Enquanto escrevo este artigo, a Câmara dos Deputados prepara-se para votar mais uma Proposta de Emenda Constitucional, a chamada PEC 5 ou PEC da Vingança. Na velocidade em que o Congresso vem dizimando todo o sistema de controle da probidade administrativa e de accountability do Estado brasileiro, é possível que esse texto já esteja defasado quando ocorrer a sua publicação. Ainda assim, pareceu-me relevante deixar o registro histórico desse descalabro que o parlamento está prestes a consumar.
De forma resumida e indo direto ao ponto, é possível afirmar que a aprovação da PEC da Vingança representará um ato de refundação do Ministério Público brasileiro, que deixará de ser uma instituição independente e combativa para se tornar mais um departamento burocrático estatal deflagrador de persecução penal, com todo o seu peso e seus estigmas, contra o popular “ladrão de galinhas”.
A PEC 5 é toda ela equivocada. A começar por suas torpes motivações. Sabemos que a causa mais imediata – embora não única – da proposta apresentada está na atuação do Ministério Público no curso da finada “Operação Lava Jato”. Ao perceberem que o Direito Penal, largamente utilizado para as camadas desfavorecidas da sociedade, poderia alcançar também os estratos da elite política e econômica brasileira, nosso sistema político, assim que as condições favoreceram, aproveitou-se da janela de oportunidade que surgiu desde a eleição do atual presidente da República, a fim de não apenas calcinar a Lava Jato, como também de destruir as raízes de onde essa macro operação criminal brotou.
Como já disse o Ministro Barroso, não se trata apenas de se livrar da punição pelos crimes já cometidos; o que boa parte da elite política brasileira deseja hoje é também uma verdadeira licença – um salvo-conduto – constitucional para seguir cometendo a mesma sorte de delitos, sem que uma instituição independente e combativa, como é o atual Ministério Público, cause perturbações e dessabores.
Barroso não poderia ter sido mais preciso e agudo em sua análise do cenário político nacional. De fato, a primeira parte do grande plano de impunidade verde-amarelo-vermelho já entrou em curso por meio das nulidades artificiais criadas a posteriori para livrar os políticos dos crimes revelados pela Lava Jato, como é exemplo candente e irrefutável a invenção da competência da Justiça Eleitoral, que só foi percebida pelos nossos grandes juristas, curiosamente, cinco após o início dos processos oriundos da Operação.
Seja como for, após garantir o fechamento das comportas da barragem e secar o curso do rio que pretendia irrigar os campos de nossa ressequida democracia com um tanto de decência e de moralidade administrativa, agora, o objetivo político-judicial é esvaziar o próprio lago dessa barragem, soterrando as nascentes de águas que poderiam senão resolver, ao menos, auxiliar na renovação das práticas do nosso desvirtuado sistema político-partidário. É preciso, segundo essa lógica, garantir, pelo menos, que mais duas gerações de políticos e de políticas patrimonialistas estejam em paz no comando no nosso país, livres de qualquer risco de prestarem contas por suas condutas à Justiça Penal.
Vamos então aos fatos. Para não me estender numa análise minuciosa da PEC da Vingança, pois o espaço aqui não comportaria tal objetivo, vou me ater a um dos pontos que considero dos mais deletérios e perniciosos, não apenas para o futuro do Ministério Público, como também e principalmente para os rumos de nossa própria democracia. Trata-se da inclusão do §3ºF combinado com o §3ºG no art. 130 da Constituição.
Os dispositivos referidos têm a seguinte redação proposta:
3°-F. O Conselho Nacional do Ministério Público poderá, por meio de procedimentos não disciplinares, rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida apuração em procedimento disciplinar, ou, em procedimento próprio de controle, quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais.
3°-G. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal o controle dos atos dos membros do Conselho Nacional do Ministério Público, os quais possuem as mesmas prerrogativas e garantias constitucionais dos membros do Conselho Nacional de Justiça. Na prática, a associação entre essas duas normas levará à possibilidade de que toda investigação promovida pelo Ministério Público contra os estratos de poder do país sejam submetidos diretamente ao controle do Conselho Nacional do Ministério Público, que poderá rever ou desconstituir atos de atividade finalística que, segundo a avaliação subjetiva dos Conselheiros, tenham por objetivo interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais.
