
A educação superior é um dos meios, senão o principal, através dos quais se pode evoluir socialmente e obter as realizações que a maioria das pessoas almeja. Em relação ao acesso ao ensino superior, a CF/88, no artigo 208, inciso V, adotou o critério de mérito ao determinar que o ingresso nos níveis mais avançados “do ensino, da pesquisa e da criação artística” será feito de acordo com a capacidade de cada estudante. Não se pode olvidar, por outro lado, que resta consignado em seu artigo 205, caput, que a educação tem como objetivos “o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício para a cidadania e a sua qualificação para o trabalho”; além disso, como princípios da prestação do ensino, elencados no artigo 206, incisos III e VI, constam respectivamente, o pluralismo de ideias e a gestão democrática do ensino público, dentre outros.
Esses dispositivos revelam que o legislador constitucional, ao consagrar o direito fundamental à educação e assegurar a prestação do ensino em caráter universal, pretendeu muito mais que a difusão do conhecimento e o progresso da ciência. Com efeito, a preparação para a cidadania e a participação numa sociedade democrática e plural são, por exemplo, finalidades inatas da transmissão do ensino, que defluem diretamente do texto constitucional.
Nessa senda, a norma prevista no artigo 208, inciso V, da CF/88 não pode ser interpretada de forma desvinculada do arcabouço constitucional em que o direito fundamental à educação está inserido. Assim, é evidente, a partir de uma leitura integrada do texto constitucional25, que a aferição do mérito não é o único e exclusivo critério autorizado pela Constituição para ingresso nas universidades e faculdades públicas.
Nessa perspectiva ampla, Dworkin afirma que, como a educação superior é um recurso escasso por estar disponível para poucos e ser financiado com recursos públicos, as universidades e faculdades têm a responsabilidade de eleger metas que beneficiem uma comunidade maior do que seus próprios corpos discente e docente. Para definir essas metas, que podem ter diversas motivações, desde a vocação para o serviço comunitário à origem geográfica incomum, e os respectivos critérios de admissão através dos quais entendam ser mais apropriado alcançá-las, as instituições de ensino superior gozam de liberdade acadêmica26, que, no caso do Brasil, resta assegurada pelo princípio da autonomia universitária previsto na Constituição, artigo 207, caput.
Dentre essas metas, a promoção da diversidade no ambiente acadêmico foi reconhecida pela Suprema Corte dos EUA como legítima e suficiente para respaldar a utilização do critério racial em programas de admissão em cursos universitários. Ao julgarem Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003), no qual se questionou a constitucionalidade da política de inclusão racial da faculdade de Direito da Universidade de Michigan, os juízes da Suprema Corte americana assentaram que a cláusula da proteção da igualdade não impede que a faculdade de Direito se utilize da raça como critério de admissão, desde que tenha por objetivo alcançar os benefícios educacionais decorrentes da formação de um corpo discente diversificado27.
A diversidade do corpo discente numa universidade é importante porque atende, a um só tempo, a dois objetivos essenciais. Primeiro, porque os alunos estarão melhor preparados, não só para a vida profissional, como para conviverem numa sociedade democrática e plural, se tiverem contato desde logo com colegas de diferentes origens, raças, religiões etc.28. Segundo, porque permite a representação de minorias em cargos e posições de destaque na comunidade, uma vez que é no ambiente universitário que são formados, via de regra, os grandes líderes e políticos de uma nação29.
O critério meritocrático utilizado de forma exclusiva não é suficiente para promover a pluralidade no ambiente universitário, sobretudo considerando a realidade da sociedade brasileira, que possui um dos maiores índices mundiais de desigualdade na distribuição de renda. Como a renda concentra-se nas mãos de poucos, somente uma elite intelectual tem condições de estudar em bons colégios particulares e se preparar adequadamente para passar no vestibular das universidades públicas, cujo ensino ainda é considerado de excelência30 e por isso bastante concorrido31.
A adoção de políticas públicas de inclusão que tenham por escopo promover a diversidade étnico-cultural e a heterogeneidade nas universidades encontra respaldo em vários dispositivos espalhados na CF/88, através dos quais foi o estabelecido o compromisso do Estado brasileiro, que se declarou uma sociedade pluralista e destituída de preconceitos, de reduzir as desigualdades (artigo 3º, III), eliminar todas as formas de discriminação (artigo 3º, IV) e repudiar o racismo, cuja prática restou criminalizada inclusive como delito imprescritível (artigos 4º, VIII, e 5º, XLII, respectivamente). Ademais, o Brasil é signatário da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, ratificada em 27 de março de 1968, que autoriza explicitamente a adoção de medidas positivas em relação a “grupos sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção”, desde que pelo período necessário para promover a sua inclusão social (artigo I-4.)
Reconhecida, destarte, a constitucionalidade das ações afirmativas tendo por finalidade promover a inclusão no ensino superior, resta analisar a adequação do critério racial como fator autônomo para realizar a discriminação positiva na hipótese, à luz do princípio da proporcionalidade.
