Os últimos dois anos têm sido marcados pelo aprofundamento da crise do constitucionalismo brasileiro e pela forte erosão que acometeu instituições destinadas à efetivação de direitos fundamentais. A tentativa, ora em curso, de destruição do projeto constitucional atinge não apenas os órgãos do Poder Executivo, mas também as próprias instituições do sistema de justiça.
Nesse contexto, não surpreendem os esforços para desqualificar a atuação do Ministério Público Federal (MPF) em direitos humanos[1] e o estabelecimento de mecanismos de jogo duro constitucional[2] para desmontar a estrutura do órgão na defesa de pautas da cidadania. Enquanto se discute com frequência no noticiário o papel do MPF no combate à corrupção[3], outras atribuições do órgão, como a defesa do meio ambiente e de minorias, são objeto de ataques[4] e tentativas de intimidações[5].
Por um lado, sob o pretexto de combater abusos, evoca-se o mantra inconstitucional da “hierarquização” de funções. Por outro, com base em uma visão peculiar acerca do princípio institucional da unidade, busca-se paulatinamente minar o papel singular do órgão na defesa de direitos fundamentais.
A Constituição de 1988 ampliou as atribuições do MPF e conferiu a ele um papel epecial ao atribuir-lhe a defesa de interesses coletivos e difusos. Previu também, de forma inédita, a autonomia da instituição em relação aos poderes da República e dotou os seus membros de garantias de independência funcional. Nesse ponto, a previsão de independência guarda lógica com a necessidade de uma atuação contramajoritária na efetivação de direitos, consistindo em uma garantia fundamental para o exercício do papel institucional que se desenhou para o Ministério Público.
No campo cível, praticamente inexiste hoje um assunto de interesse social que escape à análise do MPF: temas como reforma agrária[6], direitos territoriais indígenas[7], questões socioambientais[8], direito à saúde[9], direito à moradia[10], cotas nas universidades[11], liberdade de expressão[12], liberdade de imprensa[13], entre tantos outros, são cotidianamente submetidos à análise do órgão.
Por essa razão, embora se admita que o fortalecimento de mecanismos de accountability e transparência no MPF são imprescindíveis para o aperfeiçoamento da instituição[14], eles não podem excluir a valorização da independência de seus membros. Trata-se de garantia que viabiliza o enfrentamento de interesses consolidados e de frequentes coalizões que se formam entre o poder político e o poder econômico para resistir à implementação de direitos fundamentais. Com a independência funcional e a inamovibilidade, o membro do Ministério Público dispõe de maior proteção para atuar sem o receio de que a insatisfação quanto a um posicionamento não redunde em seu afastamento ou na fragilização da atuação institucional.
Assim, é certo que a unidade do Ministério Público deve ser sempre buscada, mas de baixo para cima e em harmonia com a independência funcional. Transformar o órgão em uma pasta que atenda aos interesses governamentais de ocasião não atende a essa finalidade e fere a Constituição. Por isso, o amplo diálogo com a sociedade, a devida consideração às críticas sobre as deficiências do órgão e as contribuições dos integrantes da instituição, com suas vivências e embates, podem oferecer uma reflexão mais sincera sobre o papel do MPF, de modo a assegurar um melhor cumprimento de seu papel constitucional.
Experiências extraídas de trabalhos desenvolvidos por todo o país conseguem expor como o MPF pode e deve contribuir para uma sociedade mais justa e solidária. Atuações voltadas à defesa de direitos fundamentais demonstram com nitidez que o direito não pode ser visto como campo árido e que respostas eficientes às demandas sociais exigem compreensão e inserção no cenário em que se deseja intervir.
Com o propósito de relatar atuações do MPF comprometidas com os direitos humanos, procuradores e procuradoras da República lotados em várias regiões do país contribuíram para uma série de artigos, que serão publicados semanalmente. A série se chamará Histórias e direitos humanos – Vivências no MPF. Para encontrar mais textos basta buscar este nome no Google ou no site do JOTA.
O objetivo não consiste em homenagear a atuação do órgão, mas sim em contar histórias e refletir criticamente acerca da contribuição do sistema de justiça, especialmente do MPF, para a efetivação de direitos fundamentais. Apresentar vivências da instituição e identificar possibilidades na promoção de direitos é a principal finalidade. Se não há como desprezar a erosão vivenciada, não se pode perder o foco da fertilidade do terreno e das potencialidades das sementes.
Nas próximas semanas, os artigos tratarão de direitos indígenas, questões ambientais, racismo religioso, igualdade de gênero, violência obstétrica, defesa da Amazônia, respeito ao patrimônio histórico e cultural, violação de direitos humanos por empresas, justiça de transição, corrupção e democracia, entre outros assuntos. A série pretende ilustrar como os integrantes da instituição estão tentando construir, em seu campo de atuação, formas de defesa do projeto constitucional e de resistência contra retrocessos.
Como se vê, a erosão das instituições também é um risco para o MPF. Mas é importante saber que, em parceria com a sociedade e movimentos sociais, a instituição ainda pulsa em vários cantos do país na luta por direitos fundamentais. Uma atuação que reconhece o protagonismo dos atores e atrizes sociais, mas também entende a importância do respaldo institucional à defesa de direitos humanos. A crítica à instituição não pode fechar os olhos a esse importante papel. Conhecer e compreender seus méritos, problemas e desafios são as tarefas mais urgentes.
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[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/10/opinion/1568074359_593557.html
[2] Cf. TUSHNET, Mark. Constitutional Hardball. In: J. Marshall Law Review. Georgetown University Law Center. 2004
[3] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ministerio-publico-monocular-05022017
[4] https://istoe.com.br/bolsonaro-pgr-deve-evitar-tratar-minorias-de-forma-xiita/
[5] https://www.brasildefato.com.br/2020/08/03/funai-tenta-criminalizar-procuradores-que-tentaram-barrar-pastor-em-cargo-de-chefia
[6] http://www.mpf.mp.br/pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/a-reforma-agraria-e-o-sistema-de-justica-2019/view
[7] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/stf/do-supremo/mpf-recomenda-a-funai-que-devolva-ao-mj-procedimentos-de-27-terras-indigenas-13052020
[8] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/juiza-determina-medidas-imediatas-para-conter-desmatamento-na-amazonia-22052020
[9] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/mpf-anvisa-cloroquina-04062020
[10] http://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias/em-nota-ao-congresso-pfdc-destaca-importancia-de-lei-para-impedir-remocoes-forcadas-durante-pandemia-da-covid
[11] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mpf-dpu-e-educafro-querem-a-regulamentacao-das-comissoes-de-heteroidentificacao-06032019
[12] http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-rj-firma-acordo-com-radio-para-erradicar-discurso-de-odio-e-promover-direitos-humanos
[13] http://www.mpf.mp.br/regiao3/atuacao/solucao-alternativa-de-conflitos/informativo-nusac/informes/acordo-garante-veiculacao-de-programas-com-direito-de-resposta-das-religioes-afro-brasileiras-na-record-news
[14] Cf. KERCHE, Fábio. Virtude e Limites: Autonomia e Atribuições do Ministério Público no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 20-21.
BRUNA MENEZES – Procuradora da República, mestranda pela Universidade Católica de Brasília.
JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR – Procurador da República no Rio de Janeiro. É mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em Direito Público pela UERJ. É especialista em Política e Sociedade pelo Instituto de Estudos Sociais e Politicos (IESP-UERJ). Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, em 2005.
* Artigo publicado originalmente no site Jota