Artigos

Déjà vu processual: mais do mesmo

Todo mundo sabe. Nos casos que abalam a República, a responsabilidade pelo fracasso da luta contra a corrupção é sempre da Polícia que não soube investigar, do Ministério Público que foi incapaz de checar e validar as provas e do Juiz de primeiro grau, que, é claro, nunca sabe decidir do jeito certo.

Casos de grande repercussão regional ou nacional e que atingem altos mandatários dessa Ibirapitanga costumam ser anulados por dois motivos principais, na tradicional desculpologia jurídica, avançada e hermética disciplina do Direito, só conhecida e aplicada no Brasil:

a) a investigação que desmontou o esquema X começou por “denúncia anônima” (rectius: delação anônima); ou

b) a decisão judicial que autorizou escutas telefônicas inquestionáveis, uma busca e apreensão reveladora ou outra medida intrusiva deste gênero não está “devidamente fundamentada”.

Por melhor que seja a fundamentação de uma decisão judicial brasileira, pode-se riscá-la do mapa e tachá-la de deficiente com uma canetada. Basta usar um adjetivo: “fundamentação inidônea” e pronto. Não que a decisão não tenha fundamento, mas tudo será anulado porque alguém não gostou dos argumentos que o Juiz de primeira instância elegeu para decidir.

Deveras, há decisões judiciais que não passam de meros despachos ordinatórios. Não têm nenhuma fundamentação. Estas não servem, pois não obedecem o artigo 93, inciso IX, da Constituição. Porém, construiu-se no Brasil a ideia de que uma decisão fundamentada tem de ser quilométrica, com dezenas de laudas, exaustiva e cansativa. Então cria-se um paradoxo que diz muito sobre a técnica de ataque processual a decisões judiciais, especialmente sobre aquelas que versam sobre interceptações telefônicas: i) quando a decisão é concisa (sem ser esquálida), alega-se que não há fundamentação, ou que não existe “fundamentação idônea”; ii) quando a decisão é extensa e detalhada, diz-se que o juiz é suspeito, que houve antecipação de julgamento e perda de isenção do julgador.

É o que chamo de “cafuné processual”, o ato simbólico de passar a mão na cabeça de certos réus que passaram a mão no dinheiro público. Em geral, são acionados em processos penais robustos, com denúncias aptas e provas acachapantes. O sagrado direito de defesa é exercido e, mesmo assim, tudo caminha para uma condenação. Alguns podem espantar-se com isto: se há réus de colarinho branco inocentes, existem também os culpados. Embora muitos se façam de desentendidos, há erro quando se condena um inocente; e há erro quando se absolve um culpado. Mas nunca sabemos quem é quem, pois os processos não terminam!

O exemplo mais conhecido da tese “a” (delação anônima não tem valor) é a Operação Castelo de Areia (HC 159.159/SP) e o paradigma da tese “b” (a decisão tem fundamentação inidônea) é a Operação Faktor, antiga “Boi Barrica” (HC 191.378/DF), ambas fulminadas pela 6ª Turma do STJ, com o seu já tradicional parnasianismo processual, revelado no apego extremo às formas e no preciosismo procedimental. Não importa o conteúdo do processo; qualquer deslize meramente estético na condução da causa, destroça o quadro, desmorona a obra, despedaça o texto.

Não estou a dizer que estas pessoas sejam culpadas. Ninguém sabe, porque não foram julgadas e por isto continuam inocentes, como assegura a Constituição. Nem que as formas sejam desimportantes! Tampouco disse isso. A observância do procedimento probatório é, sem dúvida, uma garantia de todos. Mas entre nós, nos grandes esquemas de corrupção, questões menores se agigantam, a sensibilidade se aguça, e nulidades são procuradas com lupa e microscópio. Haverão de achar algum micróbio incrustado na folha xis do volume zê. E tudo vem abaixo.

Agora é a vez da Operação Monte Carlo. Acredito que as escutas telefônicas tenham sido implementadas responsavelmente e somente porque era indispensável esse meio de prova. Imagino que os envolvidos nesse caso tenham sido presos por ordem da Justiça Federal em Goiás a partir de fortes elementos de convicção, devidamente apurados na longa investigação. Sei que todos ali beneficiam-se da presunção de não culpabilidade. Mas eis que surge um voto pela nulidade de todas as gravações telefônicas (felizmente, dois eminentes desembargadores validaram a prova); surgem decisões monocráticas aqui e ali, e, enfim, uma liminar no HC_33932-91.2012.4.01.0000/GO, e quase todos os réus já estão soltos. Resta um…

Genericamente falando, supostos líderes de esquemas criminosos têm de ser pacientes. Um habeas corpus tarda mas não falha. Esperam um pouco, mas acabam saindo da cadeia porque os seus chefiados, sendo soltos em primeiro lugar, “justificam” sua soltura depois. É a teoria mais moderna do processo penal mundial: “mingau quente se come pelas beiradas“.

Este caso – do qual só sei o que vi nas mídias – é um modelo a ser estudado nas disciplinas de prática forense criminal. Primeiro tentam desmoralizar os investigadores; na sequência paralisam a ação penal com incidentes os mais diversos e criativos; vem a soltura dos soldados rasos; depois soltam o suposto “comandante” (reduzindo simbolicamente a dimensão do esquema ao reino dos ingênuos “malfeitos” ou das meras “contravenções”); em seguida anulam ou tentam anular as provas mais pujantes do processo por questões formais menores; e no arremate alguém assegura que vai “apurar” o caso em qualquer uma dessas CPIs Me-Engana-Que-Eu-Gosto (que me perdoem os parlamentares sérios que nelas atuam). Como sobejo, alguém ameaça o Juiz da causa, que se afasta do caso. Como brinde, ainda lemos um galanteio à esposa do suspeito…

Enfim, o caso Cachoeira, como outros antes dele, caminha para ser desfeito não pela “inocentação” dos acusados – até aqui presumivelmente inocentes, repito -, mas mediante o desfazimento procedimental das provas. Esta é a suposição que se pode fazer diante do que ordinariamente acontece. Alegar que provas insofismáveis deste ou daquele processo foram obtidas ilicitamente é a rota mais fácil para a impunidade. É a solução “coringa”. Xeque-mate no Ministério Público. Nada será preciso explicar. É como se tudo o que o País vê e ouve não existisse. Alguém cometeu um erro na investigação. Basta achá-lo e espiolhá-lo. Por menor que seja, valerá.

E os acusados, mesmo quando culpados, nada lhes afligirá. Não serão absolvidos. Tampouco serão condenados. Continuarão inocentes até que uma prova “válida” – e ao gosto dos nossos tribunais – mostre o contrário.

Mas hoje é um dia diferente (veja aqui). O egrégio TRF-1 não foi o palco onde se cumpriria esse roteiro.

 

*Vladimir Aras é diretor de Assuntos Jurídicos da ANPR e procurador da República na PR/BA

 

O texto foi originalmente publicado em http://blogdovladimir.wordpress.com/2012/06/18/deja-vu-processual-mais-do-mesmo/

logo-anpr