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Desmonte do sistema patriarcal é responsabilidade de homens e mulheres

O clamor por equidade entre homens e mulheres tem o dia 8 de março como marco comemorativo desde 1975, quando a ONU oficializou o Dia Internacional da Mulher. Contudo, desde o início do século 20, a data representa a necessidade de demolir um sistema social que oprime a população feminina mundial, alvo de violência e desigualdade.

Ao contrário do que muitos pensam e pregam, os papéis associados à feminilidade e à masculinidade não tiveram sempre as atuais configurações. O cenário presente foi erguido durante séculos, camada por camada, até atingir a presente edificação social.

Quando a humanidade baseava sua subsistência na caça e na coleta de alimentos, mulheres e homens tinham funções equivalentes nos grupos sociais, sem a submissão de um gênero a outro.

Esse quadro mudou com o advento da agricultura. Os homens dedicam-se à lavoura, atribuindo às mulheres os cuidados com o lar e a prole, que passam a ser excluídas do protagonismo social e dos lugares de poder.

O processo de segregação feminina é, pois, milenar. A festejada democracia grega, berço da civilização ocidental, foi um sistema excludente, no qual apenas os homens tinham voz e voto. Às mulheres restavam os papéis de mãe e esposa.

Na seara religiosa, reforça-se o conceito da mulher subordinada ao homem. No livro de Gênesis, um dos textos básicos das religiões judaico-cristãs, Eva, a primeira mulher, é gerada da costela de Adão, o primeiro homem, com a finalidade de auxiliá-lo.

No folclore judaico, teria havido uma mulher anterior a Eva, Lilith, criada do barro como Adão, mas insubmissa a ele e, por isso, apagada da tradição religiosa ou apresentada como demônio[1].

No decorrer dos séculos, foram sendo criados mecanismos religiosos, legais e morais para a opressão feminina e para uma definição de feminilidade não sustentada pela realidade objetiva.

A célebre frase de Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”[2] representa a ideia de que a sociedade atribui funções às mulheres que não lhes são inerentes por razões biológicas. Comportamentos associados ao feminino, como a delicadeza, a passividade ou a maternidade, são, de fato, influências externas. As mulheres são condicionadas, desde tenra idade, a assumi-los, ainda que não façam parte de suas personalidades.

A imagem da mulher frágil, pouco inteligente e incapaz de liderar é construção ilusória de uma sociedade pautada pelo masculino. Partindo-se dessa miragem, por muito tempo vigorou a tese de que a mulher deveria ser tutelada pelo homem, não podendo existir como cidadã em sua completude.

Basta pensar que o voto – uma das maiores expressões da cidadania – só foi plenamente assegurado às brasileiras em 1932[3]. Além disso, até 1962, uma esposa era considerada civilmente incapaz para realizar determinados atos, necessitando da aprovação ou intermediação do marido para efetuá-los.

Os reflexos dessas e de inúmeras outras restrições mantêm-se até hoje. Seja no campo social, profissional ou político, são patentes as desvantagens femininas.

As mulheres são alvo da violência pelo simples fato de serem mulheres. Em 2020, houve 1.350 feminicídios. Em mais de 80% dos casos, as vítimas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros.As brasileiras compõem 52% da população, mas só ocupavam 44,8% dos postos de trabalho em 2019, recebendo, em média, valores equivalentes a 85% do salário dos homens, apesar de possuírem melhor nível de instrução. Naquele ano, na faixa etária de 25 a 34 anos, só 18% dos homens tinham curso superior, contra 25% das mulheres.

Na política, apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional são ocupadas por representantes femininas.

E todo esse contexto piora muito ao se acrescentar o viés da cor da pele. No Brasil, à misoginia soma-se o racismo estrutural.

As parlamentares pretas ou pardas ocupavam apenas 2,36% das vagas no Congresso Nacional em 2019.

Dos casos de feminicídio em 2020, quase 62% das vítimas eram pretas e pardas.

A taxa de desemprego para mulheres negras era de 16,6% em 2019, contra 11% das mulheres brancas e 8,3% dos homens brancos. Além disso, o salário pago a uma mulher preta ou parda representava 58% do pagamento feito a uma mulher branca e 43% do valor pago a um homem branco.

É preciso lançar bases educacionais que reforcem o respeito às diferenças, aos direitos humanos e à equidade entre os gêneros.

Em 2020, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) deu mais um passo nesse terreno educacional, promovendo um ciclo de webinários sobre o enfrentamento à violência contra a mulher[4]. Os debates buscaram não apenas instruir os participantes, mas igualmente encontrar soluções.

