Em momentos de crise ou em períodos próximos às eleições, as polêmicas sobre legalização dos jogos de azar são retomadas. Em regra, os discursos explícitos utilizados por seus defensores se limitam ao fato de que a regulamentação da indústria possibilitará o fomento das receitas nacionais, o fortalecimento do turismo em determinadas regiões e a geração de empregos. Para sustentá-los, trazem números que, em um primeiro momento, podem até impressionar. Entretanto, poucos deles suplantam a argumentação numérica ou apresentam uma avaliação mais detida sobre impactos sociais, em especial à segurança pública e à saúde, gerados pelo mercado da jogatina.
Dados empíricos oriundos de diversos trabalhos desenvolvidos pelos Ministérios Públicos, Receita Federal, Polícia Federal e demais órgãos de persecução desvelam que as práticas desenvolvidas dentro do mercado de jogos de azar não se limitam à simples ação contravencional. Há outros riscos sociojurídicos decorrentes da atividade, em especial por estar potencial e umbilicalmente ligada a uma diversidade de práticas ilícitas, como lavagem de dinheiro, corrupção e sonegação fiscal. Não deixa, dessa forma, de ser um mercado criminógeno. Assim, nas discussões sobre sua regulamentação, essas variáveis precisam ser consideradas.
Com efeito, em razão de sua natureza, a atividade, mais que outras, é extremamente propícia à lavagem de dinheiro. A peculiaridade de funcionamento das casas de jogos, sejam bingos ou cassinos, por exemplo, possibilita que criminosos, na posição de clientes, possam transformar dinheiro sujo em ativos lícitos.
Exemplos não exaustivos já foram verificados na prática, considerando-se o dinamismo das técnicas de lavagem de capitais, como troca de montantes espúrios por fichas, com posterior resgate; soma de dinheiro sujo a algum prêmio adquirido; utilização de fichas como dinheiro em transações irregulares; compra de prêmios com valores superiores à própria premiação.
Da mesma forma, as peculiaridades da indústria da jogatina proporcionam aos proprietários do estabelecimento a sua utilização para a lavagem de dinheiro. A possibilidade de manejo de recursos financeiros em grande escala e em cédulas de pequeno valor, além de possível organização da empresa com pouco capital, são fatores que atraem o investimento de delinquentes de médio porte econômico ao mercado dos jogos.
Adere-se a isso o fato de a origem dos recursos potencialmente arrecadados ser bastante diluída, em face do fluxo de indivíduos e a intensa movimentação de caixa somada à predominância de custos fixos, dificultadores da prova de fraude ou de lavagem. Esses fatores são aptos a tornar a utilização da atividade de jogos ainda mais tentadora para ampliação de práticas de branqueamento patrimonial, se comparadas a restaurantes, postos de gasolina ou supermercados.
A estruturação da atividade, outrossim, é propícia à sonegação sistemática de tributos, dificultando, inclusive, a devida detecção da prática ilícita pelos órgãos de fiscalização. Com efeito, na época em que as casas de jogos eram autorizadas, houve relatos de emissão de cartelas de bingos fora do então padrão oficial, com talões de notas fiscais que reproduziam os mesmos números de séries, viabilizando a venda de "cartelas frias" aos clientes. O montante recebido, que acabava em uma espécie de "caixa dois", passava a ser utilizado para pagamentos "por fora" e para canalização de recursos a campanhas eleitorais.
Se não bastasse, é um mercado propício à corrupção. A título de exemplo, na chamada Operação Monte Carlo, desencadeada, no ano de 2012, pelo Ministério Público Federal em Goiás em parceria com a Polícia Federal e Receita Federal, desvendou-se a exploração cartelizada de jogos de azar existente há mais de cinco anos no Estado. Para que os "donos do mercado" pudessem se manter, foi criada uma estrutura estável entranhada no seio da administração pública, capaz de recrutar, mediante propina, setores da polícia em suas diversas esferas, como instrumento de cobertura, segurança, vazamento e proteção ostensiva ou velada a estabelecimento de jogos, fatores estes que dificultavam e, por vezes, impediam as investigações.
Viabilizavam, ademais, um domínio territorial rígido, de longo prazo, com divisão hierarquizada em pontos de exploração e prestação de contas a um centro de comando capitaneado por um megacontraventor com forte poderio econômico e político. Não importava quem era o dono formal do estabelecimento. Quem o controlava era quem detinha o domínio territorial. Formaram, não se pode negar, um Estado paralelo que se valia, se misturava e, em alguns aspectos, se sobrepunha ao Estado oficial.