- Da Igualdade proporcional
No âmbito da jurisdição constitucional, para o fim de proceder à análise de eventual lesão ao princípio da igualdade, não cabe aos tribunais valorar as escolhas feitas pelo legislador, decidindo se optou, por exemplo, pela solução mais justa ou conveniente numa perspectiva de justiça ideal. O papel dos juízes, segundo Robert Alexy, é examinar se a atuação legislativa observou determinados limites, os quais são traçados pelo próprio conceito de arbítrio e delimitam a sua margem de liberdade de conformação32. O Tribunal Constitucional português, doravante TC, possui jurisprudência assente nesse sentido, segundo a qual a conduta do legislador somente poderá ser censurada se não for possível identificar um fundamento razoável para o tratamento desigual, à luz das finalidades constitucionais que, através da medida de diferenciação, visam-se alcançar33.
Para além da racionalidade do fundamento subjacente à discriminação, faz-se mister apurar a razoabilidade da medida concreta que estabelece a diferenciação, o que é feito à luz do princípio da proporcionalidade. Na concepção alexiana de proporcionalidade, a medida de discrímen deverá passar pelos crivos da adequação e da necessidade antes de ser submetida ao juízo de ponderação. A medida será adequada desde que se revele idônea para alcançar os fins almejados de acordo com o princípio ao qual a norma de tratamento desigual está associada. No tocante à necessidade, o juízo será positivo se não houver meio alternativo que implique interferência de menor gravidade no princípio contraposto. Acaso a medida passe em ambos os testes, analisar-se-á se a vantagem obtida - através dos direitos promovidos pela medida de discriminação - superam os sacrifícios impostos aos direitos afetados do outro lado do conflito (proporcionalidade em sentido estrito)34.
Mediante o recurso à proporcionalidade, o TC estruturou o princípio ao qual denominou Igualdade proporcional, a fim de realizar o controle judicial de eventuais violações ao princípio da igualdade através de uma análise comparativa entre as situações e/ou sujeitos em causa35. De acordo com o entendimento desenvolvido pelo tribunal, a discriminação deve ser medida em dois níveis de proporcionalidade, isto é, não poderá se mostrar excessivamente gravosa, tanto levando-se em conta as razões que a fundamentam, como também numa relação de comparação entre o grupo de destinatários da norma e aqueles excluídos do seu âmbito de incidência, na medida em que nenhum deles poderá suportar um sacrifício desproporcional e demasiado36.
Consoante descreve Cristina Queiroz, na análise da igualdade proporcional, o TC português pode admitir a idoneidade da opção legislativa para atingir os desígnios pretendidos pela norma constitucional e, ao mesmo tempo, reconhecer sua inconstitucionalidade, caso não observe os critérios decorrentes da proporcionalidade em sentido amplo, nomeadamente, o critério da “estrita” necessidade37.
Dentro desse contexto, a Corte Constitucional portuguesa entende haver violação à igualdade proporcional se a medida estabelecida pela diferenciação extrapolar os limites impostos pela proibição do excesso, ou seja, quando a parcela de sacrifício exigida de um dos grupos sociais atingidos pelo discrímen não puder se justificar em razão de haver meios alternativos disponíveis que permitam obter vantagens equiparáveis38. O que corresponde à ideia de otimização desenvolvida por Alexy, no sentido de não impor sacrifícios desnecessários a direitos fundamentais39. Por outro lado, acaso reste evidenciado que a atuação normativa fora racional, coerente e se justifica face à identificação de uma situação de desigualdade através de um critério relevante, conforme os fins perseguidos pela política definida pelo legislador, o Poder Judiciário não deverá interferir em sua opção, ainda que resulte em uma cota de sacrifício adicional a uma das categorias atingidas pela norma legal40.
No tópico a seguir, recorrer-se-á ao juízo de analogia, a fim de definir se a raça, considerando a hipótese concreta do case study (ADF nº186/DF), constitui um fator adequado e relevante para comparar e distinguir os estudantes e, assim, justifica a discriminação positiva em termos de igualdade proporcional. Ou se, ao contrário, acaba por beneficiar injustificadamente os negros e impor um sacrifício desproporcional aos estudantes em geral.
- Dos juízos de adequação e analogia
A legitimidade dos critérios de uma medida de discriminação guarda estreita correspondência com os objetivos sociais que se buscam atingir com o tratamento desigual41. Nesse sentido, segundo Ronald Dworkin, na análise da violação à cláusula de proteção da igualdade, os tribunais devem averiguar tanto as consequências jurídicas da norma legal, como suas motivações42. O exame da motivação permitirá que se formule um juízo sobre a adequação ou não do critério utilizado para concretizar a medida de discriminação portanto.
Preliminarmente, consoante o exposto no capítulo 2, a igualdade – ou a desigualdade, como ressalta Alexy - em nenhuma hipótese é absoluta, na medida em que somente se verifica em relação a determinados aspectos ou fatores43. Os aspectos selecionados para fins de realizar a comparação entre os sujeitos ou situações atingidos pela medida discriminatória estão intrinsecamente vinculados aos motivos que justificam o tratamento desigual, consoante verificar-se-á na sequência.
Com efeito, para se chegar a um juízo sobre a adequação do critério de discriminação utilizado, é preciso determinar se a diferença existente entre os sujeitos objeto da comparação na hipótese concreta é relevante e, portanto, justifica o tratamento diferenciado, ou, em caso negativo, se devem ser tratados de forma igual e submetidos à mesma regra, o que é feito através do recurso à analogia. O uso da analogia, segundo Manuel Atienza, converte-se em um instrumento de justiça formal, na medida em que encontra suporte no princípio da igualdade ao permitir que casos distintos, porém iguais em aspectos definidos como relevantes, sejam submetidos ao mesmo tratamento44.
