O Whistleblower (ou “soprador do apito”) refere-se à hipótese, por meio da qual o cidadão, não envolvido na atividade criminosa, resolve auxiliar e “denunciar” irregularidades administrativas e ilícitos criminais às autoridades públicas, recebendo, em contrapartida, uma retribuição financeira intitulada “recompensa” ou “´prêmio”.
Por intermédio de minucioso estudo sobre o tema no famigerado “caso HSBC Suíço”, DE GRANDIS prelecionou:
‘O whistleblower – ou, simplesmente, denunciante ou informante – é aquele que, ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, “toca o apito”, ou seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido. No caso do HSBC suíço, quem “tocou o apito” e entregou uma imensidão de dados bancários de diversas pessoas físicas e jurídicas em situação aparentemente criminosa foi o cidadão franco italiano Hervé Falciani, funcionário da área de informática do HSBC de Genébra. Falciani é uma figura controvertida. A Suíça o acusa de agir em interesse próprio e na busca de lucro, argumentando que ele extraiu dados bancários ilegalmente para tentar vendê-los posteriormente a instituições financeiras libanesas. Outros, contudo, consideram Falciani um herói inspirado por sentimentos nobres e altruístas. Seja como for, ao denunciar o esquema existente no HSBC de Genébra, Hervé Falciani gerou investigações criminais relacionadas a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal na Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica e na Grécia (…)‘
É uma figura jurídica utilizada nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, tendo sido recomendado pela ENCCLA como uma das formas de combate à corrupção.
Vale destacar que o Programa de Proteção e Incentivo ao Whistleblower foi fruto de debates na Ação 4/2016 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), cujo entendimento ficou consignado na seguinte forma:
”Whistleblower, em tradução literal, é o assoprador de apito. Na comunidade jurídica internacional, o termo refere-se a toda pessoa que espontaneamente leva ao conhecimento de uma autoridade informações relevantes sobre um ilícito civil ou criminal. As irregularidades relatadas podem ser atos de corrupção, fraudes públicas, grosseiro desperdício de recursos público, atos que coloquem em risco a saúde pública, os direitos dos consumidores etc. Por ostentar conhecimento privilegiado sobre os fatos, decorrente ou não do ambiente onde trabalha, o instituto jurídico do whistleblower, ou reportante, trata-se de auxílio indispensável às autoridades públicas para deter atos ilícitos. Na grande maioria dos casos, o reportante é apenas um cidadão honesto que, não tendo participado dos fatos que relata, deseja que a autoridade pública tenha conhecimento e apure as irregularidades (…)”
Com efeito, o instituto representa, mutatis mutandis, importante inovação e modernização no sistema jurídico brasileiro, malgrado já tivesse sido previsto no artigo 33 da Convenção da Nações Unidas para o Combate à Corrupção, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2003, in verbis:
‘Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção’.
Ademais, a figura jurídica é denominada “reportante de boa-fé”, uma vez que traz informações benéficas e necessárias à elucidação de ilícitos administrativos e criminais, distinguindo-se, contudo, do “colaborador” na “colaboração premiada”, porquanto nesta o colaborador encontra-se envolvido na atividade criminosa, e, ao tempo em que admite sua participação nos fatos, decide “delatar” os outros envolvidos (partícipes e coautores) até então desconhecidos da organização ou atividade criminosa.
Nesse ponto, lecionam Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva:
“É pressuposto da colaboração premiada a confissão do agente, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. Aquele que simplesmente aponta a responsabilidade de terceiros é um informante ou testemunha, mas não um investigado ou réu colaborador. Nisso reside a figura do whistleblower (delator externo e externo porque não participou do crime)” (grifos acrescidos, p.240)”
A Lei n.º 13.608/2018 expressamente previu, em prol do “denunciante” que revelar ilícitos administrativos e criminais, o recebimento de “recompensa” ou “prêmio”, como forma de estimular a efetivação de “denúncias” (fornecimento de dados, documentos e informações relevantes) benéficas ao desbaratamento de atividades ilícitas.
Saliente-se o fato de que a legislação estabeleceu o sigilo do denunciante, com o intuito de resguardar sua integridade física, e livrá-lo de represálias, in verbis:
“(…) Art. 3º O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados.
