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Leniência não é boia de salvação

Entende-se por leniência a tolerância, a brandura, a suavidade, a lenidade. Em matéria criminal ou administrativa infracional, leniência é a tolerância ou a lenidade com a infração, brandura ou suavidade na sanção.
A leniência não é nova no sistema. Nem mesmo o acordo de leniência é novo. Desde os anos 1990, muitos países implementaram regras para estimular acordos desse tipo, motivados pelo sucesso do combate antitruste dos EUA.

No Brasil, a introdução ocorreu no ano 2000. Inspirados pelos estudos de direito e economia, os acordos de leniência, juntamente com as delações premiadas e as transações penais, consolidaram-se como instrumentos eficazes à repressão das organizações criminosas, no cível e no crime (corrupção, fraudes financeiras, terrorismo).

A novidade em relação ao acordo está na tentativa de utilizá-lo, como uma variação do termo de ajustamento de conduta com pressupostos frágeis, para salvar empresas, como se tem lido e ouvido em certos círculos de debates.

O acordo de leniência, obviamente, não foi desenvolvido como instrumento para socorrer empresas. A finalidade instrumental é reprimir organizações criminosas e, com isso, contribuir para um ambiente de negócios sadio, com menores custos de transação, com mais competitividade e produtividade.

É dessa maneira que sociedade e instituições se fortalecem e evoluem, não com operações de salvamento de empresas corruptas, ineficientes e não competitivas.

Acordos de leniência são instrumentos de investigação e de repressão. A chave para um bom acordo é a cooperação. Só se deve conceder leniência a quem coopera, posto que o principal resultado a ser buscado é o desmantelamento das organizações criminosas.

Fazer cessar a atividade ilícita é o primeiro escopo. O segundo é impor sanção. O terceiro é buscar a reparação. Atrelar o acordo de leniência unicamente à indenização ou a uma multa, sem respeito à necessidade de cooperação, como se pensou recentemente em nosso país, torna o instrumento ineficaz.

Como em qualquer outro grande negócio, a organização criminosa pode fazer um "fundo de contingência" para atenuar o seu risco e, com um grande pagamento formal, gozar de impunidade.

Por isso, ser o primeiro a cooperar, e o quanto antes (teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro), é de grande importância para os acordos. De nada adianta cooperar para informar aquilo que já é do conhecimento das autoridades.

A disponibilidade para produzir documentos, responder honestamente às dúvidas e questões, prestar contas de tudo o que sabe e de todos os documentos e provas que podem servir ao caso concreto são obrigações que sempre devem ser impostas às pessoas, físicas ou jurídicas, que queiram fazer acordos de leniência.

Um bom acordo é baseado em provas e documentos. Jamais em fofocas e opiniões. A mentira viola o acordo e pode colocar por terra qualquer benefício reconhecido à pessoa que é objeto de leniência.

Se é possível resumir, pode-se indicar que a leniência pressupõe cooperação, honestidade, disponibilidade e responsabilidade. Jamais salvação.

MARCELO MUSCOGLIATI, subprocurador-geral da República, é coordenador da Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal.

Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, no dia 12 de junho de 2016

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