Em vídeo publicado em 22 de Maio de 2020, o presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro, num contexto de críticas a posturas do Supremo Tribunal Federal (STF), fez a seguinte assertiva: “Qualquer dos poderes pode pedir às Forças Armadas que intervenham”.[1]
Dois anos antes, em Setembro de 2018, o então candidato à vice-presidente da República na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), general Hamilton Mourão, afirmou que, em situação hipotética de anarquia, pode haver um “autogolpe” por parte do presidente com apoio das Forças Armadas.
Em 28 de Maio de 2020, Ives Gandra da Silva Martins defendeu, em um artigo jurídico publicado em 28 de maio de 2020[2], que “se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante” (destaques no original).
Em 12 de Agosto de 2021, Jair Bolsonaro faz nova declaração na mesma linha das anteriores, ou seja, de que as Forças Armadas são poder moderador e darão “apoio total às decisões do Presidente”.[3]
Nas manifestações supracitadas, podemos notar pontos comuns sobre a existência de um “inimigo”, cujos atos motivariam a reação do Poder Executivo com a utilização das Forças Armadas. Essa visão de um “inimigo”, em uma concepção política, lembra a teoria de Carl Schimitt.[4] O Poder Executivo ficaria numa posição Soberana e faria o papel de Poder Moderador, já que tem poder de mando sobre as Forças Armadas, que lhe devem subordinação.
Necessária uma leitura do caput do art. 142 da CF/88:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
A redação do citado dispositivo remete, historicamente, ao art. 48, em especial o § 2º, da Constituição de Weimar, de 1919:
(1) Se um Estado-Membro inadimplir os deveres que lhe forem impostos pela constituição nacional ou pelas leis nacionais, o Presidente do Reich pode compeli-lo ao adimplemento com o auxílio das Forças Armadas.
(2) Se a ordem e segurança públicas forem gravemente comprometidas ou ameaçadas dentro do Reich alemão, o Presidente do Reich poderá tomar as medidas necessárias para restaurar a ordem e segurança públicas; se necessário, com o auxílio das Forças Armadas.
Com este propósito, ele poderá suspender temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais enumerados nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.
(3) O Presidente do Reich deve comunicar imediatamente ao Reichstag acerca de todas as medidas tomadas em virtude dos parágrafos 1º e 2º deste artigo. Sob ordem do Reichstag, estas medidas deverão ser abrogadas.
(4) Se houver perigo da demora, o Governo de um Estado-Membro poderá, para o seu próprio território, tomar medidas temporárias na forma do parágrafo 2º. Sob ordem do Presidente do Reich ou do Reichstag, estas medidas deverão ser ab-rogadas.
(5) A regulação deste artigo deverá ser feitos por uma Lei nacional.[5]
Importante transcrever, também, os artigos 25 e 47 da mesma Carta de 1919:
Art. 25. O Presidente do Reich pode dissolver o Reichstag, mas apenas uma vez na mesma ocasião. A nova eleição ocorre o mais tardar no sexagésimo dia após a dissolução.
Art. 47. O Presidente do Reich tem o comando supremo sobre todas as forças armadas do Reichs.[6]
Conforme a história demonstrou, a conjugação dos dispositivos acima, com o amparo jurídico de Schmitt, foi utilizada por Adolf Hitler para expedir o “Decreto do Presidente do Reich para a Proteção do povo e do Estado”, em 28 de fevereiro de 1933, que suspendeu alguns direitos fundamentais.
A propósito, pouco tempo depois, em 1º de maio de 1933, Schmitt ingressou oficialmente no Partido Nazista[7]e deu sustentação a diversas teorias de concentração de poderes nas mãos do Soberano que, em sua definição, era quem tinha poderes para decidir sobre o estado de exceção[8]. Inclusive, no livro “A ditadura”, de 1921, ele defende expressamente a ideia de que, quando o Estado se deparar com adversários que o ameacem, o recurso à ditadura se torna não somente necessário, mas juridicamente legítimo”.[9]
Ao se referir, exclusivamente, ao presidente do Reich, o § 2º do art. 48 e o art. 25 da Constituição de Weimar – com previsão de dissolução do Reichstag – eram um convite ao abuso e à concentração de poderes nas mãos do Führer.
As redações de 1919, contudo, diferem substancialmente das nossas previsões constitucionais atuais. Não obstante possa haver alguma similitude redacional entre o art. 142 da CF/88 e o art. 48, § 2º, da Constituição de Weimar, aquela Carta Magna afirma que as Forças Armadas constituem “garantia dos poderes constitucionais” e age “por iniciativa de qualquer destes”. Os grifos são necessários.
É cristalino observar que, enquanto a Constituição de Weimar coloca numa posição de destaque a figura do Soberano, considerado por Carl Schmitt como o guardião da Constituição, a nossa Carta de 1988 põe luz sobre o equilíbrio entre os Poderes, de forma que é absolutamente inconstitucional a provocação das Forças Armadas por um Poder contra o outro. A figura do Poder Moderador remete à Constituição Imperial de 1824 e está defasada quase duzentos anos.
Conclui-se que a manifestação do Presidente da República, bem como de outros na mesma linha, refletem um pensamento não só autoritário e totalitário mas, igualmente, ultrapassado pela história, e inconstitucional diante da Carta Magna de 1988, que substituiu a figura do Soberano pelo equilíbrio entre os Poderes.
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/02/o-que-e-o-artigo-142-da-constituicao-que-bolsonaro-citou-ao-pedir-intervencao-das-forcas-armadas.ghtml. Acesso em: 10 Out. 2020.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira. Acesso em 10 Out. 2020.
[3] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/bolsonaro-diz-que-forcas-armadas-sao-poder-moderador-e-darao-apoio-total-as-decisoes-do-presidente/. Acesso em: 12 Ago. 2021.
[4] SCHMITT, Carl. O conceito do político / Teoria do Partisan; Coordenação e. Supervisão Luiz Moreira; tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[5] Tradução livre. Redação original em: https://www.jura.uniwuerzburg.de/fileadmin/02160100/Elektronische_Texte/Verfassungstexte/Die_Weimarer_Reichsverfassung_2
017ge.pdf. Acesso em 2 Set. 2020.
[6] Idem.
[7] Sobre a inscrição de Schmitt no Partido Nazista, escreve Filippo Ruschi: “La tessera 2.098.860 del NSDAP rilasciata il 1 maggio 1933 e intestata a Carl Schmitt, dunque, sigillava un percorso tutt’altro che lineare.” Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/301565572.pdf. Acesso em 1º set. 2020. Tradução livre: “O cartão 2.098.860 NSDAP emitido em 1º de maio de 1933 e em nome de Carl Schmitt, portanto, selou um caminho que era tudo menos linear”.
[8] Em sua obra Teologia política, Schmitt declara que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Segundo Elizabete Olinda Guerra, logo deduz-se “que sempre que a ordem e a segurança pública forem perturbadas ou ameaçadas se estará sob um caso excepcional”. (GUERRA, Elizabete Olinda. Carl Schmitt e Hannah Arendt: olhares críticos sobre a política na modernidade. 2. ed. São Paulo: LiberArs, 2019, p. 13).
[9]GUERRA, Elizabete Olinda. Carl Schmitt e Hannah Arendt: olhares críticos sobre a política na modernidade. 2. ed. São Paulo: LiberArs, 2019, p. 13.
* Monique Cheker é Procuradora da República. Mestranda em direito.
** Artigo publicado no site Jota