Nesse ponto, é preciso lembrar que a PEC também altera a composição do CNMP para aumentar a representação política do Congresso Nacional no órgão de controle. Assim, se a proposta for aprovada, na prática, o Conselho passará virtualmente para o controle do trôpego sistema político-partidário nacional. Isso porque, na regulamentação atual, dos quatorze membros previstos, o Congresso indica apenas dois nomes (um da Câmara dos Deputados e outro do Senado); com a PEC 5, o número de Conselheiros passará para quinze, sendo que o Parlamento indicará quatro desses nomes da nova composição, e um desses, oriundo da indicação política, ocupará o cargo de vice-presidente e de corregedor nacional do CNMP, de acordo com a nova redação do Art. 130-A, incisos I a XI.
Não é preciso muito esforço interpretativo nem muita argúcia política para se perceberem as consequências diretas de uma alteração dessa magnitude no arranjo institucional do Ministério Público brasileiro. Pela via do CNMP, órgão criado para exercer o controle externo do Ministério Público no âmbito exclusivamente administrativo, a política partidária exercerá um controle desmedido e desproporcional na atividade investigativa da instituição, valendo destacar que esse controle não ocorrerá para qualquer tipo de investigação, mas, sim, para aquelas exclusivamente voltadas a delitos da macrocriminalidade política, como a grande corrupção e a lavagem dinheiro.
Notem que pelo §3ºF o controle das investigações do MP só seria possível quando estas interferirem na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais. Não há menção, por exemplo, a direitos humanos ou a garantias constitucionais do cidadão comum.
E não estamos aqui defendendo que tais hipóteses fossem incluídas na proposta, o que, de resto, só potencializaria ainda mais a aberração que representa essa PEC, mas apenas argumentando para demonstrar cabalmente que a grande preocupação política com a emenda constitucional proposta passa muito distante do interesse público em conter eventuais equívocos do MP; o que se deseja, de fato, é a completa emasculação institucional, a quebra da espinha dorsal do Ministério Público e a redução de sua autonomia e independência a miragem projetada em um deserto de democracia construído a partir do pó e da morte dos valores republicanos.
Finalmente, quando conjugamos o §3ºF com o §3ºG, chegamos à conclusão de que essas investigações do MP estarão, ao fim e ao cabo, sobre o controle direto do STF, sem que seja necessário passar antes pelas instâncias ordinárias do sistema de justiça. Para garrotear uma investigação politicamente inconveniente, bastará que o político implicado impugne o procedimento no CNMP e, em seguida, recorra ao Supremo Tribunal Federal.
Não podemos permitir esse retrocesso institucional. Trinta anos de experiência democrática e constitucional não podem ser simplesmente sacrificados em tributo do patrimonialismo retrógrado e parasitário que consumiu e consome as potencialidades do nosso país. O Ministério Público é, por tudo o que fez ao longo dessas três décadas de intensa atuação, um patrimônio imaterial e inalienável da sociedade brasileira. Entre erros e acertos, não há dúvida de que a balança pende a nosso favor, embora isso não faça, neste momento atual, muita diferença para os maus políticos que capitaneiam a condução da PEC 5. Estes desejam nos punir e nos destruir não pelos equívocos em que incorremos, mas por nossas virtudes institucionais e pelos mais relevantes e significativos ganhos e sucessos na defesa da República, da Democracia e probidade no trato da coisa pública.
Como nos ensinou Ferdinand Lassalle, mais do que uma Constituição formal na organização política das nações, são os fatores reais de poder que ditam verdadeiramente as regras do jogo. Não deixa de ter razão o brilhante político alemão do século XIX. No entanto, quero crer que, em nossa democracia do século XXI, o Povo, para além de qualquer outra consideração, seja um fator de poder real preponderante na equação constitucional e o vetor diretivo de suas regras, para que possamos reafirmar, com o não menos brilhante jurista, Konrad Hesse, que acreditamos, sim, na força transcendente e normativa da nossa Constituição, de suas instituições fundantes e de seus valores fundamentais.
* Danilo Dias – Procurador Regional da República, MBA em Gestão Pública pela FGV e mestrando em Direito pela Uniceub
** Artigo publicado no site Jota