Não é correta a afirmação de que o Brasil está entre as poucas nações do mundo que não regulamentaram a exploração privada dos jogos de azar. Entre 1993 e 2002, as chamadas leis Zico e Pelé autorizaram a instalação de milhares de bingos e máquinas caça-níqueis pelo país, a pretexto de fomentar a arrecadação tributária para os desportos.
Pelas brechas dessa legislação, a experiência foi um fracasso. Grupos criminosos que dominavam há décadas o jogo clandestino passaram a explorar, inclusive por laranjas, essas novas modalidades, agora sob o manto da legalidade.
Os territórios continuaram demarcados, com corrupção e sangue, além de julgamentos produzidos por tribunais paralelos, no clássico estilo mafioso. As receitas sobre as quais deveriam incidir repasses para os desportos eram subfaturadas, e ainda criaram-se entidades esportivas de fachada.
Os tributos devidos eram sonegados. O Estado fiscalizador ou era corrompido ou substituído por liminares judiciais compradas, tudo em nome da maior lucratividade.
As coisas mudaram nos últimos 14 anos. A atividade clandestina foi asfixiada por operações policiais em quase todos os Estados da Federação. Como as apreensões dão prejuízo -é caro investir em caça-níqueis-, o melhor negócio para o contraventor passou a ser brigar pela legalidade. O lobby do grupo é pesado.
É até compreensível que, num momento de aguda crise financeira como o que vivemos, o país busque receitas tributárias alternativas, atrair investidores estrangeiros e gerar empregos.
Não se deve usar a recessão, todavia, como desculpa para aprovar qualquer arremedo de lei que nos faça reviver o passado recente. Já aportaram no Congresso Nacional nos últimos 50 anos cerca de 70 projetos de lei para, em maior ou menor extensão, autorizar a exploração privada dos jogos de azar. Nenhum tem aptidão para tirar do baralho as "cartas marcadas".
Ou seja, uma vez liberada a jogatina, certamente os grupos criminosos de sempre irão mais uma vez afastar empreendedores sérios e imprimir suas práticas ilícitas em busca de lucro a qualquer preço. Afinal, quem mais jogaria esse jogo? Em troca de receitas duvidosas, país teria um custo social altíssimo.
Para a discussão desse tema deveriam ser agregados os mais expressivos atores sociais, tendo por pressuposto uma proposta minimamente séria, que adotasse exemplos de países que conseguiram impor o seu papel de regulador e fiscalizador do jogo responsável, com medidas eficazes para afastar da exploração elementos indesejáveis, além de prevenir fraudes e lavagem de dinheiro.
Em 2010, o atual presidente interino, Michel Temer, então presidente da Câmara dos Deputados, convocou uma comissão geral para analisar projetos que pretendiam liberar o jogo -as propostas estipulavam controles tecnológicos muito mais rígidos do que os previstos atualmente.
Após ouvir representantes do Ministério Público, dos ministérios da Fazenda e da Justiça e da Receita Federal, Temer afirmou que o assunto era muito polêmico e precisaria ser mais discutido.
Agora como presidente da República, não se espera dele outra postura a não ser impedir iniciativas que possam legitimar jogos de cartas marcadas.
JOSÉ AUGUSTO SIMÕES VAGOS, 45, é procurador-chefe da Procuradoria Regional da República - 2ª Região