Em razão da pandemia de Covid-19, as atividades escolares foram suspensas em todo o país, e por conta da necessidade de reorganizar os calendários escolares de 2020, o Conselho Nacional de Educação – CNE aprovou, por unanimidade, no dia 28 de abril, as diretrizes para orientar escolas da educação básica e instituições de ensino superior durante a pandemia do novo coronavírus[1].
O referido parecer apresenta como ponto mais polêmico a autorização para que as aulas e as atividades a distância sejam contabilizadas como horas letivas, sendo que o CNE sugere que estados e municípios busquem alternativas para minimizar a necessidade de reposição presencial de dias letivos, a fim de permitir que seja mantido um fluxo de atividades escolares aos estudantes enquanto durar a situação de emergência.
No Brasil, em todos os estados, há suspensão de aulas para conter o avanço da pandemia do novo coronavírus. Segundo a UNESCO e o UNICEF[2], estima-se que, na América Latina e no Caribe, mais de 154 milhões de crianças e jovens, cerca de 95% dos alunos matriculados na região, estão temporariamente fora da escola devido à Covid-19.
Vale frisar, ainda, que a subdiretora geral de Educação da UNESCO, no mesmo documento, observou que “as escolas, ainda que estejam longe de serem perfeitas, desempenham uma função niveladora na sociedade e quando estas se fecham, as desigualdades se agravam”.[3]
A respeito das modalidades de educação a distância, o documento citado, produzido pela UNESCO e UNICEF, aponta que há acesso desigual aos portais de aprendizagem digital, ou seja, a falta de acesso à tecnologia ou a uma boa conexão de Internet é um obstáculo para a aprendizagem contínua, principalmente para os estudantes de famílias desfavorecidas[4].
Preocupado com os desdobramentos nefastos das presentes medidas em relação ao núcleo fundamental do direito à educação, principalmente de grupos mais vulneráveis e marginalizados (alunos das escolas públicas, escolas no campo, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, alunos com deficiência, alunos da periferia, negros e pardos, etc) é que o presente artigo pretende traçar orientações e parâmetros sobre a garantia do direito à educação em tempos de pandemia.
A Constituição Federal consagra em seu artigo 6º que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
No Brasil, a educação tem status de direito fundamental indisponível (art. 208, § 1º CR), notadamente no que tange à educação básica dirigida a crianças e adolescentes, dada a instituição do regime constitucional de proteção integral[5].
O art. 205 da Constituição Federal estabelece que: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Não foi por acaso que a nossa Carta Magna elencou como objetivos, como facetas principais, como núcleos fundamentais do direito à educação, antes mesmo da qualificação para o trabalho, o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania.
A nossa constituição representa um projeto civilizatório e tem objetivos fundamentais[6], e a educação é um dos direitos fundamentais que pode dar maior concretude a esse projeto emancipatório. É através da educação emancipatória que podemos transformar a sociedade brasileira.
Dessarte, a preocupação primeira de qualquer política educacional deve ser preparar a pessoa para o seu pleno desenvolvimento e para o exercício da cidadania, antes mesmo de prepará-la para o mercado de trabalho.
Entrementes, isso só é possível se for garantida a igualdade de oportunidades e a igualdade material de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I da CF[7]).
Por conseguinte, a preocupação de unicamente reorganizar o calendário escolar em tempos de pandemia de Covid-19, sem levar em consideração os objetivos fundamentais do direito à educação (pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania), nem a garantia de igualdade de oportunidades e de igualdade material de condições para o acesso e permanência na escola (há acesso desigual aos portais de aprendizagem digital, ou seja, a falta de acesso à tecnologia ou a uma boa conexão de Internet é um obstáculo para a aprendizagem contínua, principalmente para os estudantes de famílias desfavorecidas), aprofundando ainda mais as desigualdades já existentes na educação brasileira, é absolutamente inconstitucional, pois fere de morte o núcleo essencial do direito à educação.
Assim sendo, deve-se reconhecer que a dimensão prestacional do direito à educação, que demanda atuação comissiva do Estado para sua promoção, não se restringe à oferta de serviços de educação.
A Educação, pois, deve visar ao atingimento dos objetivos da República Federativa do Brasil, que são construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Constituição de 1988 adota, explicitamente, portanto, a concepção de educação como preparação para o exercício de cidadania, o respeito à diversidade e convívio em sociedade plural, com múltiplas expressões religiosas, políticas, culturais e étnicas. Destarte, uma visão da educação meramente como preparatória para o mercado de trabalho, ou que privilegia unicamente essa vertente, é inconstitucional.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, chamada ao debate, expediu a Nota Técnica nº 11/2020/PFDC/MPF, em 15 de maio de 2020, defendendo a correta interpretação constitucional aqui retratada[8].
Pois bem, como se vê, padece de inconstitucionalidade, qualquer interpretação que defenda a reorganização dos calendários escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia de Covid-19, com o uso da educação por meio de tecnologias digitais de informação e comunicação, do ensino doméstico com guias de orientação às famílias e acompanhamento dos estudantes, caso as referidas aulas e atividades a distância sejam contabilizadas como horas letivas, uma vez que não é viável a continuidade das atividades escolares para todos os estudantes do território brasileiro.
Ou seja, reorganizar o calendário escolar em tempos de pandemia de Covid-19, sem levar em consideração os objetivos fundamentais do direito à educação (pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania), nem a garantia de igualdade de oportunidades e de igualdade material de condições para o acesso e permanência na escola, aprofundando ainda mais as desigualdades já existentes na educação brasileira, é absolutamente inconstitucional, pois fere de morte o núcleo essencial do direito à educação.
Há, pois, acesso desigual aos portais de aprendizagem digital, ou seja, a falta de acesso à tecnologia ou a uma boa conexão de Internet é um obstáculo para a aprendizagem contínua, principalmente para os estudantes de famílias desfavorecidas, pois as desigualdades sociais são reproduzidas na área da educação.
É notório que as desigualdades sociorraciais que cotidianamente afetam o acesso dos estudantes brasileiros ao direito à educação de qualidade, em tempos de pandemia e isolamento social, intensificam-se ainda mais.
Assim sendo, não respeitarão os parâmetros constitucionais quaisquer políticas públicas de educação em tempos de pandemia, de todas as esferas (federal, estaduais ou municipais), que não obedeçam às orientações e parâmetros sobre a garantia do direito à educação aqui delineados.
Referências
[1] Trechos retirados de: http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php?option=com_content&view=article&id=89051:cne-aprova-diretrizes-para-escolas-durante-a-pandemia&catid=12&Itemid=86.
[2] Disponível em: https://nacoesunidas.org/coronavirus-unesco-e-unicef-trabalham-para-acelerar-solucoes-de-aprendizagem-adistancia/.
[3] Id, ib
[4] Id, ib
[5] MARQUES, M. T. S. Sistema de Garantias de Direitos da Infância e da Juventude. In: LIBERATI, W. D. (org.). Direito à educação: uma questão de justiça. São Paulo. Malheiros. 2001.
[6] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[7] Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
[8] Remetemos o leitor a íntegra da referida Nota Técnica que pode ser acessada em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-tecnicas/nota-tecnica-11-2020-pfdc-mpf.
FELIPE DE MOURA PALHA E SILVA – Procurador da República, Coordenador do Grupo de Trabalho Educação em Direitos Humanos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC na gestão 2016-2020, Ministério Público Federal.