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Dia da Mulher: transcendendo todos os preconceitos

Desde 1975, o dia 8 de março é um dia de lembrar as lamentáveis condições das mulheres ao redor do mundo, bem como de celebrar suas conquistas rumo a uma maior equidade de gênero.

Apesar disso, pedimos sua licença (e boa vontade) para falar da história de um homem: Bruce Jenner.

Bruce era um atleta estadunidense que começou cedo no esporte. Jogou basquete, futebol americano e, depois de machucar o joelho, começou a praticar decatlo.

O decatlo é um esporte duro: dez provas de atletismo em dois dias. Saltos, arremessos e corridas, exigindo o máximo dos competidores. Numa era hiperespecializada, ser competente em dez provas diferentes é um feito extraordinário. Por isso, o vencedor dessa prova numa olimpíada é considerado o maior atleta do mundo.

Nos Jogos Olímpicos de 1976, Jenner chegou lá. Um competidor obstinado, ele levou a medalha de ouro e bateu o recorde mundial da modalidade. Entrou para a história.

Com 1,88 m, corpo atlético e uma vitória olímpica no decatlo, ele se encaixava no ideal masculino da década de 1970. Enriqueceu, casou-se por três vezes e teve seis filhos.

Neste momento, talvez você se pergunte o que Bruce Jenner e o Dia da Mulher têm em comum. A resposta é: apesar da imagem de masculinidade, Bruce, em seu íntimo, se identificava como mulher, vivendo desde sempre um dilema sobre sua identidade de gênero. Sua dedicação às competições era uma forma de lidar com esse dilema. Por baixo de sua couraça masculina, vivia Caitlyn.

Caitlyn levou quase 40 anos para romper a armadura de Bruce. Em 2015, o ex-atleta declarou ter feito uma transição de gênero, assumindo-se, definitivamente, mulher.

Essa história espelha o drama de milhares de mulheres transgênero ao redor do mundo. Pessoas cuja identidade de gênero diverge do sexo de nascimento. Esses seres humanos, num ato de extrema coragem, transitam para um lugar de luta e sofrimento, pois ser mulher em um mundo patriarcal é um exercício diário de sobrevivência.

A existência feminina é uma luta diuturna contra um brutal sistema de repressão, submissão e controle. Por centenas de anos, os homens buscaram esmagar a autonomia e a capacidade femininas. Ser mulher significou por muito tempo ocupar um papel social limitado e subalterno.

A competência feminina, fora dos afazeres domésticos e dos deveres de cuidado, sempre foi colocada sob suspeita; a inteligência, sempre questionada; o controle emocional, sempre posto em dúvida (a palavra histeria, não por acaso, é derivada do grego hystera, que significa útero). Trata-se de ação proposital, com o fim de diminuir a mulher e submetê-la à dominação masculina.

A incapacidade feminina é falaciosa, mas essencial à manutenção do patriarcado. Seja no campo esportivo, intelectual, empresarial ou mesmo militar (lembre-se de Joana D’Arc), as mulheres são tão competentes quanto os homens. Sua associação à fragilidade e à submissão não tem base biológica, consistindo em mera convenção social.

Há décadas, as mulheres vêm rompendo esse molde e ocupando os lugares que lhes são devidos. Pagam caro por isso, enfrentando resistência simbólica e física a seus avanços. Violências de todas as naturezas permeiam cada fase da sua existência, sendo que muitas terminam vítimas de feminicídio.

Se para uma mulher cisgênero (que tem sua identidade sexual alinhada ao sexo com que nasceu) o patriarcado é um enorme desafio, o que dizer de uma mulher trans? Para ela, o obstáculo ganha vários degraus extras, pois precisa não só lutar pelos seus direitos de mulher, mas também provar-se pertencente a esse gênero.

A todo momento são levantadas objeções à feminilidade trans. Há quem sustente serem mulheres apenas as pessoas submetidas a uma cirurgia de redesignação sexual. Contudo, a pertença a um gênero não depende da genitália da pessoa, mas sim de sua identificação com ele. A própria Caitlyn fez essa cirurgia dois anos depois de ter se declarado mulher.

Outras correntes afirmam que apenas as mulheres cisgênero são mulheres de verdade, pois as transgênero não possuem todo o aparato biológico que caracterizaria o gênero feminino, como o útero, por exemplo. Por essa lógica, uma mulher cis submetida a uma histerectomia perderia sua condição feminina, algo absurdo. Ser mulher é muito mais que possuir ou não determinado órgão.

Existem ainda argumentos sobre a experiência feminina da mulher trans não ser comparável à de uma mulher cis, já que a pessoa trans teria vivido parte de sua vida como homem. Experiências não são passíveis de comparação, cada vivência individual deve ser respeitada.

Da mesma forma que o gênero é uma construção social, também é verdade que ele é uma categoria à qual se adere subjetivamente. É mulher quem se reconhece mulher.