De acordo com David Duarte, ainda num contexto restrito, uma comparação analógica pode ser feita sob uma pluralidade de fatores, razão pela qual diferentes resultados poderão surgir, uma vez que os termos ou objetos comparados serão equivalentes sob alguns aspectos e diferentes em relação a outros. A conclusão sobre o juízo de analogia na hipótese concreta dependerá da seleção do fator ou fatores preponderantes e é exatamente nesta operação onde reside a complexidade do processo. A escolha do “meta-fator” – na expressão utilizada pelo autor 45- é feita à luz da finalidade que justificou a medida de discriminação, o que permite, desde logo, excluir os fatores considerados irrelevantes para esse efeito.
É nessa fase que os princípios devem ser introduzidos na analogia, ou seja, para orientar a escolha do “meta-fator”, sem o que essa escolha será arbitrária. Todavia, alerta o referido autor, deve-se ter cuidado para que a inserção dos princípios não se sobreponha ao raciocínio analógico, de modo a trazer uma solução direta para o caso, sem que antes sejam construídos os critérios de semelhança ou distinção entre os termos comparados46.
Sobre o uso da analogia, Luís Duarte d'Almeida e Cláudio Michelon esclarecem que a circunstância dos elementos da comparação compartilharem de algumas características comuns não necessariamente será relevante para a conclusão de que comungam de uma terceira, o que dependerá do contexto47, ou seja, do objetivo da comparação. Os autores atentam, ademais, para o risco da “super inclusão”, isto é, se como resultado da analogia entre os termos comparados for formulada uma regra muito genérica, a mesma regra poderá vir a abranger um terceiro caso que não compartilhe das mesmas relevantes características que foram essenciais para se concluir pela semelhança originalmente48.
Frederick Schauer, em crítica à doutrina do precedente vinculante, também chamada de stare decisis, típica das jurisdições constitucionais que adotam o judicial review (controle difuso ou concreto de constitucionalidade), destaca as vantagens do uso da analogia como argumento legal. Com efeito, segundo o autor, o raciocínio analógico permite a seleção do caso parâmetro e que se faça a distinção do caso atual a partir de uma análise estrutural, ao invés de se chegar a uma conclusão superficial de semelhança, como frequentemente ocorre, quando se utiliza a técnica do precedente vinculante. O autor aprofunda a crítica ao afirmar que, na doutrina do precedente, é tão difundida a ideia de que a questão atual é igual à que fora respondida pela decisão anterior, que sequer é aberta a possiblidade – política ou profissionalmente – do julgador concluir que existe uma diferença relevante entre o caso em pauta e aquele julgado pelo precedente49.
Luís Duarte d'Almeida e Cláudio Michelon endossam a crítica à doutrina do stare decisis e defendem que, mesmo que o caso atual satisfaça a descrição do precedente, se houver uma propriedade do caso paradigma que a ratio da primeira decisão falhou em destacar e que, por isso, não contempla o caso atual, o julgador não está obrigado a seguir o precedente e tem liberdade para decidir segundo suas próprias convicções50.
No caso concreto de que se cuida, como já existe uma norma precedente que beneficia os estudantes em situação de vulnerabilidade econômica na concorrência para o ingresso no ensino público superior, indaga-se se essa mesma norma já contempla os estudantes negros, porquanto estariam em situação análoga à dos destinatários originais. Somente em caso negativo, será possível concluir que de fato se faz necessária uma regra específica direcionada aos estudantes negros, a fim de promover o acesso e a igualdade fática no âmbito das universidades públicas brasileiras, conforme se propõe a ação afirmativa em causa.
4.1. Da adequação do critério racial no caso concreto
É possível afirmar que a crítica mais contundente dos contrários às cotas raciais é, sem dúvidas, a alegação de que a existência de uma regra fundada na renda familiar seria suficiente para abranger os candidatos negros e alcançar as finalidades da política afirmativa. À primeira vista, uma análise superficial pode sugerir que a questão não é racial, mas puramente econômica, uma vez que a maioria dos estudantes pobres, que não possui condições de se preparar adequadamente para as provas e exames de acesso ao ensino superior, é também negra. Esse argumento parece convincente, todavia, a analogia entre pessoas brancas de baixa renda e negras não está propriamente correta.
De fato, no Brasil, conforme ressaltou o ministro Luiz Fux ao votar no julgamento da ADPF nº 186/DF, “a pobreza no Brasil tem cor”. Embora constituam a maioria da população, as pessoas negras estão sub-representadas em todas as posições de poder e categorias privilegiadas da sociedade brasileira, onde a imagem do país ainda é de pessoas brancas e de origem europeia. Por outro lado, seguem sobre-representadas entre os mais pobres e em todos os indicadores sociais que apontam para uma má qualidade de vida e baixo índice de desenvolvimento humano51.
Seria, por outro lado, demasiado simplista afirmar que a situação dos negros no país é equiparável à das pessoas brancas em condição de pobreza. Quem afirma isso está a olvidar que os negros sofrem um estigma simplesmente em razão de sua raça e que independe da condição socioeconômica ou da classe social à qual pertençam. A marginalização dos negros na sociedade brasileira atinge todas as áreas e é fruto de um enorme preconceito racial, com origens óbvias no período escravocrata e que, mesmo após a abolição, relegou aos afrodescendentes brasileiros um papel subalterno em relação aos brancos.
