Dia após dia, o mundo vem registrando números cada vez mais assustadores de contaminações e mortes pelo novo coronavírus. No momento em que escrevo este texto já passamos de mais de 4 milhões de casos formalmente registrados, com quase 300 mil mortes. No Brasil, que sequer atingiu o pico da curva epidêmica, ultrapassamos a marca de 170 mil casos notificados e mais de 11 mil mortes por Covid-19.
Enquanto o vírus ainda se dissemina rapidamente, a deficiência estrutural dos sistemas de saúde de vários países, inclusive de potências econômicas, ficou exposta. Sem que os governos atuais pudessem fazer muito em curto prazo, cenas que poderiam muito bem fazer parte de um filme distópico tornaram-se rotina no noticiário: hospitais lotados e pacientes agonizando sem ar à espera de leitos para tratamento; caminhões frigoríficos transportando corpos de pacientes diagnosticados com Covid-19; abertura de valas coletivas em cemitérios; pessoas andando com máscaras em todos os ambientes públicos.
Apesar de tudo isso, ainda há quem queira negar os fatos – e, com eles, as imagens, as notícias e até o sofrimento, próprio ou alheio. Esse negacionismo surge por causas variadas, mas que de certa forma remontam ao binarismo político-ideológico que tomou conta do Brasil nas últimas eleições. Justamente por isso, a narrativa negacionista é bastante primitiva. Nenhuma evidência científica ou fática é válida caso entre em rota de colisão com a promessa de um país economicamente forte, único sustentáculo real do poder – que, todavia, é forçado a conviver com ideais que oscilam entre o radicalismo, o pseudoconservadorismo e o obscurantismo.
Os negacionistas, por óbvio, não conseguiram rejeitar a existência do novo coronavírus por muito tempo. Por isso, os ataques foram voltados para a extensão, as causas ou as consequências da doença. Em vez de enfrentá-la seriamente como o que é – um grave problema de saúde pública –, o negacionismo distorce ou minimiza como pode o novo coronavírus. Ora se trata de exagero ou histerismo da grande mídia, ora uma conspiração chinesa ou da oposição política; ora é uma doença de gravidade diminuta, ora é um pretexto para insuflar manifestações populares com pleitos de duvidosa inteligência histórica e jurídica. A ciência é lembrada, apenas, quando precisamos ter “fé” na descoberta de um tratamento ou uma vacina em curto espaço de tempo. Enquanto isso, “vida que segue”.
É preciso iluminar o obscurantismo negacionista. Mas isso não se faz com ideologia de sinal trocado, politização do debate, orquestra de panelas no horário nobre ou sensacionalismo midiático. Há, por exemplo, um grande erro conceitual e estratégico na divulgação de números absolutos da pandemia sem a sua consideração no contexto demográfico de cada país. É preciso sinceridade no argumento. Apesar de o Brasil ter recentemente superado o patamar de 11 mil mortes, esse quantitativo por um milhão de habitantes ainda é muito abaixo daqueles registrados por países como EUA, Inglaterra, Itália e Espanha. Isso não afasta, de forma alguma, a constatação de que o vírus se propaga exponencialmente e, por isso, tem potencial destrutivo.
A discussão sobre o novo coronavírus e as políticas públicas que se fazem necessárias para seu enfrentamento deve se dar, tão somente, em bases racionais. A complexidade do problema afasta qualquer simplismo, qualquer impulso irracional tendente a palpites conspiratórios, diagnósticos fantasiosos e soluções mágicas.
O uso da razão implica subserviência à lógica e à realidade. São as evidências científicas, econômicas e sociais que, quando bem compreendidas e analisadas em conjunto, servirão à elaboração de uma política pública democrática e eficiente; uma política pública que reconheça a necessária humildade diante das incertezas científicas e preze pela precaução no lugar da imprudência: uma política pública, enfim, capaz de servir ao interesse público em uma sociedade plural, desigual e, até o momento, jogada à sua própria sorte.
Marcelo Malheiros Cerqueira é procurador da República