Portanto, a história do Amazonas reforça a necessidade de políticas de acolhimento de migrantes que chegam em situação de vulnerabilidade. A partir de tais ações, esses recém-chegados ao Estado podem gerar crescimento econômico, consumo e arrecadação de tributos, trazer ambientes mais inclusivos e contribuir com sua experiência cultural, acadêmica, profissional e pessoal. O incremento na empregabilidade e na oferta de saúde, educação e políticas afins para a inserção destas pessoas traz benefícios a toda a comunidade local, pois seus integrantes, independentemente de sua nacionalidade, usufruem destes serviços.

Nos últimos anos, é notório o aumento de pessoas que saem da Venezuela, em virtude dos graves problemas políticos, econômicos e sociais enfrentados pelo país vizinho. O fluxo venezuelano se dá principalmente para outros países da América Latina e do Caribe, que têm contado com o apoio de organizações internacionais e da sociedade civil no acolhimento destes migrantes e refugiados.

Dentre estes países, está o Brasil, que tem Estados da região Norte como uma relevante porta de entrada para pessoas do país caribenho. Neste contexto, um número considerável de venezuelanos e venezuelanas se dirige ao Amazonas e, em especial, a Manaus, uma das maiores cidades do Brasil, que conta com grande oferta de serviços e um importante distrito industrial. O Amazonas é próximo de Roraima – unidade federativa que tem fronteira seca com a Venezuela e por onde boa parte dos nacionais deste país ingressa no Brasil – e ambos os Estados estão ligados pela BR-174, facilitando a comunicação entre seus territórios.

Segundo estimativa apresentada neste mês pela “Plataforma de Coordenação para Refugiados e Migrantes da Venezuela”[1], elaborada pela ONU e que conta com o apoio de governos de países anfitriões e de organizações não-governamentais, já deixaram a Venezuela cerca de 5,4 milhões de pessoas. Deste contingente, até 30 de agosto de 2020, vieram para o Brasil 262.475 cidadãos e cidadãs daquele país, segundo consta da mencionada plataforma. Mesmo com o fechamento de fronteiras internacionais durante a pandemia de COVID-19, a migração venezuelana segue ocorrendo e este fluxo seguirá por muitos anos.

O Estado brasileiro se obrigou, por meio da Constituição Federal, da Lei de Migrações e de tratados internacionais de direitos humanos, a promover o respeito aos direitos de pessoas migrantes e refugiadas, e tal compromisso deve orientar também a atuação do sistema de justiça. Cabe ao poder público fomentar iniciativas que promovam a educação em direitos, a recepção e a inserção local de migrantes, desincentivando os atos discriminatórios, segregadores e xenofóbicos.

Como instituição responsável por proteger os interesses sociais e os direitos humanos, o Ministério Público Federal tem acompanhado a implementação de políticas públicas destinadas ao acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade que chegam de outros países, em especial da Venezuela. Para além de sua atuação perante o Poder Judiciário, por instrumentos como a ação civil pública, o MPF tem um importante papel articulador, facilitando a coordenação e o diálogo entre os responsáveis pela execução das políticas públicas.

No Amazonas, um dos problemas observados foi o gargalo na emissão de documentos nacionais às pessoas venezuelanas. Muitos migrantes e refugiados tinham dificuldade em obter informações a respeito da documentação necessária para viver e trabalhar no Brasil, além da falta de recursos para se deslocar aos órgãos responsáveis por sua emissão. Documentos de identidade são condição essencial ao pleno exercício da cidadania: sem documentos, o acesso a serviços como saúde, educação e seguridade social se torna ainda mais difícil e aumentam as chances de cooptação por redes de tráfico de pessoas ou de exploração laboral e sexual.

Para amenizar o problema, uma rede de atores, que incluiu o MPF, outras instituições do sistema de justiça, órgãos federais e locais, agências da ONU e representantes da sociedade civil, organizou um mutirão da cidadania para venezuelanos e venezuelanas, ocorrido em três edições ao longo de 2018 e 2019 e que atendeu milhares de pessoas. Em uma unidade de Pronto Atendimento ao Cidadão (PAC) em Manaus, foi possível realizar ações como emissão de documentos (CPF e carteira de trabalho), orientação a respeito das formas de regularização migratória por parte da Polícia Federal, atendimentos de saúde e vacinação, recebimento de representações e outras demandas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, atendimento a vítimas de violência de gênero, distribuição de kits para higiene e alimentação, dentre outros[2].