Vejam-se, por exemplo, as taxas de escolaridade dos negros brasileiros, que sempre foram inferiores às dos brancos em quesitos como média de anos de estudo, ingresso na universidade e conclusão do ensino superior52. Para além disso, ainda que equacionada a questão da escolaridade, isto é, mesmo com igual formação acadêmica, estudo do IPEA aponta que empregados negros auferem rendimentos inferiores aos dos brancos e costumam ser preteridos na seleção para cargos de chefia, direção e comando53.
Isso fica mais claro quando se analisa a realidade norte-americana, onde, diversamente do Brasil, a maioria dos estudantes pobres que concorrem ao ensino superior é branca. Mesmo assim, trata-se de uma sociedade extremamente estratificada e os negros estão subrepresentados em todos os níveis mais altos, quando se analisa renda, riqueza, poder, prestígio e autoridade. De acordo com Dworkin, trata-se de fato de uma estratificação racial, resultante de um preconceito e da criação de estereótipos, que são codificados pela cor da pele e não pela classe ou cultura. Desse modo, conclui o autor, as universidades americanas jamais poderão alcançar a diversidade racial indiretamente, isto é, baseando-se no critério da baixa renda para representar a raça, ou recorrendo a outros meios que não surtirão o mesmo efeito das políticas de inclusão fundadas no critério racial54.
Ante todo o exposto, é possível inferir que a ilação de que os negros devem ser equiparados aos estudantes de baixa renda não é satisfatória para o caso concreto, porquanto não atende às finalidades constitucionais da ação afirmativa de tornar o ensino público superior acessível e diversificado. O que impede as pessoas negras de alçarem um status social equiparável ao dos brancos não é apenas e necessariamente a falta de renda, mas o estigma de rejeição que carregam, que afeta a própria imagem que têm de si mesmas e sua autoestima, para além das barreiras impostas pelo preconceito disseminado na sociedade.
Assim, conquanto a maioria dos estudantes negros brasileiros compartilhe da precária situação financeira, não significa que estejam no mesmo patamar daqueles que são brancos e de baixa renda, pois carregam um peso que transcende a questão econômica, simplesmente em razão de sua origem racial. Destarte, conclui-se que a raça é o fator preponderante para se fazer a comparação na hipótese de que se cuida e permite distinguir os estudantes negros para o objetivo em causa, qual seja, promover a igualdade fática no âmbito do corpo discente acadêmico, do que resulta negativo o juízo de analogia proposto pelos opositores da cota racial. Desse modo, o critério racial é idôneo para estabelecer a distinção entre os estudantes, a fim de promover a inclusão no ensino público superior, porquanto adequado ao propósito de igualar as oportunidades de acesso. Com efeito, as dificuldades enfrentadas pelas pessoas negras em todas as áreas e níveis sociais, consoante visto acima, com reflexos evidentes na vida estudantil e intelectual como um todo, não são as mesmas daquelas vivenciadas pela generalidade das pessoas, independentemente da faixa de renda.
Do ponto de vista dos candidatos não cotistas também não se vislumbra nenhum sacrífico desproporcional. Embora seja excluído da concorrência geral um percentual de vagas reservado às cotas – no caso 20% -, permanecem aqueles com o direito a concorrer à maioria das vagas, que serão ocupadas por candidatos da lista geral, enquanto os cotistas somente concorrem às vagas reservadas se atingirem a nota mínima de corte pelo menos. Desse modo, em termos de igualdade proporcional, a adequação do critério racial revela-se evidente e justifica a discriminação positiva em favor dos estudantes negros de forma desvinculada da renda, ou seja, do critério econômico.
Numa visão alexiana, destarte, pode-se afirmar que a cota racial é justa, na medida em que promove o princípio da igualdade de uma maneira tão eficaz que nenhuma outra política inclusiva alternativa o faria, pois os benefícios sociais e comunitários que gera superam a parcela de sacrifício imposta aos concorrentes não cotistas55.
Conclusão
Ante todo o exposto linhas acima, é clarividente a conclusão de que o STF, no julgamento da ADF nº 186/DF, analisou a questão de modo aprofundado e tomou uma decisão técnica ao reconhecer, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais. À partida, o acórdão admitiu que a adoção de ações afirmativas e políticas inclusivas pelo Estado é condizente com o princípio constitucional da igualdade quando interpretado numa perspectiva material, ou seja, de promoção e igualação de direitos, em consonância com os propósitos extraídos da CF/88 e compromissos internacionais firmados pelo governo brasileiro de redução da desigualdade racial e combate a todas as formas de discriminação e preconceito.
Quanto à utilização do critério racial para promover a discriminação positiva de acesso ao ensino público superior, embora não tenha sido feito expressamente um raciocínio analógico para fins de comparar a situação dos candidatos negros com a dos candidatos de baixa renda, a admissibilidade da raça como critério autônomo decorreu do reconhecimento de que o preconceito racial no Brasil sempre existiu e constitui o motivo para a exclusão social e econômica das pessoas negras. Em suma, os ministros concluíram que o critério é adequado para se efetuar o discrímen que fundamenta a ação afirmativa em foco, pois de outro modo não se alcançaria o objetivo de superar a desigualdade étnico-racial espraiada em todos os campos da sociedade brasileira e que ultrapassa a questão socioeconômica, consoante discorrido ao longo do desenvolvimento do trabalho.
