O plano contém diretrizes para a promoção dos direitos das pessoas com deficiência, mencionando políticas de inclusão educacional e social, em cumprimento à Convenção da Organização das Nações Unidas – ONU - sobre os mesmos direitos. Essa Convenção foi ratificada e aprovada pelo Brasil com força de emenda constitucional, sendo que o país está obrigado a enviar relatórios periódicos ao respectivo Comitê de acompanhamento. O "Viver sem Limites" será, com certeza, o cerne do próximo relatório brasileiro.
No papel o plano é muito bom e conta com verbas bastante significativas. Se bem executado, representará um impulso efetivo no acesso dessa enorme parcela da população a serviços de educação, saúde, habilitação, reabilitação, informação, lazer, cultura, entre outros direitos humanos e sociais.
Especificamente em relação ao Decreto 7.611, no entanto, não é possível dizer o mesmo. Sua redação já representa um retrocesso. Ele revogou o Decreto 6.571, de 17.09.2008, que tratava do "atendimento educacional especializado" numa perspectiva de apoio e complemento aos serviços de educação inclusiva, sem deixar válvulas para a manutenção do ensino exclusivamente segregado de crianças e adolescentes com deficiência.
A ênfase acima ao "exclusivamente" é para que fique claro que não há nada contra o ensino especializado historicamente oferecido por instituições filantrópicas, como Apaes e outras. Esse ensino é importante, mas não deve ser o único ambiente educacional ao qual os alunos com deficiência devem ter acesso. Eles têm, também, o direito inalienável de estudarem em ambientes escolares comuns. Essa é a inovação chancelada pela Convenção da ONU quando, entre outros princípios, afirma, em seu artigo 24, que "os Estados Partes assegurarão um sistema educacional inclusivo em todos os níveis" e enfatiza o direito de "acesso ao ensino primário inclusivo" (item 2, alínea "b").
Pois bem, o novo decreto, ao contrário do 6.571 – revogado - , afasta-se dessa linha porque contém o grave erro de colocar a chamada educação especial como algo à parte e até mais amplo que o atendimento educacional especializado – AEE. A diferença entre os dois institutos é a seguinte: a Constituição Federal de 1988 fala apenas em AEE, rompendo com a educação especial tal como era antes da CF/88, ou seja, ensino destinado a pessoas com deficiência, independentemente da idade do aluno e da frequência concomitante a uma escola comum.
A redação do Decreto 7.611 também fere a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN - pois esta fala apenas em educação especial, mas a define como AEE. Logo, interpretada em conjunto com a CF, onde está escrito "educação especial" na LDBEN, leia-se AEE.
No Decreto 7.611 não é possível fazer essa mesma leitura porque ele coloca os dois institutos em paralelo, o que nem a CF e nem a LDBEN fizeram. Colocar os dois institutos em paralelo pode ser uma sinalização de que se voltou a admitir a educação especial tal como era antes da CF/88. Seria um retrocesso e uma ofensa à Convenção.
É grave, mas ainda é possível tratar essa questão apenas como uma problemática de redação, que pode vir a ser corrigida.
Por outro lado, os artigos do 7.611, que parecem alterar os artigos 9 e 14, do Decreto 6.253/07 (que cuida do Fundeb) e, por isso, estão preocupando as pessoas que defendem a inclusão educacional, não são novidade e nem se pode falar em retrocesso em relação a eles. Essa alteração é de 2008, apenas foi repetida no novo decreto. A única mudança é que o texto do artigo 14, do Decreto do Fundeb, foi transcrito integralmente no Decreto 7.611, que agora é o que regulamenta as políticas educacionais para pessoas com deficiência. Provavelmente para não deixar dúvidas de que as filantrópicas podem receber a verba destinada à escolarização básica pública e não apenas a verba do AEE.
Essa forma de financiamento ainda é uma abertura para a manutenção do ensino especial e exclusivo, mas a tendência nesse período de transição – ensino segregado para ensino inclusivo - é que cada vez mais esse tipo de verba seja paga apenas nos casos em que os alunos destinatários não estejam compreendidos na faixa etária de escolarização obrigatória (ao menos dos 5 aos 14 anos).
Portanto, faz-se necessária apenas uma revisão na redação do Decreto 7.611, com vistas a se buscar uma conformidade do seu texto à LDBEN, à CF e à Convenção da ONU. É possível que o Ministério da Educação e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República já estejam trabalhando nisso porque o novo governo não pode ficar vulnerável nesse ponto crucial em seu próximo relatório à ONU.
Eugênia Augusta Gonzaga é procuradora da República do estado de São Paulo