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Direito ao silêncio e a obrigação de falar a verdade


Recentemente, divulgou-se na imprensa decisão proferida pela ministra Cármen Lúcia, em sede de Habeas Corpus, em favor do coronel da reserva Hélcio Bruno de Almeida, do Instituto Força Brasil, convocado para prestar depoimento na CPI da Covid. Garantiu-se ao paciente o direito de se manter em silêncio durante a inquirição com relação aos fatos/questionamentos que possam comprometê-lo criminalmente, porém estava obrigado a falar a verdade, enquanto testemunha, sobre os demais fatos que não o incriminem[1].

Na referida decisão, a ministra destacou que “convocado que foi nesta condição (testemunha), pode ele se manter em silêncio se questionado sobre fatos e atos que possam conduzir a seu comprometimento criminal, mas como testemunha não pode pretender eximir-se do direito ‘de dizer a verdade'”.

O caso envolve uma clara situação de confronto entre o direito ao silêncio e a garantia da não-autoincriminação e o dever da testemunha de falar a verdade.

A Constituição Federal, no art. 5º, inciso LVIII[2], consagra, no processo penal, o direito do acusado ao silêncio e, por conseguinte, o princípio da não-autoincriminação ou nemo tenetur se detegere, que, em suma, caracteriza-se pelo direito do acusado de não ser obrigado a produzir prova contra si.

Esse direito do acusado é esmiuçado pelo art. 186 do Código de Processo Penal, quando estabelece que “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”, não podendo o silêncio ser interpretado em seu desfavor.[3] Esse direito/garantia deverá ser respeitado em todas as esferas persecutórias penais, que inclui a CPI.

Por outro lado, o art. 342 do Código Penal define a situação fática que se considera crime de falso testemunho[4], impondo, desse modo, a toda testemunha o dever de falar a verdade.

Nesse cenário, independente do compromisso inicial de falar a verdade, nenhum depoente é obrigado a falar a verdade sobre perguntas que lhe possam incriminar. A condição de acusado/investigado é resultante da posição assumida pela pessoa na investigação, que, em um depoimento, caracteriza-se pelo direcionamento de perguntas que possam resultar em uma possível autoincriminação.

Ou seja, o status estabelecido por um órgão de persecução a um depoente é irrelevante para o seu enquadramento como testemunha ou acusado em uma inquirição. Essa qualidade deverá ser aferida no momento do interrogatório.

De acordo com a decisão proferida pela ministra Cármen Lúcia, ao paciente do referido Habeas Corpus, convocado para depor na CPI na condição de testemunha, assegurou-se o direito ao silêncio com relação aos questionamentos que o incrimine, assim como consignou-se o dever de falar a verdade quanto aos eventos que não o incrimine.

Ocorre que essa situação hibrida que o paciente foi enquadrado pela mencionada decisão (acusado/testemunha; direito ao silêncio/dever de falar a verdade) é de difícil controle e impossível de se aferir com precisão quando deverá prevalecer o direito ao silêncio ou o dever de falar a verdade.

Um questionamento, mesmo aparentemente, na visão do investigador, dissociado da atuação do interrogado, pode ser interpretado como incriminador pelo interrogado. Desse modo, como situações (perguntas) de constante subjetivismo das partes, questionador e questionado, poderão ser aferidas com precisão, durante a realização do ato, como pergunta que aflora o direito de defesa do interrogado (exercício do direito ao silêncio) ou pergunta de caráter testemunhal (dever da verdade)?

A hibridização do interrogado acaba resultando na inviabilização do ato (depoimento), sendo necessário, em verdade, ser definido previamente qual status o interrogado irá assumir no ato (acusado ou testemunha).

Caso exista alguma possibilidade de o depoimento ser enquadrado como uma situação de levantamento de prova em desfavor do interrogado, deve prevalecer o direito ao silêncio, que deverá ser afastado apenas nos casos que o depoente claramente se apresente como testemunha.

Referências 

[1] Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/cpi-da-covid/noticia/2021/08/09/carmen-lucia-autoriza-coronel-helcio-bruno-a-ficar-em-silencio-na-cpi-para-nao-se-incriminar.ghtml>.

[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

(…)”.

[3] Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

[4] Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013) (Vigência)

§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)

§ 2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)

GALTIÊNIO DA CRUZ PAULINO – Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestre pela Universidade Católica de Brasília e doutorando pela Universidade do Porto. Possui pós-graduação em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp. Orientador pedagógico da ESMPU. Ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República. No MPF, foi membro-auxiliar do procurador-geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no STF, entre 2018 e 2019, e atualmente é membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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