Art. 4o A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos.
Parágrafo único. Entre as recompensas a serem estabelecidas, poderá ser instituído o pagamento de valores em espécie.
Por outro lado, em que pesem eventuais críticas no sentido de que a Lei de regência tenha previsto apenas premiações e recompensas no famigerado programa “disque denúncia”, vale registrar que foram introduzidas inovações relevantes ao instituto do “whistleblower”, ainda que com hipóteses distintas das previstas nas legislações Norte-Americanas e Europeias.
Indaga-se, porém, como ficaria a tutela de direitos dos investigados, quando incidentes os crimes de calúnia ou denunciação caluniosa, diante do sigilo imposto legalmente? Ora, ao mesmo tempo que foi determinado o “aspecto sigiloso” das informações, a vítima (ou ofendido) poderá requerer o “levantamento” deste, mediante requerimento à autoridade administrativa, no legítimo exercício do direito de petição (artigo 5º, XXXIV, da CF/88), podendo, ainda, acionar a via do Poder Judiciário, na hipótese de negativa administrativa (art. 5, XXV, da CF/88).
Desta forma, diante das informações relativas à qualificação do “denunciante”, a vítima de eventuais abusos poderá intentar ações de indenização por danos morais, sem prejuízo das ações penais cabíveis por crimes contra a honra e à administração da justiça.
Observe-se que a inovação poderá estimular relatos de atividades criminosas ou ilícitos administrativos, que jamais seriam desvendados, se não houvesse o aludido estímulo por parte do Estado, possuindo, por conseguinte, o aspecto de fomento ao exercício da cidadania.
Nos EUA, a medida possui eficácia comprovada, conforme leciona Claudio de Abreu:
O Código Tributário Federal dos Estados Unidos da América (“EUA”) no Título 26 (“U.S. Code: Title 26 – Internal Revenue Code ”), “Subtítulo F – Procedimento e Administração (§§ 6001 a 7884) ”, “Capítulo 78 – Descoberta de Responsabilidade e Execução de Título (§§ 7601 a 7655) ”, “Subcapítulo B – Poderes e Deveres Geais (§§ 7621 a 7624)” , “Seção § 7623 – Despesas de detecção de pagamentos a menor e fraude, etc.” , “Subseção (b) Premiações para os denunciantes” , prevê a possibilidade de premiação ao denunciante cujas informações resultarem em tributação adicional, penalidades e outros montantes que deveriam ter sido recolhidos pelo sujeito passivo tributário. Tal premiação corresponderá a um percentual que pode variar de 15% (quinze por cento) a 30% (trinta por cento) do total arrecadado com a denúncia. É o denominado “Whistleblower – Informant Award Program” (“Programa de Premiação ao Denunciante”) sob responsabilidade da “Internal Revenue Service”, a Receita Federal dos EUA.
De outro lado, a legislação brasileira difere da legislação na Inglaterra, a qual prevê medidas de proteção contra demissões arbitrárias relativamente aos intitulados reportantes de boa-fé, que fornecerem informações acerca de ilícitos perpetrados pelas empresas ou agentes públicos.
Além disso, distingue-se da previsão Norte-Americana, a qual expressamente trouxe parâmetros para o recebimento de recompensa até o limite de 30%(trinta) por cento da multa decorrente do ilícito resultante do fornecimento das informações reportadas pelo cidadão.
Na ”denúncia anônima”, o denunciante não apresenta seus dados, mantendo o anonimato, seja em relação ao banco de dados, seja em relação à autoridade a cargo da investigação.
Por seu turno, o Whistleblower é um instituto, por meio do qual o denunciante poderá se identificar perante o respectivo banco de dados público (v.g disque denúncia), mantendo, todavia, o sigilo dos dados de qualificação para o público externo, exceto para as respectivas autoridades responsáveis pela investigação (v.g: Delegado de Polícia, Membro do Ministério Público).
Com efeito, é o que dispõe o artigo 3º da Lei, in verbis: ‘O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados”.
Demais disso, no intuito de viabilizar o recebimento da recompensa, faz-se mister a identificação do denunciante, no intuito de que receba o “prêmio” em espécie ou mediante depósito devidamente identificado.
