Uma das características constitucionais mais importantes do Ministério Público brasileiro é a independência da Instituição e de seus membros. Essa característica é uma garantia da própria sociedade para que funções altamente relevantes, como a responsabilização civil e criminal de infratores - por vezes, pessoas influentes - aconteça livre de interferências externas.
Essa questão certamente será discutida e levada em consideração pelo plenário do Conselho Nacional do Ministério Público na próxima terça-feira. O órgão avaliará se deve ser aberto processo para remover da Lava Jato o procurador da República Deltan Dallagnol e também se o afastará cautelarmente, sob a justificativa de que o interesse público o recomendaria.
Isso porque a remoção compulsória por interesse público mitiga garantias fundamentais estabelecidas para a atuação independente do Ministério Público, como as do promotor natural, da independência funcional e da inamovibilidade, razão pela qual tem sido e deve ser reservada, de fato, para situações excepcionalmente graves e demonstradas.
Exatamente por essa razão, o CNMP só julgou procedimentos de remoção compulsória por interesse público em três casos absolutamente excepcionais. A nota comum deles foi a inassiduidade de membros do Ministério Público ou mesmo sua omissão.
A jurisprudência do CNMP em casos de afastamento compulsório, portanto, destoa da situação que envolve o procurador Deltan Dallagnol. Ela é normalmente utilizada para remover o membro do Ministério Público com postura leniente, jamais o que se dedica e se entrega ao ofício para servir a sociedade de modo combativo e aguerrido. Aparentemente, ainda, nem mesmo nas poucas hipóteses apreciadas houve remoção cautelar, que seria, portanto, inédita.
Ao decidir contrariamente à instauração de um processo de remoção por interesse público, relacionada a fatos graves, o plenário do Conselho, no fim de 2018, entendeu que esse procedimento não se destina à apuração de faltas disciplinares, que devem ser objeto de processos disciplinares específicos.
Esse último precedente se ajusta precisamente à situação do referido procurador, pois o fundamento invocado para seu afastamento consiste em atos que são objeto de reclamações disciplinares que já foram julgadas improcedentes ou mesmo estão pendentes de julgamento e que, no último caso, portanto, sequer apuraram a existência ou reprovabilidade das infrações.
É importante aqui distinguir as reclamações e os processos disciplinares. Reclamação é o nome que se dá para pedidos de apuração disciplinar. Quando o Corregedor entende que a reclamação tem fundamento, ela é convertida em sindicância, para aprofundar a investigação, ou em processo disciplinar, no qual a conduta do infrator é julgada.
Desde o início da operação Lava Jato, Deltan Dallagnol foi alvo de dezenas de reclamações, na sua grande maioria protocoladas por investigados, réus e correligionários, com cunho retaliatório bastante evidenciado.
Justamente por isso, a maior parte foi arquivada e apenas duas se converteram em processos disciplinares. Em ambos os casos, por conta de manifestações bastante pontuais em redes sociais e não em virtude da atuação em investigações e processos.
Por isso, o afastamento do coordenador da operação Lava Jato de suas investigações e processos seria duplamente questionável. Primeiro, porque a atuação no caso sempre foi coletiva e não individual, sequer fazendo sentido afastar apenas um dos procuradores. Além disso, a remoção não tem correlação lógica com os processos disciplinares instaurados, que versam sobre declarações públicas, o que não impediria que novas opiniões viessem a ser apresentadas nas redes sociais.
Esse cenário é incompatível com a remoção forçada. Muito rara, ela só aconteceu e deve ocorrer em casos nos quais o agente público tenha faltado com seu compromisso e responsabilidade com o cargo.
É difícil imaginar um interesse público relevante o suficiente para a remoção do procurador natural do maior caso contra a corrupção da nossa história, com significativos méritos, que não envolva a prática de infrações funcionais graves no seu trabalho.
Estão ausentes os “motivos reais e palpáveis”, um interesse público “demonstrado, comprovado”, sem os quais, como leciona o ministro Herman Benjamin, uma remoção ex officio ocorreria “à total revelia de justificação legítima”.
Não se trata de defender acriticamente a operação Lava Jato, que pode ter cometido equívocos. Contudo, se houve, eles devem ser corrigidos pelo Poder Judiciário, que vem confirmando a maior parte das ações e condenações em habeas corpus e recursos apresentados. Do mesmo modo, desvios funcionais específicos, se existentes, devem ser avaliados e punidos através das sanções disciplinares previstas.
Uma das proteções mais básicas para agentes públicos em todo o mundo é a de que poderão cumprir seu dever sem receio de retaliação. A instauração de processo para remoção compulsória por interesse público sem uma base fática suficientemente demonstrada e grave inibirá ou mesmo erodirá garantias estabelecidas na Constituição para assegurar a independência do trabalho do Ministério Público brasileiro justamente em casos mais graves e complexos, como a operação Lava Jato.
Cumpre estarmos atentos, no julgamento que se avizinha, às diretrizes nacionais e internacionais sobre o assunto. Aos próprios precedentes que estabelecem que “a finalidade teleológica primordial da inamovibilidade é evitar que o membro do Ministério Público fique sujeito às pressões, perseguições e remoções casuísticas” em razão do seu trabalho.
No plano internacional, as Nações Unidas preconizam que a remoção de magistrados só pode ocorrer “por razões de incapacidade ou comportamento que os torne inaptos para se desincumbirem de seus deveres”, e que a remoção “deve ser determinada de acordo com standards bem estabelecidos de conduta judicial”, o que não se verifica no caso.
Importante que o Brasil, mais uma vez, observe os padrões internacionais estabelecidos como garantias ao enfrentamento efetivo da corrupção e o livre exercício de funções fundamentais por seus agentes públicos, como os membros do Ministério Público. É exatamente isso que faz com que o país seja respeitado perante a comunidade internacional.
Fábio George Cruz da Nóbrega, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)
Manoel Victor Sereni Murrieta e Tavares, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp)
Francisco Rezek, ex-procurador da República (1972-1983), co-fundador da ANPR e ministro do STF aposentado
*Artigo publicado originalmente pelo site Uol