Mas, nem bem foram colhidos os bons frutos dos últimos avanços no combate à corrupção e a sociedade recebe um duro golpe: aprovou-se, numa Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 37/2011, que retira o poder de investigação do Ministério Público, confinando-o às polícias Federal e Civil. A proposta - que segue agora para o plenário da Casa e, em seguida, para o Senado Federal - é um dos mais graves atentados contra o Estado Democrático de Direito e o Ministério Público, órgão cuja história se confunde com a luta contra a corrupção e a criminalidade.
Antes mesmo de a Constituição Federal de 1988 consagrar as atuais prerrogativas do MP - que efetivaram a instituição como instrumento de defesa da sociedade e, para tanto, sem vínculos de subordinação com os demais Poderes -, um procurador da República era assassinado em Olinda (PE), retaliado por sua atuação na operação conhecida como escândalo da mandioca. Pedro Jorge de Melo e Silva morreu com seis tiros, ao denunciar um esquema ocorrido entre 1979 e 1981, que desviara cerca de 1,5 bilhão de cruzeiros - quase R$ 20 milhões - dos cofres públicos e beneficiou políticos, fazendeiros, bancários, servidores e militares.
Nos anos 1990, o engajamento crescente dos procuradores da República em operações similares promoveu a desarticulação de diversas quadrilhas que atuavam na administração pública. Entre elas, o escândalo dos precatórios, quando denunciaram a fraude cometida por estados e municípios que negociavam a emissão de títulos públicos com o objetivo de arrecadar dinheiro. Só no Departamento de Estradas de Rodagem (DNER), o prejuízo à União foi estimado em R$ 3 bilhões. Os ex-prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta (PP-SP) foram acusados de improbidade administrativa, corrupção passiva, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa. A ação beneficiava bancos, fundos de pensão e importantes nomes do mercado financeiro.
A investigação do Banestado (Banco do Estado do Paraná) teve início na mesma década. O esquema consistia em remessas ilegais de divisas pelo sistema financeiro público brasileiro para o exterior. Na apuração, instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito e criou-se uma força-tarefa no Paraná, integrada por procuradores da República. As investigações revelaram o envio de cerca de US$ 19 bilhões para os Estados Unidos. O relatório final da CPI pediu o indiciamento de 91 envolvidos, a maioria políticos que participavam do esquema com empresários e pessoas ligadas ao tráfico de drogas, de armas e de mulheres.
Com o aperfeiçoamento da atuação do MP e de outras instituições democráticas, ações conjuntas têm feito do combate à corrupção uma das marcas do início deste milênio no Brasil, com o invariável protagonismo dos procuradores da República. A lista de operações é imensa. Por exemplo: Anaconda, Caixa de Pandora, Satiagraha, Monte Carlo e, claro, o próprio mensalão. Em todas elas, o trabalho articulado entre órgãos administrativos encarregados de promover diligências investigatórias foi fundamental.
O que nos reserva o futuro? A quem servirá um Ministério Público fraco, esvaziado em sua prerrogativa de proteger o interesse público, que retrocederá em sua atuação após décadas de aprimoramento, retaliado justamente por desempenhar com destemor suas responsabilidades firmadas na Constituição Cidadã? O Dia Internacional Contra a Corrupção, no Brasil, ficou sombreado pelo embate impunidade x Ministério Público, em curso no Congresso Nacional, com a funesta perspectiva de que, a despeito do trabalho de décadas de todo o MP, a democracia pode vir a ser a maior perdedora. Espera-se que o parlamento reitere seu permanente compromisso com a sociedade e, ano que vem, se possa festejar a derrota desta temeridade que é a PEC nº 37/2011.
Alexandre Camanho é procurador regional da República e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República