Entre as pessoas que construíram, por ações ou reflexões, o atual modelo de Ministério Público uma das principais referências é Ela Wiecko, que acaba de se aposentar do Ministério Público Federal (MPF). Poucas pessoas conseguiram exercer as principais funções do Ministério Público – a promoção de direitos fundamentais e o exercício da ação penal – com tanta coerência e compromisso com a Constituição de 1988. Em tempos de deploráveis e bárbaros atos de incivilidade e de atentados à democracia, a aposentadoria de Ela Wiecko deixa uma enorme lacuna, mas a sua contribuição singular para a história da instituição nos convida para o reencontro do Ministério Público com suas inteiras funções.
Em sua trajetória no MPF, iniciada em 1975, Ela Wiecko foi uma craque que jogou nas onze e caminhou por áreas tão vastas como são as missões que a Constituição de 1988 confiou ao Ministério Público brasileiro, do que se percebe a harmonia de seus interesses com o próprio éthos da instituição. Ela sempre manteve a mirada crítica e garantista que suas pesquisas na área da criminologia lhe possibilitam e nunca abriu mão da defesa dos despossuídos e dos grupos mais vulneráveis, seja no enfrentamento do racismo e na luta por igualdade de gênero, seja na defesa dos direitos de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais.
No campo penal, vale dizer, nunca se rendeu aos desmandos do punitivismo, e seu percurso institucional, ao lado dos direitos humanos, enseja uma discussão sobre o necessário realinhamento do Ministério Público brasileiro ao desenho arrojado do constituinte brasileiro, que alçou a função de defesa dos direitos humanos (mais ainda, de toda a ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, na dicção do art. 127, caput, da Constituição) ao mesmo patamar da titularidade da ação penal.
Esse reencontro do Ministério Público consigo mesmo só pode dar certo se a instituição estiver aberta à sociedade civil e afastar-se da disfunção que é girar em torno de seus interesses corporativos. Também aqui notamos na trajetória de Ela um histórico que se confunde com o que se deseja do Ministério Público, pois além de ter sido a primeira ouvidora-geral do MPF – responsável pelo fomento da participação dos cidadãos, de organismos da sociedade civil e de outras entidades públicas e privadas na instituição –, ocupou o cargo de Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, órgão que coordena nacionalmente a promoção dos direitos humanos e que é reconhecido como ombudsman pela Federação Iberoamericana de Ombudsman. Acerca desta atribuição, Ela Wiecko já defendeu que “o exercício da função de ombudsman é absorvido, com resultado positivo e não destoante do desiderato constitucional expresso no art. 129, II da Constituição de 1988, pelo exercício de outras funções atribuídas ao Ministério Público”.
Na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Ela teve destacada atuação na defesa das pessoas mais vulnerabilizadas e dos direitos sexuais e reprodutivos e, quando coordenou a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF – órgão responsável por concertar a atuação da instituição na temática dos direitos indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais –, pode-se dizer que lançou as bases, depois aprofundadas pela também gigante Deborah Duprat, da reconhecida atuação do MPF na matéria, conferindo concretude ao art. 129, inciso V, c/c art. 109, inciso XI, da Constituição Federal, e ao art. 6º., VII, “c”, da Lei Complementar n. 75/1993. Aliás, não é exagero dizer que ambas, Ela Wiecko e Deborah Duprat, fundaram uma escola na temática.
Tendo sido a primeira e única mulher a presidir a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ela Wiecko bem poderia ter sido a primeira procuradora-geral da República (PGR), mas foi preterida por sucessivos chefes do Executivo, mesmo tendo integrado por seis vezes a lista tríplice oferecida pela classe. Apesar das transformações na instituição, a carreira de procuradoras e procuradores da República sempre soube reconhecer a sua capacidade de liderar o MPF e a importância das bandeiras defendidas por Ela. Diante de barreiras que limitaram a ascensão de um de seus quadros mais progressistas à chefia do Ministério Público, resta não apenas imaginar como poderia ter sido a instituição se sua chefia tivesse sido exercida pela síntese de sua missão constitucional, mas sobretudo pensar em como alcançar a plenitude do resgate do projeto constituinte.
Essas barreiras, como as pedras que Cora Coralina removia para plantar roseiras, foram também removidas por Ela, como os obstáculos do patriarcado estrutural, que Ela enfrentou abrindo novos caminhos sempre. Exemplos foram a condução do Comitê de Gênero e Raça do MPF e da Comissão Nacional de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação.
Não tivesse Ela encontrado a pedra que lhe impediu que fosse PGR, a infâmia da menção da possibilidade de que dois membros do MPF pudessem vir a participar de inconstitucional comissão de indignidade eleitoral, projetada em minuta de decreto apreendido na casa do anterior ministro da Justiça, jamais teria tido a ousadia de ser cogitada.
Mesmo nos momentos de dissonância do MPF em relação ao projeto constitucional para a instituição, Ela manteve-se firme, sem se abater, e seguiu tratando todas as gerações que a sucederam – e muitos foram seus examinados em nossos concursos – com carinho, esperança e muita gentileza. Foi assim que encantou e formou gerações de procuradoras(es) e servidoras(es), com suas posições firmes e coerentes com a sua compreensão sobre o papel constitucional do Ministério Público, especialmente na defesa dos direitos humanos e na promoção da igualdade de gênero.
À instituição, cabe honrar o seu legado e sonhar com o dia em que saberá fazer seu o caminho que tem em Ela Wiecko sua perfeita síntese. Seu nome, Ela, traz uma simbologia à altura da necessidade de promoção dos direitos das mulheres, e fica agora como símbolo do verdadeiro exercício desse ministério público.
*Publicado originalmente no Jota
Marcia Brandão Zollinger – procuradora da República – PR/DF, com atuação no Núcleo de Combate à Corrupção, mestre em Direito (UFPR);
Edmundo Antono Dias Netto Júnior – procurador da República em Belo Horizonte, é procurador regional dos direitos do cidadão substituto do Ministério Público Federal em Minas Gerais;
Julio José Araujo Junior - procurador da República no Rio de Janeiro. É mestre em Direito Público (UERJ) e doutorando em Direito Público (UERJ). É especialista em Política e Sociedade pelo Instituto de Estudos Sociais e Politicos (IESP-UERJ). Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, em 2005.
Paulo Gilberto Cogo Levas – procurador regional da República