A complexidade do fluxo de migrantes oriundos da Venezuela a partir de 2016 coloca em xeque qualquer tentativa de reduzi-los a grupo homogêneo. Os migrantes, para além dessa condição, integram usualmente outras minorias: mulheres, pretos, indígenas, crianças, refugiados, pessoas LGBT. Trata-se de grupo plural, assim como é a sociedade venezuelana. Essa característica amplia as possibilidades normativas e os horizontes do pensamento jurídico.
Um dos maiores exemplos da complexidade jurídica desse fluxo migratório é a vinda ao Brasil de indígenas da etnia Warao. Trata-se de povo estabelecido há milhares de anos no delta do rio Orinoco, região de solos inundáveis do norte da Venezuela. Pela dificuldade de acesso e de estabelecimento de construções em áreas inundadas, os Warao permaneceram por séculos protegidos do jugo colonizador e da catequização, convertendo seu território em centro de atração para outros povos indígenas que fugiam das incursões missionárias. Por igual razão, conseguiram manter sua língua, pertencente a tronco linguístico próprio, diverso do Karib, que predomina na região.[1]
Sobreviventes da colonização europeia, os Warao passaram a sofrer graves intervenções em sua terra tradicional ao longo do século passado. Entre as décadas de 20 e de 40, introduziu-se cultivo de ocumo chino, que passou a ocupar o lugar dos abundantes buritizais, muito aproveitados pelas comunidades Warao.
Na década de 60, construiu-se dique no rio Manamo, em tentativa frustrada de incrementar a agricultura na região. Como resultado, a água salinizou e o solo se tornou mais ácido. Na década de 90, empreendimentos do setor petroleiro foram direcionados à região, empobrecendo ainda mais incisivamente seus recursos naturais.
Os Warao responderam à intervenção em seus territórios e à diminuição de recursos naturais com o incremento de mobilidade. Inicialmente, dirigiram-se a centros urbanos próximos ao delta do rio Orinoco para trabalhar no setor de serviços e para buscar recursos junto à população local, em atividade de coleta que entendem como trabalho. Com o progressivo agravamento da crise política e econômica da Venezuela, o espaço de mobilidade ampliou-se. Os Warao começaram a chegar ao Brasil.
Sua porta de entrada no país foi Roraima, estado rico em diversidade e em terras indígenas. Ali, grande parte dos Warao permanecia nos semáforos, solicitando contribuições.
Porém, a experiência prévia com as etnias locais não sensibilizou o poder público: longe de promover a acolhida humanitária, princípio da política migratória brasileira, figurou como protagonista de violação de direitos humanos.
Inicialmente, tentou-se promover a deportação de centenas de Warao, incluindo crianças, sem respeito ao contraditório e sem considerar suas peculiaridades de indígenas e possíveis solicitantes de refúgio. Também se exigia dos indígenas, como dos migrantes em geral, o pagamento de taxa impraticável para que requeressem residência temporária no Brasil.
Para piorar, uma ação policial forçou cerca de 400 migrantes que viviam nas ruas de Boa Vista a se deslocarem a um ginásio esportivo sem estrutura, segurança e condições sanitárias. Sem consentimento prévio, a ação resultou na aglomeração desassistida de crianças, idosos enfermos, indígenas e não indígenas.
Paralelamente, surgiram iniciativas para impedir crianças Warao de permanecerem nos semáforos junto a suas mães – embora não houvesse locais dignos onde pudessem ficar. Quando tentavam matricular-se no ensino formal, essas mesmas crianças enfrentavam constantemente a negativa de acesso e permanência, pela insuficiência de documentação e de um plano de atendimento educacional diferenciado.
Os Warao também tiveram dificuldades de acesso aos serviços de saúde. As barreiras linguísticas e culturais demandavam atendimento diferenciado pela Secretaria de Saúde Indígena, resistente em reconhecer sua atribuição. Já o estado de Roraima editou decreto que exigia dos venezuelanos passaporte válido para acesso aos serviços públicos básicos. A medida, ilegal e discriminatória, impactou diretamente os Warao, que dificilmente tinham o documento, e foi suspensa pelo STF.
Diante da extrema vulnerabilidade dos Warao, o poder público pouco pensou na importância do diálogo intercultural e da intermediação por antropólogos. Em especial, chamou a atenção a tímida contribuição da FUNAI, a qual, lidando com graves dificuldades pela restrição orçamentária e de recursos humanos, não desempenhou de pronto sua função de gestão de política indigenista junto a povos não nacionais.
Esse panorama levou enormes desafios ao Ministério Público Federal. Por um lado, era necessário compreender a realidade fática: os motivos da migração dos Warao, o modo como interagiam com a sociedade local e com os outros migrantes venezuelanos, os propósitos do grupo no Brasil e hipervulnerabilidades internas, em especial de crianças.
Por outro lado, era fundamental manejar as categorias existentes no direito para assegurar aos Warao proteção jurídica que não ofendesse sua cultura, sem imposições que reforçassem o histórico desrespeito às comunidades tradicionais.
O primeiro passo foi buscar o apoio antropológico. Já no início de 2017, grupo de antropólogos do MPF realizou revisão bibliográfica e trabalho de campo intensivo para entender a dinâmica migratória e suas perspectivas no Brasil. O resultado foi um laudo minucioso, que viabilizava uma aproximação qualificada com os Warao.
O diálogo também foi aprofundado por meio de audiência pública, seminário científico e simpósio, realizados pelo MPF por meio de parcerias e com participação ativa dos Warao.
A partir disso, viabilizou-se a atuação do MPF para evitar novas violações de direitos relativos à mobilidade e a serviços públicos básicos. Recomendou-se à Polícia Federal que não realizasse deportações coletivas e que se garantisse intermediação antropológica e linguística, além de assistência jurídica.
Também se expediram recomendações à FUNAI, para que atuasse diretamente na proteção dos interesses dos índios venezuelanos, e aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, para que promovessem seu atendimento de saúde. Enfim, estimularam-se insistentemente os entes federativos a implementar políticas públicas direcionadas aos Warao e com a participação deles, garantindo condições dignas de abrigamento, alimentação e saúde.
Por vezes, as medidas extrajudiciais não eram suficientes. Foi necessário ajuizar ações civis públicas para isentar os migrantes economicamente vulneráveis de taxa para reconhecimento do direito à residência, para obstar remoções forçadas, para implementar plano de atendimento educacional diferenciado, para executar o já delineado plano de ações da FUNAI e para anular o decreto estadual que limitava o acesso a serviços públicos, inclusive de saúde.
Muitas das atuações do MPF permitiram que os Warao vivessem sem a iminência da deportação, com acesso a serviços públicos básicos. Outras intervenções não tiveram igual sorte. Porém, em todas elas, buscou-se exercer a função constitucional de proteger os interesses dos indígenas, evitando que fronteiras políticas alheias a sua cultura fossem impostas como obstáculo para o acesso a direitos fundamentais. Buscou-se contribuir na construção de uma sociedade solidária – um dos objetivos fundamentais da nossa República.
Referência
[1]As informações sobre a história Warao constam do Parecer Técnico/SEAP/6ªCCR/PFDC nº 208/2017, elaborado pelos antropólogos Luciana Ramos, Emilia Ulhoa Botelho e Eduardo Tarrago.
* Artigo publicado originalmente no site Jota