O único voto dissonante - embora não tenha divergido quanto à decisão de mérito, ressalte-se - foi o do ministro Gilmar Mendes, que se mostrou reticente quanto à adoção do critério puramente racial. As críticas do ministro, todavia, não se referem propriamente à adequação ou não da raça como critério de distinção entre os estudantes para fins de igualar as oportunidades de acesso ao ensino superior, mas ao método de identificação dos beneficiários da cota, baseado no fenótipo, que não seria eficiente, conforme seu entendimento.
De um modelo inicial consistente na autodeclaração do candidato, evoluiu-se para a associação a outros mecanismos de heteroidentificação, como entrevista e avaliação por uma comissão formada por especialistas, dentre outros. O método pode não ser perfeito e gerar distorções pontuais, porém não constitui argumento idôneo para justificar a inconstitucionalidade das políticas inclusivas baseadas na raça. Primeiro, porque se trata de uma questão de operacionalização da discriminação para fins de atribuição da cota em concreto e nada tem a ver com o reconhecimento do direito em si. Ademais, os instrumentos de identificação do componente étnico-racial vêm sendo aperfeiçoados sistematicamente, para o fim de combater eventuais fraudes e injustiças na identificação dos beneficiários. Tais imperfeições não infirmam os resultados da política inclusiva, tanto que, após mais de dez anos do implemento das primeiras cotas raciais no país, os negros já são maioria no ensino superior, segundo revelou estudo recente da ADIFES - Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior56.
Nesse aspecto, destarte, o acórdão também analisou a matéria detidamente e todas ressalvas ao mecanismo de reconhecimento dos cotistas raciais foram rebatidas expressamente nos votos do relator da arguição, Ricardo Lewandowski, e da maioria dos demais ministros, dentre os quais se destacou, quanto a esta questão específica, o voto do ministro Marco Aurélio citado no início desse trabalho.
A decisão acerca da constitucionalidade das cotas raciais e dos respectivos instrumentos de identificação dos beneficiários, ressalte-se, foi confirmada alguns anos depois pela mesma corte constitucional no julgamento da ADC nº 41/DF, sobre a reserva de vagas para pessoas negras em concursos públicos no âmbito da administração federal, que debateu amplamente a questão e concluiu que eventuais dificuldades na definição de critérios objetivos para confirmar a autodeclaração dos candidatos cotistas não deslegitimam a adoção das ações afirmativas de viés racial, tampouco pode obstar o reconhecimento dos direitos fundamentais que através desse sistema de cotas se pretende concretizar.
Para além disso, o acerto da decisão tomada pelo STF na ADPF nº 186/DF, quando as cotas raciais estavam ainda em período inicial de implementação e antes da edição da Lei nº 12.711/2012, que criou a reserva de vagas no ensino público superior, é corroborado pelos resultados das políticas inclusivas de acesso à educação e ao mercado de trabalho baseadas na raça após alguns anos de sua execução.
Nesse sentido, destaquem-se os efeitos positivos das políticas inclusivas fundadas na raça, que transcendem os seus destinatários diretos, pois beneficiam toda a comunidade acadêmica ao promover a diversidade no corpo discente da universidade. Pode-se até mesmo dizer que o direito à inclusão, de fato, não é apenas do incluído, mas de todos aqueles que têm oportunidade de conviver e aprender de forma plural. Como efeito reflexo, chama atenção o aumento do número de brasileiros autodeclarados pretos ou pardos nos últimos censos demográficos, o que revela uma ressignificação da própria identidade racial, isto é, os brasileiros estão reconhecendo e se apropriando de sua raça. A criação desse sentimento de pertencimento racial até então bastante ignorado, dentre outras atitudes e mudanças culturais, expressa mais um dos resultados decorrentes das ações afirmativas que impactam positivamente a sociedade como um todo.
Citações
1 Relatório apresentado no curso de Mestrado em Direito e Ciências Jurídico-Políticas 2018/2019, especialidade Direito Constitucional, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, referente à disciplina de Direitos Fundamentais, ministrada pelos Professores Doutores Pedro Moniz Lopes e David Duarte.
2 Artigo 207 da Constituição Federal brasileira: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
3 A resolução previu também a reserva de vagas para candidatos indígenas.
4 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza o termo “pardo” para designar um dos cinco grupos de "cor ou raça" que compõem a população brasileira ao lado dos brancos, pretos, amarelos e indígenas. Até os anos 2000, o IBGE considerava parda a pessoa que se declarasse como mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça. Essa instrução foi retirada do manual de coleta do censo demográfico 2010, no qual consta apenas a indicação para ser incluída na categoria de cor ou raça “parda” a pessoa que assim se autoidentifique (Censo Demográfico 2010, Manual do Recenseador/CD - 1.09, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Rio de Janeiro, 2010, pp. 191/192).
