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Lavagem de dinheiro e corrupção: irmãs siamesas

Este segmento do direito penal exige, como nenhum outro, perfeita interação entre três subsistemas: o de prevenção, composto pelos denominados “sujeitos obrigados” e pelos órgãos de inteligência financeira, especialmente o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF); o de repressão ou persecução, integrado pelo Ministério Público e pela Polícia; e o de recuperação de ativos, tarefa desempenhada pelo Parquet e por órgãos do Poder Executivo.

Mantendo esta perspectiva integradora qual uma “parceria público-privada, o PL 3443/2008 fortalece a importância da prevenção da lavagem de dinheiro, ampliando a lista de sujeitos obrigados à manutenção de política de compliance em suas atividades econômicas (art 9º, único, incisos X e XII a XVIII). Neste sistema que a doutrina denomina de twin track fight, parte-se da constatação de que, sem a devida coordenação entre os intermediários econômicos e financeiros e o Estado, não se pode fazer funcionar nem a prevenção nem a repressão à lavagem de dinheiro, tipo de criminalidade que tem uma interface marcante com a economia e o sistema financeiro.

O projeto vai além, pois permite que qualquer infração penal seja considerada como delito-base para fins de lavagem de dinheiro e propõe a eliminação do rol de infrações antecedentes (art. 1º), levando a norma brasileira à categoria das leis de “terceira geração”. Se aprovado o projeto, qualquer infração penal (inclusive as contravenções penais) poderá ser um “delito produtor”, aquele que gera os ativos passíveis de reciclagem (ocultação ou dissimulação, ou lavagem de dinheiro), categoria na qual estão todos os atos de corrupção.

 

OUTROS PONTOS POSITIVOS DO PROJETO

  1. Elimina a proibição da imposição de fiança em casos de lavagem de capitais, pois revoga o atual art. 3º da Lei 9.61398. Isto harmoniza o crime de lavagem de dinheiro com os demais delitos econômicos e mantém a congruência do sistema processual penal, após a revitalização da fiança pela Lei 12.403/11.

  2. Regula a alienação antecipada de bens antes do trânsito em julgado da sentença de mérito na ação penal (arts. 4º, §1º e 4º-A). Disciplina minuciosamente uma praxe que hoje se baseia na Lei 11.343/06, aplicada aos casos de lavagem de dinheiro, com fundamento no art. 3º do CPP e em ato normativo do CNJ.

  3. Prevê o perdimento de bens em prol dos Estados (para casos de competência estadual) ou da União (para casos de competência federal) (art. 7º, I, da lei, na nova redação). Atualmente, o art. 91, II, do CP só prevê o perdimento criminal em prol da União.

  4. Prevê a destinação dos ativos apreendidos/confiscados para os órgãos de persecução (art. 7º, §1º). Atualmente, os bens são entregues à União, sem destinação específica. A entrega de certos ativos à Polícia e ao Ministério Público estimula a eficiência administrativa e contribui para o aperfeiçoamento do aparato investigativo.

  5. Autoriza o afastamento cautelar de funcionários públicos “indiciados” (art.17-C), mantendo sua remuneração. Porém, a redação é equivocada e parece admitir o afastamento automático, pelo só fato do “indiciamento” do servidor suspeito de lavagem de dinheiro. Isto inverte a lógica das cautelares e a vincula a um ato de natureza policial, que não tem consequências processuais. Além disso, o afastamento só cessaria mediante decisão fundamentada do juiz, mas o dispositivo não exige tal decisão para a suspensão da atividade do servidor, o que viola o devido processo legal e o art. 93, IX, da Constituição.

  6. Mantém a escala pena atual do crime de lavagem de dinheiro (3 a 10 anos, e multa). Numa versão anterior do projeto, pretendeu-se elevá-la para o desproporcional intervalo entre 3 e 18 anos de reclusão, e multa.

PONTOS NEGATIVOS DO PROJETO

  1. Disciplina timidamente a delação premiada (art. 1º, §5º). Pouco altera o instituto atual, que carece de elucidação do procedimento a ser adotado pelas partes para a implantação da colaboração.

  2. Caiu o artigo que tipificava o crime de financiamento ao terrorismo (art. 1º-A). Esta era uma exigência do GAFI. Não resistiu à oposição do Poder Executivo, que via na redação proposta a possibilidade – muitíssimo remota – de criminalização de certos movimentos sociais como entes “terroristas”.

  3. Caiu o artigo que permitia o acesso direto da Polícia e do Ministério Público a dados cadastrais dos investigados, como permitia a antiga redação do art. 17-B. Entendeu-se, ao meu ver erradamente, que esses dados estariam cobertos por cláusula de reserva de jurisdição.

  4. Impede a aplicação do art. 366 do CPP e cria a possibilidade de julgamento a revelia no processo penal por lavagem (art. 2º, §2º). O artigo 366 do CPP é uma norma equilibrada, verdadeiramente garantista, pois considera os interesses do acusado (não ser processado à revelia) e da sociedade (suspende o curso do prazo prescricional). O artigo proposto pelo projeto é um passo atrás e seguramente, se aprovado, será declarado inconstitucional pelo STF, por ofensa ao contraditório e à ampla defesa.

  5. O projeto silencia sobre a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, obrigação que está nas Convenções de Palermo e Mérida. No Brasil, por força da Lei 9.605/98 pessoas jurídicas podem responder criminalmente por delitos ambientais. Porém, o art. 173, §5º, da Constituição permite adotar o mesmo modelo para a responsabilização de pessoas jurídicas por crimes contra a ordem econômico-financeira e a economia popular.

  6. Não previu um tipo autônomo para o crime de não comunicação de operação suspeita pelos entes obrigados. Hoje, a não comunicação dolosa pode ser punida com base no art. 13, §2º, do CP, pela teoria da relevância causal da omissão, imputável ao agente de compliance que descumpriu o dever legal de comunicação resultante da Lei 9.613/98, quando atua como garante. Isto pode levar a penas muito altas para tais funcionários. Por outro lado, a punição das omissões culposas fica restrita à esfera administrativa. O ideal seria a criação de um tipo autônomo, o que não foi feito pelo legislador.

 

Conclusão

Algumas das alterações propostas pelo Senado e pela Câmara são muito importantes para a persecução do crime de lavagem de dinheiro e, mais do que tudo, com as ressalvas apontadas, são necessárias e constitucionais.

Apesar de sua lesividade intrínseca e difusa, especialmente em detrimento da ordem econômica e do sistema financeiro, e de sua íntima relação com a corrupção, não se pode superdimensionar a resposta penal ao crime de reciclagem. É possível prevenir e reprimir tais delitos sem atentar contra garantias fundamentais do acusado. Onde há corrupção, quase sempre há lavagem de dinheiro. É preciso assegurar que o crime não compense.

 

*Vladimir Aras é diretor de Assuntos Jurídicos da ANPR e procurador da República na PR/BA

 

Texto originalmente publicado na Revista Consulex

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