Os serviços e benefícios públicos costumam ser oferecidos à população do respectivo país. No Brasil, por exemplo, há o benefício assistencial a que têm direito as pessoas com deficiência e idosos sem condições de se sustentar. Poderia ele ser reivindicado por um estrangeiro?
Sendo um benefício federal (pago pela União), o problema foi discutido pelo Ministério Público Federal (e, afinal, resolvido pelo Supremo Tribunal Federal). Um caso interessante de aplicação de direitos humanos (ou “direitos fundamentais”, como utiliza com mais frequência o texto constitucional) e um exemplo de ativismo.
A partir da Constituição de 1988, firma-se – não sem esforço – uma cultura de centralidade dos direitos fundamentais. Esse é o principal critério normativo que a Procuradora e o Procurador da República devem utilizar. Se os direitos fundamentais são universais e estão relacionados uns com os outros, se todos eles devem ser aplicados na maior medida possível, se a dignidade humana em que se baseiam determina que os seres humanos precisam reconhecer-se como livres e iguais, se o Poder Público e a sociedade estão comprometidos em diminuir as desigualdades sociais e regionais, como justificar que uma velhinha pobre, moradora de uma comunidade na periferia de uma grande cidade, não tem direito ao benefício assistencial simplesmente porque não nasceu no Brasil? Qual a relevância desse fato para a concessão de um direito imprescindível à sobrevivência digna da pessoa?
As manifestações do Ministério Público Federal não foram em vão: em 2017, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que os estrangeiros têm, sim, direito ao benefício assistencial.
Uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal questionou a exigência do diploma de curso superior para o exercício do jornalismo, quebrando uma reserva de mercado incompatível com a liberdade de expressão e de informação, e com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Supremo Tribunal Federal viria a chancelar esse entendimento em 2009.
Passeatas de jovens, muitos deles estudantes, que reivindicavam a descriminalização do uso de drogas, e que ficaram conhecidas como “Marchas da Maconha”, eram reprimidas pela polícia, e a Procuradora-Geral da República em exercício, Deborah Duprat, propôs uma arguição de descumprimento fundamental; o Supremo Tribunal Federal julgou favoravelmente, em 2011, aos direitos fundamentais de reunião e de manifestação.
Às vésperas da eleição presidencial de 2018, houve ordens judiciais para impedir manifestações políticas em universidades e a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, entrou com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, que foi logo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal. Episódios de um Ministério Público Federal atuante em prol dos direitos fundamentais, notadamente da liberdade de expressão.
Ainda que universais, os direitos fundamentais precisam ser promovidos para as pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade, vítimas de discriminação em uma sociedade profundamente desigual e colonizada. A articulação do Ministério Público Federal com diferentes atores, oferecendo um espaço de institucionalidade pública e aprendendo a conhecer e respeitar as diversas mundividências, revela sujeitos de direito cujos corpos e mentes interpelam a partir da etnia, da tradicionalidade, da identidade e orientação sexual.
Ter-se-ia o Ministério Público Federal desviado de suas finalidades ao deixar-se pautar por aquilo que de mais importante se propõe num Estado Democrático de Direito?
Releva destacar, dessa atuação – sempre necessária, sempre insuficiente – do Ministério Público Federal, o ativismo. Pode isso, um grupo de agentes públicos de carreira jurídica ultrapassar seu papel clássico de mera intervenção nos processos judiciais, para assumir iniciativas de ampla repercussão social e política?
Não há direitos humanos sem ativismo. O Estado brasileiro em geral e a elite do funcionalismo (ou seria o funcionalismo da elite?) em particular foram tradicionalmente capturados pelos donos do poder. Impera(va) o compadrio de um sistema de Justiça que, quando não se volta(va) contra os oprimidos e invisibilizados, impõe-se a venda nos olhos – não é essa a figuração icônica da deusa? Mas não existe outra possibilidade histórica de redimir e justificar o Ministério Público senão a atuação de reconstrução dos direitos fundamentais.
Com um regime jurídico que confere independência a seus membros, com um ordenamento jurídico que oferece instrumentos adequados, dotado de uma estrutura administrativa considerável e organizado em âmbito federal (o que proporciona distanciamento em relação aos contextos políticos locais e possibilidades de atuação nacional), o Ministério Público Federal adquiriu prestígio interno e internacional.
A instituição atrai profissionais do Direito qualificados em um concurso dos mais concorridos e para uma carreira instigante. É muito importante que essa aquisição admirável, porém recente, alicerçada numa prestação constante, que estja sempre aberta à crítica, não se perca nem se amesquinhe, mas que se aprimore na luta pelos direitos fundamentais.
Não há hegemonia na afirmação dos direitos fundamentais e nenhum espaço para a omissão. A edição de leis e a implementação de políticas públicas apresentam inegável legitimidade democrática e efetividade, mas faltam frequentemente ou são distorcidas. O Ministério Público Federal ativa então uma atuação de busca da memória e da verdade, de combate à violência obstétrica, de proteção das vítimas de homotransfobia… o necessário ativismo do Ministério Público na promoção dos direitos fundamentais.
*Walter Claudius Rothenburg é Mestre e Doutor em Direito pela UFPR, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II, Procurador Regional da República e membro do Grupo de Trabalho sobre Quilombos da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.
Este texto foi publicado originalmente no site Jota