5 Esse Habeas Corpus fora ajuizado em defesa do Sr. Siegfried Ellwanger, escritor e editor que havia sido condenado por racismo, nos termos do artigo 20 da Lei nº 7.716/1989 (“Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”), em razão de publicar e distribuir obras que negavam o holocausto, sob a alegação de que os judeus não constituíam uma raça para afastar a prática do delito de discriminação e a imprescritibilidade prevista na Constituição brasileira em relação aos crimes de racismo (artigo 5º XLII). O STF, por maioria, indeferiu o HC, adotando a premissa de que não existem subdivisões biológicas na espécie humana e que a divisão em raças resulta de um processo histórico e social, para reconhecer o racismo contra os judeus no caso concreto. A corte, ademais, entendeu que a liberdade de expressão não amparava a conduta do paciente por haver ultrapassado limites morais e jurídicos. (HC nº 82.424/RS, julgado em 17/09/2003, publicação no DJ de 19/03/2004).
6 Nesse sentido, Manuel Atienza se refere ao princípio da igualdade como “regra formal de justiça” (ATIENZA, Manoel. “Algunas tesis sobre la analogia en el Derecho”, Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, núm. 2, 1985, p. 228).
7 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade, tradução de Jussara Simões, 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 584.
8 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, tradução de Virgílio Afonso da Silva, 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2015 (reimp.), p. 398
9 Nesse sentido, citem-se, dentre outros, Acórdão nº 362/2016, de 8 de junho de 2016, proferido no Processo nº 16/16; e Acórdão nº 141/2019, de 12 de março de 2019, proferido no Processo n.º 550/2018, ambos do Tribunal Constitucional português.
10 ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., p. 399.
11 Nesse sentido: “Utilitarian arguments that justify a disadvantage to members of a race against whom prejudice runs will always be unfair arguments, unless it can be shown that the same disadvantage would have been justified in the absence of the prejudice. If the prejudice is widespread and pervasive, as in fact it is in the case of blacks, that can never be shown.” (DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, London: Bloomsbury, 2013 (eBook), cap. 9).
12 ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., pp. 402-408.
13 DWORKIN, Ronald. A Virtude ..., op. cit., pp.76; 426-427.
14 QUEIROZ, Cristina. Justiça Constitucional, Petrony Editora, 2017, p. 102.
15 GOMES, Joaquim B. Barbosa. “O debate constitucional sobre as ações afirmativas”, in SANTOS, Renato Emerson dos; LOBATO, Fátima (org.), Ações Afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais, Rio de Janeiro: DP&A, 2003, pp. 15 ss.
16 ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., p. 432.
17 DWORKIN, Ronald. A Virtude ..., op. cit., p. 606.
18 WEDDERBURN, Carlos Moore. “Do Marco Histórico das Políticas Públicas de Ação Afirmativas”, in SANTOS, Sales Augusto dos (org.), Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas, Brasília: Edições MEC/UNESCO, 2007, p. 307 (edição eletrônica).
19 Decisões locais chegaram a proibir a utilização do critério racial nos programas de ingresso em universidades dos EUA, como o referendo da Califórnia e a decisão judicial no processo Hopwood no Texas, cf. DWORKIN, Ronald. A Virtude ..., op. cit., pp. 544-545. Todavia, essa tendência restou superada pela Suprema Corte, que reafirmou o entendimento acerca da constitucionalidade do critério em Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003), no qual se questionou a política de inclusão racial da faculdade de Direito da Universidade de Michigan.
20 Na visão de Ronald Dworkin, as pessoas com deficiência fazem jus a recursos extras porque possuem menos habilidade de alcançar o “bem-estar” do que a generalidade das pessoas com a mesma quantidade de recursos (DWORKIN, Ronald. A Virtude ..., op. cit., p. 70).
21 “VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; (...)”.
22 ADPF nº 186/DF, cit., voto do ministro Ricardo Lewandowski, pp. 84-86. 23 GOMES, Joaquim Barbosa. “A recepção do Instituto da ação afirmativa pelo direito brasileiro”, cit., pp. 55; 76-77. 24 De acordo com a Ministra Cármen Lúcia, que centrou seu voto no princípio da igualdade sob uma concepção dinâmica, no sentido de igualação, promover a igualdade de oportunidades é o que justifica as chamadas “políticas compensatórias”, cf. ADPF nº 186/DF, cit., pp. 138-139.
25 Sobre como ler e interpretar a constituição de forma integrada a partir da sistematização de “princípios da interpretação constitucional”, confira-se ALEXANDRINO, José de Melo. Lições de Direito Constitucional, Vol. I, 3ª ed., Lisboa: AAFDL, 2017, pp. 276-277.
26 Por óbvio, a liberdade acadêmica não é ilimitada e os critérios de admissão devem corresponder a finalidades legítimas. Jamais se poderia admitir, por exemplo, uma meta que defendesse a estratificação racial da sociedade (DWORKIN, A Virtude ..., op. cit., pp. 569-575).
27 Tradução livre do original em inglês: “(...) the Equal Protection Clause does not prohibit the Law School's narrowly tailored use of race in admissions decisions to further a compelling interest in obtaining the educational benefits that flow from a diverse student body (Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003), p. 343).
28 Dworkin acrescenta que o convívio é fundamental para acabar com estereótipos negativos, como o dos brancos em relação aos negros, o que aumenta as vantagens da diversidade racial no âmbito das universidades (DWORKIN, A Virtude ..., op. cit., pp. 571-572).
29 Nesse sentido, consulte-se o voto do Ministro Ricardo Lewandowski na ADPF nº 186/DF, cit., p. 75.
30 Ao contrário do que ocorre nas escolas públicas brasileiras, onde o ensino é bastante deficitário. Sobre o vestibular como mecanismo de exclusão das classes menos privilegiadas, confira-se BARBOSA, Joaquim. “A recepção do Instituto da ação afirmativa pelo direito brasileiro”, cit., pp. 60-61.