Segundo lições de Vladimir Aras:
Diante do princípio da proteção da confiança, a garantia do anonimato só poderá ser afastada por fundadas razões, se o informante agir de má-fé contra um inocente, causando-lhe dano. Mesmo assim, nem sempre será possível levantar o véu, porque, quanto ao grau de identificação, há dois tipos de informantes: a) identificado: informante cuja identidade é conhecida pela Polícia ou por outro órgão estatal e cujos dados estão à disposição da autoridade. É o informante de identidade conhecida e sigilosa (não anônimo). Neste caso, havendo justa causa e hipótese legal de crime, o juiz competente pode levantar o signo, a pedido do Ministério Público ou do inocente prejudicado. b) não identificado: o Estado ignora sua identidade e qualificação porque a informação foi realmente passada de forma anônima ou porque o receptor adotou sistema tecnológico para anonimizá-la, como um canal criptográfico num site, por exemplo. Nestes casos, é virtualmente impossível, sem investigação adequada e específica, descobrir a identidade do noticiante. É o informante de identidade ignorada (anônimo).
Para fins de instauração de inquérito e procedimentos administrativos investigatórios, os dados fornecidos pelo “ Whistleblower ” devem ser revestidos de um mínimo de informações concretas acerca dos fatos e autoria dos ilícitos reportados, não sendo suficientes, por si sós, para a deflagração de inquérito policial ou investigações antes da adoção de providências investigativas preliminares para fins de corroboração dos supostos indícios dos atos ilícitos, de forma análoga aos requisitos das “denúncias anônimas”, consoante já decidido pelo STJ, in verbis:
(…) Esta Corte Superior de Justiça e o Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento de que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal. Precedentes’(…) (STJ, 6ª Turma, HC 413160/PE, Rel. Sebastião Reis Júnior, DJe 28/11/2017).
Por outro lado, caso o cidadão forneça elementos comprobatórios dos atos ilícitos (documentos, vídeos, fotos, entre outros), e sendo estes suficientes para a deflagração de uma investigação direta, nada obstará que a autoridade policial proceda à instauração de inquérito policial para apurar os fatos reportados, ante o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, e por ser uma situação distinta da intitulada ‘denúncia anônima’.
A Lei não estipulou o valor do prêmio ou recompensa em favor do “ Whistleblower ”, que forneça informações essenciais ao desbaratamento de ilícitos administrativos ou criminais. Todavia, deve ser utilizado parâmetros de recompensas proporcionais à eficácia das informações fornecidas em prol da elucidação dos ilícitos, com fundamento no princípio da proporcionalidade.
A Lei anticrime (Lei n.º 13.964/2019) trouxe algumas mudanças em relação ao instituto, tendo previsto expressamente a possibilidade de recebimento de recompensa de até 5% (cinco por cento) do valor recuperado (§3º, art. 4º-C). Além disso, ressaltou que ao informante serão asseguradas proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilidade civil ou penal, ressalvada a incidência de má-fé.
Analisando as mudanças trazidas pela “Lei anticrime”, preleciona o doutrinador e professor Artur Gueiros:
Com relação à sistemática de recompensa, percebe-se uma distinção entre a disciplina originária da Lei nº 13.608/2018 e aquela introduzida pela Lei nº 13.964/2019. Como visto no item anterior, nos termos do art. 4º e parágrafo único, da Lei nº 13.608/2018, a retribuição: 1) decorre de informação prestada ao serviço de “dique denúncia” de entidade pública ou privada; 2) ela se dá quando a informação prestada ao serviço de “disque denúncia” de entidade ou a apuração de crimes de qualquer natureza ou ilícitos administrativos; 3) ela pode ter expressão econômica ou ser de outra natureza; 4) ela pode consistir no pagamento de valores em espécie. Por sua vez, na forma do art.4º-C-, §3º, trazido pela Lei nº 13.964/2019, a recompensa: 1) vincula-se a uma informação prestada para a unidade de ouvidoria ou correição; 2) ela se dá quando a informação prestada para a unidade de ouvidoria ou correição; 2) ela se dá quando a informação resultar em recuperação de produto de crime contra a Administração Pública, não sendo extensível para infrações penais de outra ordem ou ilícitos administrativos; e 3) ela pode ser fixada até 5% do valor recuperado
De outro lado, o reportante poderá auxiliar no desbaratamento de engenhoso esquema fraudulento praticado em tempos de pandemia, mediante oferecimento de elementos de informação ao Ministério Público, Polícia e/ou ouvidoria interna de Órgãos, auxiliando, por exemplo, na persecução penal de crimes relacionados a fraudes em licitações (artigos 89 e 90 da Lei n.° 8.666/93) e violação à ordem de vacinação nas filas contra a Covid-19.
