A abolição do tráfico transatlântico, em 1831, não impediu sua continuidade até 1850, tampouco evitou que essa tragédia marcasse a vida social brasileira até o presente. Da mesma forma, apesar da abolição da escravidão há 135 anos, o silêncio e o apagamento dessa dura história seguem impedindo o conhecimento das violações ocorridas no passado, e o racismo contra o povo preto persiste de muitas maneiras, do discurso de ódio à sua manifestação institucional.
Entre tantos esquecimentos e sufocamentos, essa questão não deveria ser um tema proibido. Como nos lembra o samba, será que já raiou a liberdade ou foi tudo ilusão?
Refletir sobre crimes contra a humanidade e pensar em formas de reparação nos ajudam a compreender o passado trágico e projetar o nosso presente e futuro, sempre com o objetivo de que tais fatos jamais se repitam. No caso da diáspora africana, não custa lembrar que foi um projeto de desumanização, violências e dores que contou com a complacência de pessoas, famílias e instituições, as quais se beneficiaram direta e indiretamente das atrocidades, sem qualquer tipo de manifestação de reconhecimento ou possibilidade de reparação até hoje.
É verdade que as reparações podem nunca reparar de verdade.
Como alerta Martha Minow, a restituição de arte roubada ou de esqueletos ancestrais pode devolver os objetos físicos, mas não o mundo em que foram roubados. Mas sem a busca pela reparação não há a possibilidade de conhecimento nem o imprescindível reconhecimento. A superação do passado e a construção de um futuro compartilhado pressupõem a desnaturalização do nosso olhar para tantas violências.
O tema está sendo discutido em todo o mundo. Na Conferência de Durban, em 2001, quase duas centenas de países lembraram a importância do pedido de perdão pela escravidão e da adoção de formas de reparação, com o fim de restaurar a dignidade das vítimas dessas tragédias e seus descendentes. Nos Estados Unidos, universidades vasculham sua história e têm adotado programas de reparação por seus vínculos escravistas; no Reino Unido, o jornal The Guardian pediu perdão pelos vínculos de seu fundador com o tráfico.
Famílias inglesas têm destinado indenizações a descendentes de pessoas escravizadas na América Central, e bancos estão sendo desafiados a recontar a sua história. No esforço de quantificar o incomensurável, um estudo da Universidade de West Indies e da American Society of International Laws estimou que seriam necessários mais de US$ 100 trilhões para reparar os efeitos da escravidão em todo o mundo.
Quando se pensa em reparação, não se trata apenas de dinheiro, mas também de medidas, ações e estratégias que tenham a finalidade de ressarcir vários tipos de danos sofridos pelas vítimas de certos crimes. Nesse sentido, podemos falar em restituições de direitos e bens, compensações, reabilitações, medidas satisfatórias e garantias de não repetição. As formas de reparação abrangem, por exemplo, pedidos de desculpas, programas específicos de atendimento a comunidades, indenizações, pesquisas a respeito dos fatos históricos, estabelecimento de lugares de memória, entre outros.
No Brasil, um passo seria muito importante: colocar o tema na agenda e pensar no que temos a dizer sobre isso.
Já se trataria de uma pequena forma de reparação, pois não finge indiferença nem relativiza a nossa história. Desde a promulgação da Constituição de 1988, a luta antirracista avançou bastante, sobretudo nos últimos anos, e o acionamento de mecanismos de memória, verdade e justiça pode contribuir para o aprofundamento de políticas tão sonhadas, porém não totalmente concretizadas. Por isso, como nos lembra outro samba, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e malês. Trata-se de um debate urgente e necessário.
*Artigo publicado originalmente no site Brasil de Fato