31 Sobre o princípio meritocrático para acesso ao ensino superior, o então ministro Cezar Peluso ponderou que o critério do mérito é justo quando utilizado em relação a candidatos que tiveram as mesmas, ou aproximadas, oportunidades de preparação. Todavia, conforme prossegue em seu voto, não é possível empregálo para aqueles que não tiveram condições de se preparar de modo adequado para esse tipo de julgamento (cf. ADPF nº 186/DF, cit., p. 162).
32 ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., pp. 407-408.
33 Nesse sentido, confiram-se Acórdão nº 546/2011, de 16 de novembro de 2011, proferido no processo nº 17/11; Acórdão nº 413/2014, de 30 de maio de 2014, proferido nos processos nºs 14/14, 47/14 e 137/14; e Acórdão nº 362/2016, de 08 de junho de 2016, proferido no Processo nº 16/16.
34 De acordo com o autor, os subprincípios da adequação e da necessidade equivalem aos fatores empíricos da proporcionalidade, enquanto a ponderação propriamente dita corresponde a sua parte jurídiconormativa. Nesse sentido, consulte-se, ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., pp. 116-120 e 588 ss.; e de forma mais resumida, porém não menos completa, ALEXY, Robert. “Formal principles: Some replies to critics”, in International Journal of Constitutional Law, Oxford University Press and New York University School of Law, Vol. 12, nº 3, 2014, pp. 511–524.
35 Nesse sentido, confiram-se os Acórdãos nºs 362/2016, de 8 de junho de 2016, proferido no Processo 16/16; e 229/2019, de 23 de abril de 2019, proferido no Processo nº 742/18.
36 Acerca do tema, confiram-se, entre outros, Acórdãos nºs 187/2013, de 5 de abril de 2013, proferido no Processo nº 2/13; e 413/2014, de 30 de maio de 2014, proferidos nos processos nºs 14/14 e outros, que declararam a inconstitucionalidade de medidas de redução salarial no setor público, nos orçamentos do Estado para 2013 e 2014, respectivamente, por implicar um sacrífico desproporcional e desequilibrado aos trabalhadores públicos em comparação à situação dos servidores da iniciativa privada.
37 QUEIROZ, Cristina. Justiça ..., op. cit., p. 107.
38 Confiram-se, os Acórdãos nºs 353/2012, de julho de 2012, proferido no Processo nº 40/12; e 187/2013, de 5 de abril de 2013, proferido no Processo nº 2/13.
39 Essa assertiva é reforçada por Alexy através da máxima de Pareto, segundo a qual uma posição pode ser melhorada, sem que outra precise ser necessariamente sacrificada (ALEXY, Robert. Teoria ..., op. cit., p. 592).
40 Nesse sentido, cite-se o Acórdão nº 396/2011, de 21 de Setembro de 2011, proferido nº Processo nº 72/11 do TC, por seus fundamentos de direito, embora guardem-se reservas quanto à decisão de mérito que deixou de declarar, na ocasião, a inconstitucionalidade de medidas que reduziram parcelas da remuneração de trabalhadores públicos com base no fundamento de que esta categoria de trabalhadores não está em uma posição de igualdade em relação aos demais trabalhadores, porquanto vinculada ao interesse público, pelo que o sacrifício adicional exigido dela estaria justificado. Posteriormente, a Corte Constitucional alterou o entendimento para reconhecer a inconstitucionalidade das mesmas medidas previstas em anos subsequentes e afastou o argumento de que os trabalhadores públicos auferem valores em média superiores aos trabalhadores do setor privado, além de fazerem jus a outras vantagens como estabilidade no emprego. A Corte sopesou, ademais, o prolongamento das medidas por períodos sucessivos e direcionadas somente àquela categoria de trabalhadores, além do fato de já ser possível, naquele momento, vislumbrar soluções alternativas para alcançar a finalidade de reduzir o défice público (Acórdãos nºs 353/2012, de 5 de julho de 2012, proferido no Processo nº 40/12; 187/2013, de 5 de abril de 2013, proferido no Processo nº 2/13; e 413/2014, de 30 de maio de 2014, proferido nos processos nºs 14/2014 e outros).
41 DWORKIN, Ronald. Taking ..., op. cit., cap. 9.
42 Idem. A Virtude ..., op. cit., p. 584.
43 ALEXY, Teoria ..., op. cit., p. 399.
44 ATIENZA, Manoel. “Algunas Tesis ...”, cit., p. 228.
45 O autor utiliza a expressão “meta-fator” para se referir àquele que orientará a escolha do fator predominante. Confira-se, DUARTE, David. “Analogy and Balancing: The Partial Reducibility Thesis and Its Problems”, in Revus – Journal for Constitutional Theory and Philosophy of Law (2015) 25, pp. 142-145.