Grupos mafiosos
A possível legalização do mercado de jogos, anseio de muitos dos megacontraventores, não afastará tais riscos, não neutralizará os grupos criminosos e não estancará a prática de lavagem de capitais, corrupção e intimidação. Dificilmente o mercado será aberto a novos empreendedores ou empresários bem-intencionados. Pelo contrário. A prospecção é a de que um mercado, que passará a ser lícito, será entregue a quem já o domina, facilitando ainda mais a influência desses grupos no universo político. No Parlamento, não tardará a se tornar mais visível e influente a "bancada dos jogos".
Dentro do mercado cartelizado dos jogos de azar, os seus "donos" valem-se da intimidação, da corrupção e da violência, táticas caracterizadoras de grupos mafiosos, como forma de se firmarem no próprio mercado. Assim o fazem e, migrando para um mercado lícito, não abandonarão tais métodos. Sem medo de errar, continuarão no parasitismo, pois é mais fácil se imporem no mercado com alianças espúrias, violência, suborno e intimidação, como já ocorreu no Brasil nos anos 1990 e 2000. Em outros países, como na Itália da década de 80/90 do século passado, também aconteceu algo semelhante: mafiosos migraram para mercados lícitos, mas levaram consigo seus métodos ilícitos, cartelizando-os e impondo seus preços e produtos.
Jogo patológico
Considerando-se esse quadro, a fiscalização da atividade pouco adiantará. Com efeito, em abril de 2010, o então presidente da Câmara dos Deputados, hoje presidente em exercício, Michel Temer, convocou uma comissão especial e diversos especialistas para debaterem o tema. Alguns órgãos estatais convidados, como COAF e Receita Federal, manifestaram a opinião de que o Brasil não tem estrutura adequada ou cultura institucional para mitigar os riscos da atividade e realizar seu efetivo controle.
Tal fato se torna mais grave se uma possível legalização se der com incentivo à criação desenfreada e em curto prazo de casas de jogos. Se os mecanismos de controle são ineficientes para atividades lícitas consolidadas, como podemos ver nos últimos acontecimentos que desvelaram esquemas sórdidos de corrupção, imagine para um mercado que se encontra em um submundo controlado por grupos criminosos.
Além das múltiplas maneiras de utilização das casas de jogos para perpetração de delitos, há outros riscos sobre os quais as discussões devem se debruçar. Com efeito, a partir do momento em que o Estado confere seu aval a uma atividade, apresenta à sociedade sinais de que a prática é inofensiva e segura. Se não bastasse, a atividade regulamentada é, por óbvio, um fator propulsor do aumento de estabelecimentos de jogos e, em consequência, do aumento dos frequentadores de tais casas, dentre eles pessoas com tendências ludopatas (CID10 -- F63.0 - Jogo patológico).
O Estado não está preparado para lidar e resolver as consequências desse problema, seja porque pouco discutiu possíveis medidas que previnam as implicações psíquicas, familiares, físicas, profissionais e sociais negativas geradas pelo jogo, seja porque possuem poucos profissionais com expertise para lidar com os jogadores compulsivos, seja em razão da relação de dependência construída entre o ludopata e o dono do mercado.
Grande parte dos lenientes projetos em tramitação nas casas legislativas pouco resolve os problemas ora levantados. Seus textos não nos conduzem à conclusão de que a legalização é melhor à sociedade. Assim, até o momento, não se pode deixar de concordar com aqueles que defendem que a situação atual dos jogos de azar serve, pelo menos, para ajudar a desvelar os servidores públicos cooptados e incentivar os cidadãos a noticiar a clandestinidade desse mercado espúrio, enquanto que a legalização só serviria para encobrir delitos realizados por estes mesmos agentes estatais e para conferir a falsa aparência de legalidade a qualquer espécie de jogatina.
Daniel de Resende Salgado é procurador da República, Secretário de Pesquisa e Análise do Gabinete do Procurador-Geral da República e membro do Grupo de Trabalho sobre Segurança Pública da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF
Pablo Coutinho Barreto é procurador da República na Bahia e membro do Grupo de Trabalho sobre Segurança Pública da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF
*Este artigo foi publicado originalmente no site UOL, dia 9 de junho de 2016