Posteriormente, no segundo semestre de 2019, a Operação Acolhida foi instalada em Manaus. Essa consiste em uma política pública para pessoas migrantes e refugiadas, organizada a partir da necessidade de recepção da população venezuelana. É coordenada pelo governo federal, está presente em Roraima e no Amazonas e conta com a participação das Forças Armadas, de órgãos federais, estaduais e municipais, de agências da ONU e da sociedade civil. O Ministério Público Federal fiscaliza a execução da Operação Acolhida, a fim de que seus serviços sejam desempenhados a contento.

Uma das estruturas da Operação Acolhida é o Posto de Interiorização e Triagem (PI Trig), no qual diversos serviços são prestados às pessoas que chegam da Venezuela: regularização migratória, documentação, atendimentos de saúde e de grupos vulneráveis específicos (como vítimas de violência de gênero), prevenção e detecção de casos de tráfico de pessoas, orientação jurídica, dentre outros. A chegada do PI Trig a Manaus tornou desnecessária a realização de novas edições do mutirão da cidadania, mas observa-se que este, além dos benefícios à população que foi atendida, contribuiu para fortalecer a rede de proteção às pessoas migrantes e refugiadas e a atuação coordenada de seus órgãos e instituições.

O Ministério Público Federal, inclusive em conjunto com outras instituições, também elaborou recomendações ao poder público local e federal, a respeito de vários temas. Como exemplos, tem-se a melhora das condições de abrigamento e aumento no número de vagas dos abrigos, a atuação dos conselhos tutelares do Amazonas em respeito às peculiaridades socioculturais de crianças migrantes e refugiadas, além da vedação a exigências documentais indevidas para matrícula escolar de crianças e adolescentes não nacionais.

A pandemia de COVID-19 trouxe novos desafios à política migratória. Ainda que as fronteiras tenham sido fechadas, as pessoas migrantes e refugiadas que já estão em solo nacional se tornam ainda mais vulneráveis com os impactos econômicos e sociais da doença.

A este respeito, o Ministério Público Federal buscou atuar para que as normas sanitárias e de distanciamento social fossem respeitadas nas estruturas de abrigamento e de acolhimento. Além disso, com a queda da circulação nas ruas e da atividade econômica, as doações de alimentos aos abrigos e à Operação Acolhida diminuíram, de modo que muitas pessoas migrantes e refugiadas tiveram redução de quantidade e de qualidade nas suas refeições. A partir desta situação, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, na qual se obteve decisão liminar em segunda instância, a fim de que a União, o Estado do Amazonas e o município de Manaus assegurassem alimentação adequada às pessoas migrantes e refugiadas abrigadas ou acolhidas[3].

Com relação ao auxílio emergencial, este representa não apenas um meio de sobrevivência, mas também um recurso financeiro que permite a pessoas migrantes e refugiadas deixarem de depender de abrigos e estruturas de acolhimento. Este público enfrentou dificuldades para obter informações sobre o benefício e para solicitá-lo, por não possuir os meios tecnológicos necessários ao requerimento. Ainda, por conta de determinadas exigências documentais que estavam sendo feitas pela Caixa Econômica Federal à população migrante, houve entraves ao seu recebimento.

Para minimizar estes impactos negativos, o Ministério Público Federal articulou reuniões com a Caixa Econômica Federal e com instituições internacionais, federais e locais participantes da Operação Acolhida. Estes encontros contribuíram para a realização de mutirões de solicitação do auxílio emergencial, bem como para medidas de redução das dificuldades no saque do benefício.

Como em outros temas, a proteção de pessoas migrantes e refugiadas se dá em rede, formada pelo Poder Executivo, instituições do sistema de justiça, representantes da sociedade civil, agências internacionais e outros atores. A partir da experiência amazonense, percebe-se a contribuição que o Ministério Público Federal pode trazer à indução e ao aperfeiçoamento de políticas públicas, para que se atinja a sociedade prevista no artigo 3º da Constituição Federal: aquela que promove o bem de todos e de todas, sem quaisquer formas de discriminação.

Referências

[1]https://r4v.info/es/situations/platform.

[2]Sobre as edições: http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/noticias-am/mpf-imigrantes-venezuelanos-sao-atendidos-por-mutirao-de-cidadania-em-manaus-amhttp://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/noticias-am/mutirao-de-cidadania-atende-cerca-de-mil-venezuelanos-em-manaus-amhttps://www.acritica.com/channels/manaus/news/mutirao-de-cidadania-atende-indigenas-venezuelanos-de-abrigos-da-capital.

[3]http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/noticias-am/mpf-vai-a-justica-para-garantir-alimentacao-adequada-a-migrantes-e-refugiados-em-manaus-am.

* Artigo publicado originalmente no site Jota