46 Um dos problemas elencados por David Duarte acerca da tese da redutibilidade parcial de Bartosz Brożek, que reduz parcialmente a analogia a uma questão de ponderação de princípios, é a escolha aleatória dos princípios levados à ponderação, o que pode distorcer o resultado da comparação, segundo o primeiro. Para ilustrar, veja-se o exemplo dado por ele: há duas regras sobre a entrada de veículos num parque: R1 – não permite a entrada de carros; R2 - permite a entrada de bicicletas; e uma lacuna em relação a motocicletas. Se os princípios selecionados para representar cada uma dessas regras forem “proteção ao meio ambiente” (P1) e “liberdade de ação” (P2), respectivamente, o resultado da ponderação hipotética indicará que P1 > P2, do que se conclui que motocicletas não serão permitidas no parque. Todavia, se, ao invés de P1, pondera-se P3 (“Inviolabilidade da integridade física”), o resultado da ponderação será diferente, qual seja P3 < P2 e permitirá a entrada de motocicletas, porquanto a forma como as motocicletas poluem o meio ambiente é diferente de como afetam a integridade física das pessoas (Ibid, pp. 147 ss.). Barstoz Brożek insiste que o raciocínio analógico envolve dois passos e nenhum deles se refere a fatores de comparação. No primeiro, a semelhança prima facie entre os casos é estabelecida em relação ao tipo comum de problema que suscitam, o que já eliminaria, segundo o autor, o risco de princípios irrelevantes serem levados à ponderação (segundo passo). Para conferir a reposta completa à crítica de David Duarte, consulte-se BROŻEK, Bartosz. “Analogy and Balancing. A Reply to David Duarte”, Revus – Journal for Constitutional Theory and Philosophy of Law (2015) 25, pp. 163-170.
47 D’ALMEIDA, Luís Duarte; MICHELON, Cláudio. “The Structure of Arguments by Analogy in Law”, in Edinburgh School of Law Research Paper Nº 06/2017, disponível em https://ssrn.com/abstract=2948558, p. 4.
48 O argumento é melhor compreendido através do exemplo narrado pelos autores sobre a analogia entre proprietários de hotéis e companhias de barco a vapor para fins de fixar a responsabilidade por furtos sofridos por hóspedes e passageiros, respectivamente, independentemente da comprovação de culpa por qualquer das partes. Com efeito, se do uso da analogia resultar uma regra que se referia apenas à característica de se tratar de “fornecedores de alojamento”, a mesma regra poderia ser equivocamente estendida ao caso de um furto ocorrido a bordo de um trem noturno, quando a característica essencial e olvidada da regra inicial que concluiu pela responsabilidade dos “fornecedores de alojamento” é a circunstância de se tratar de “alojamentos fechados” (Ibid., pp. 24-27). Para uma análise mais aprofundada desse e de outros exemplos utilizados pela doutrina para explicar o processo do raciocínio analógico, confira-se WEINREB, Lloyd. Legal Reason. The Use of Analogy in Legal Argument, New York: Cambridge University Press, 2005, pp. 41-63.
49 Confira-se, SCHAUER, Frederick.. “Why precedent in law (and elsewhere) is not totally (or even substantially) about analogy”, in KSG Working Paper Nº. RWP07-036, 2007, disponível em https://ssrn.com/abstract=1007001, pp. 9-10.
50 D’ALMEIDA, Luís Duarte; MICHELON, Cláudio. “The Structure ...”, cit., p. 30.
51 Os pretos e pardos correspondem a mais de 50% da população do país e estão em situação desvantajosa em relação aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes: renda, níveis de analfabetismo, acesso a saneamento básico e serviços de saúde, taxa de mortalidade infantil, dentre outros (cf. Censo Demográfico 2010, disponível em http://www.ibge.gov.br/). Tal discrepância, consoante destacou o ministro Luiz Fux ao votar no julgamento da ADPF nº 186/DF, “como indicam os números, persiste e não diminui com o passar do tempo” (p. 105). Cinco anos depois, os dados estatísticos e indicadores sociais serviram de base para a decisão do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 41/DF, apreciada em 08/06/2017 e publicada no DJE de 19/06/2017. Esta ação foi julgada procedente, a fim de reconhecer a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, que determinou a reserva de vagas para pessoas negras em concursos públicos no âmbito da administração federal. O relator da ADC, ministro Luís Roberto Barroso, considerou em seu voto ainda um outro dado relevante: os negros são maioria também no sistema carcerário brasileiro (67,67%) (pp. 42-47).
52 Síntese de indicadores sociais 2013 a 2018 (www.ibge.gov.br). A melhora gradual nos índices da população negra, apesar de ainda inferiores às médias das pessoas brancas, é um indicativo do resultado positivo de alguns anos da adoção de políticas inclusivas no país.
53 SILVA, Tatiana Dias; DA SILVA, Josenilton Marques. Reserva de vagas para negros em concursos públicos: uma análise a partir do Projeto de Lei 6.738/2013, Nota técnica, nº 17, Brasília: IPEA, 2014, pp. 4-5.
54 Confira-se: DWORKIN, Ronald. A Virtude ..., op. cit., pp. 568-602.
55 “La Formula del Peso”, tradução de Carlos Bernal Pulido, in CARBONELL, Miguel (ed.), El principio de proporcionalidad y la interpretación constitucional, Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2008, pp. 15 ss. Acerca da efetividade da cota racial em relação à cota baseada na renda, consulte-se https://www.valor.com.br/brasil/6299195/cotas-raciais-foram-mais-efetivas-do-que-por-renda-afirma-estudo
56 http://www.andifes.org.br/maioria-dos-alunos-das-universidades-federais-tem-renda-baixa-eparda-ou-preta-e-vem-de-escola-publica/
Referências Bibliográficas
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