A educação é ponto-chave para melhorar o cenário atual. Não só para formar homens que respeitem as mulheres, mas igualmente para formar mulheres que tenham plena confiança em suas capacidades.

No ambiente das escolas e nos currículos escolares, é necessário falar sobre a inexistência de papéis específicos para os gêneros em nossa sociedade. Na média, as capacidades cognitivas e comportamentais de mulheres e homens não têm grandes distinções. As mulheres são plenamente capazes de desempenhar papéis hoje reservados aos integrantes do universo masculino e vice-versa.

Sobram exemplos dessa capacidade. Marie Curie foi a única pessoa a receber dois prêmios Nobel em áreas distintas da ciência: física e química; Lina Bo Bardi criou o arrojado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp); e Angela Merkel liderou a Alemanha por 16 anos consecutivos.Por tudo isso, é importante expor meninas e meninos a estímulos não baseados no gênero durante sua formação, de modo a proporcionar-lhes um desenvolvimento mental mais rico.

É essencial que os homens tenham consciência de sua posição social privilegiada ante as mulheres, percebendo as agruras por que elas passam.

Um homem não precisa se preocupar com a roupa que está usando por temer um ataque sexual; uma mulher será alertada para a vestimenta que usa, pois isso pode atrair a atenção de um estuprador.

Um homem que defenda suas opiniões veementemente será visto como uma pessoa assertiva; uma mulher assertiva será vista como descontrolada.

Um homem não será questionado sobre sua paternidade em uma entrevista de emprego, tampouco perderá a vaga de trabalho se for pai; uma mulher terá sua capacidade profissional posta em xeque se for ou pretender ser mãe.

Oportuno lembrar que um dos mecanismos mais engenhosos de opressão feminina está no cuidado com os filhos. Nossa sociedade impõe à mãe o papel de principal responsável pelos pequenos, mesmo que trabalhe fora tanto quanto o pai das crianças.

No Brasil, quando nasce um bebê, se os pais trabalham, a mãe tem de 120 a 180 dias de licenças remunerada, enquanto o pai tem de 5 a 20 dias. É óbvio que a discrepância nas licenças forçará a mãe a ser a principal responsável pela criança.

Na Suécia, são destinados 480 dias de licença para serem divididos entre o casal. O cuidado com os filhos é partilhado entre ambos, repensando a função masculina na sociedade.

Nesse sentido, existe Projeto de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados, criando a licença parental, que concede 180 dias de licença remunerada a até duas pessoas responsáveis pela criança, numa tentativa de avanço no campo da equidade de gênero.

Vale lembrar que há uma lógica de desenvolvimento vinculada às ações de equidade de gêneros.Dividir tarefas por gêneros limita o potencial de crescimento de cada pessoa. Se o talento, em média, é igualmente distribuído entre mulheres e homens, estamos desperdiçando um enorme potencial humano, ao restringir o acesso das mulheres às posições de protagonismo em nossa sociedade.

Em especial na política, faz-se necessária enorme mudança. Ao completarmos 200 anos de independência e 90 anos do voto feminino, é indispensável uma maior participação feminina nas corridas eleitorais de 2022. Não haverá transformação social sem mais mulheres na arena política.

Muito já se avançou nesses quase cinquenta anos de celebração do Dia Internacional da Mulher, mas o desafio a ser superado ainda possui proporções colossais. Sem uma ação política massiva e decisiva, que não pode ser colocada como mais um encargo exclusivo para as mulheres, e sem papéis de liderança e de representatividade, seguiremos rememorando as razões desta data ainda por longo tempo. Não nos enganemos, o desmonte do sistema patriarcal é responsabilidade de toda a sociedade, de homens e mulheres.

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[1] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/teoria-da-conspiracao-lilith-a-primeira-mulher-de-adao/

[2] Beauvoir, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2, 3. Ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2016, p. 11.

[3] https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Fevereiro/dia-da-conquista-do-voto-feminino-no-brasil-e-comemorado-nesta-segunda-24-1. Acesso em 18/02/2022.

[4] http://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias/mpf-promove-seminarios-online-e-abertos-a-populacao-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 22/02/2022.

*Publicado originalmente no Jota 

*Ana Borges Coelho Santos – Subprocuradora-geral da República. Procuradora federal dos direitos do cidadão substituta. Mestra em direito e especialista em direitos sociais, ambiental e do consumidor

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