E se reconhecer mulher, tendo nascido homem, é um tremendo desafio em uma sociedade machista, racista e preconceituosa.

Imagine a seguinte situação: uma pessoa nasce biologicamente homem, porém se identifica como mulher. O descompasso entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero provavelmente lhe causará angústia e sofrimento, merecendo, portanto, compreensão e acolhimento.

No entanto, seus problemas só começaram. Sua família, seus amigos e a sociedade a veem como um homem. Querem que ela seja um homem, embora ali esteja uma mulher. Para atingir esse fim, o entorno social quase sempre usará religião, pseudociência e violência. As estatísticas demonstram que a pessoa será rejeitada e muitas vezes expulsa de casa.

Esse cenário comum contaminou até a ciência. Não faz muito tempo, a medicina classificava a transexualidade como uma doença mental. Apenas em 2019, a Organização Mundial de Saúde passou a reconhecer tal condição como algo natural.

Rejeitada e estigmatizada por familiares e pela sociedade, essa mulher transgênero será muito mais discriminada do que a cisgênero.

Sua educação será prejudicada, pois a discriminação constante a afastará da escola. A evasão escolar entre estudantes trans era de 82% em 2016.

Sua busca por um emprego formal será infrutífera: apenas 4% das mulheres trans obtêm carteira assinada. Depois de ser sistematicamente preterida ao se candidatar a um trabalho, ela será obrigada a se prostituir, como fazem 90% das mulheres em sua situação, segundo publicação da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra).

Sua expectativa de vida será de apenas 35 anos, contrastando com os 75 anos da população em geral. A baixa longevidade equivale à média geral brasileira em 1900: 33,7 anos.

A vida abreviada se deverá, em parte, ao fato de o Brasil ser o campeão mundial de assassinatos de travestis e de pessoas transgêneros nos últimos 14 anos. Assassinatos em regra cruéis, envolvendo, entre outros métodos, a queima, a mutilação e o apedrejamento das vítimas.

Sair às ruas todo dia para essa mulher será, portanto, sinônimo de medo. Esse contexto de terror, aliado a uma vida de abandono, pressão psicológica e violência, provavelmente a levará ao adoecimento mental. Pesquisas estimam que o índice de suicídio na população trans esteja entre 31% e 50% e que as taxas de depressão, ansiedade e transtorno bipolar sejam mais frequentes nesse grupo.

Além disso, há a fetichização sexual das mulheres trans. De acordo com informações da plataforma de streaming Pornhub.com, um dos maiores sites de vídeos pornográficos do mundo, a pornografia transgênero foi o conteúdo mais procurado no Brasil em 2022.

Junte-se a isso a inoperância do poder público em proteger pessoas sujeitas a tratamento tão desumano. Pouco mais da metade dos suspeitos dos 175 assassinatos de pessoas transgênero cometidos no Brasil em 2020 foram identificados. Boa parte deles afirmou que o crime se deu em legítima defesa, após algum desentendimento com a vítima durante um programa sexual. Muitos desses suspeitos, mesmo tendo confessado o crime, foram soltos sob a alegação de que não representavam perigo à sociedade.

A existência dessa mulher trans é um verdadeiro suplício. Ela estará lutando literalmente por sua vida a cada dia.

A fetichização sexual, os assassinatos cruéis e a leniência do poder público na apuração desses crimes indicam a redução das vítimas a objetos sexuais desprezados socialmente.

Ainda mais indignante do que a suposta motivação dos assassinatos é a concordância tácita de nossa sociedade com as violências sofridas por esse grupo de pessoas, simplesmente porque elas não correspondem aos padrões cisheteronormativos predominantes.

É preciso reconhecer a interseção entre as realidades femininas cis e trans, especialmente quanto à opressão masculina. Todas essas mulheres lutam pelas mesmas finalidades: respeito, equidade de direitos entre os gêneros e dignidade humana.

Hoje rememoramos a luta do feminino por seu devido lugar em nossa sociedade. O feminino presente em qualquer mulher, não importando sua anatomia atual ou pregressa. Reconhecer cada mulher, defendendo sua vida e seu merecido espaço em nossa sociedade é trabalho para todas e todos, cis e trans. Não haverá equidade entre masculino e feminino enquanto não se respeitar a identidade de gênero de todas as mulheres.

Precisamos transcender conceitos arcaicos e preconceitos odiosos, ou o 8 de março será sempre um símbolo de anseios futuros, jamais de mudanças e avanços presentes para as mulheres.

Um feliz dia da mulher. A todas. Sem exceções.

*Publicado originalmente no Jota 

Caroline Maciel - Procuradora regional da República e coordenadora do Grupo de Trabalho Mulher, Criança, Adolescente e Idoso: Proteção de Direitos da PFDC

Carlos Alberto Vilhena - Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

 

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