Em relação à inobservância da ordem estabelecida em prol dos grupos prioritários, defendemos que haveria uma série de ilicitudes, dentre as quais destacamos (disponível em https://www.anpr.org.br/imprensa/artigos/24848-ilicitos-relacionados-a-inobservancia-das-filas-de-vacinacao-da-covid-19 ):
Considerando que a vacina é bem público, o desvio na ordem de imunização (filas de vacinas contra a Covid-19) configurará, em tese, o crime de peculato– desvio (“Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa …”) atribuído ao agente público responsável. Ainda que o valor unitário da vacina seja de ínfimo valor econômico, haverá a tipificação penal, já que o entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência é sentido da não incidência do princípio da insignificância em relação aos crimes contra a administração pública, ante o fato de o bem jurídico tutelado ser a moralidade administrativa e, por conseguinte, insuscetível de valoração econômica, nos termos da súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça : “o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública”.
O Whistleblower, embora não previsto no Brasil de forma semelhante à legislação estrangeira, teve o ‘start’ providenciado pelo legislador nacional (Lei 13.608/18 posteriormente alterada pela Lei 13.964/19), com o objetivo de propiciar que o cidadão participasse na elucidação da efetiva persecução criminal (além de auxiliar no esclarecimento de ilícitos administrativos), resultando na concretização do exercício da cidadania ativa, embora ainda necessite de aprimoramento ulterior em sua regulamentação, por intermédio de atos normativos a serem editados, no intuito de viabilizar a eficácia solidificada nos EUA e na Europa.
* Leandro Bastos Nunes é procurador da República, professor em cursos do MPU, especialista em direito penal e processo penal e autor de obras jurídicas.
REFERÊNCIAS
ABREU,Claudio.http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI239483,71043Whistleblower+no+Direito+Tributário+NorteAmericano+Possibilidade de . Acesso em: 14 de jan.2018.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.São Paulo : Malheiros, 2017.
ARAS, Vladimir Barros. Procura-se mordido, vivo ou morto. Disponível em https://vladimiraras.blog/2018/01/20/procura-se-mordido-vivo-ou-morto/. Acesso em 19 de jan. 2021.
ENCLA. O que é o whistleblower? http://enccla.câmara.leg.br/noticias/o-queeo-whistleblower. Acesso em 15 de jan. 2018.
GOMES, Luiz Flávio; DA SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação. Salvador: Juspodivm.
GRANDIS, Rodrigo de. Whistleblowing e Direito Penal. Disponível em https://www.jota.info/artigos/coluna-rodrigo-de-grandis-12022015. Acesso em 14 de jan. 2018.
MARTINS, Jomar. https://www.conjur.com.br/2016-set-20/whistleblower-aliado-estado-combate-corrupcao. Acesso: em 14 de jan.2018.
NUNES, Leandro Bastos. Ilícitos relacionados à inobservância nas filas de vacinação da Covid-19. Disponível em https://www.anpr.org.br/imprensa/artigos/24848-ilicitos-relacionados-a-inobservancia-das-filas-de-vacinacao-da-covid-19. Acesso em: 25 de jan. 2021.
SOUZA, Artur de Brito Gueiros. O informante no contexto dos sistemas de compliance. Disponível em http://www.cpjm.uerj.br/wp-content/uploads/2020/06/INFORMANTE-NO-CONTEXTO-DOS-SISTEMAS-DE-COMPLIANCE-ARTUR-GUEIROS.pdf. Acesso em: 17 de jan. 2021