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Procure saber

A polêmica das biografias não autorizadas, criada pelo movimento Procure Saber, liderado por figuras da vida musical brasileira, pode ter por inspiração uma das letras de um dos compositores envolvidos: de perto ninguém é normal. E talvez isto não devesse ser explicitado sem autorização dos biografados, em nome da preservação da sua intimidade, além do fato de que os biógrafos estariam tendo ganhos com a história da vida alheia sem nenhum benefício econômico aos retratados. Para reforçar essa posição, invocam o artigo 20 do Código Civil Brasileiro, além da regra constitucional que assegura a preservação da intimidade, ressaltando a morosidade do Poder Judiciário em julgar ações de indenização e, se reconhece a sua procedência, os valores da condenação são irrisórios.

Na outra ponta, os críticos do Procure Saber relembram o passado de algumas das lideranças do movimento que, nos tempos da ditadura militar, tinham como emblema o É proibido proibir. E a autorização do biografado, lá como aqui, seria censura prévia, o que também afrontaria a liberdade de expressão, erigida em princípio e norma constitucional.

O fato de algumas das lideranças desse movimento se comportarem diferentemente do que hoje expressam não é novidade na cena brasileira. Não é incomum alguém desdenhar o que tenha dito ou escrito, quando em posição de destaque a que chegou, com o que disse ou escreveu. Ou, invocando prática do meio em que passou a atuar, justifique malfeitos, até então por ele execrados. Esse é um traço típico de grande parte das chamadas elites intelectuais e políticas deste país, cujo conserto talvez possa se dar nos próximos 500 anos.

Assim, o que resta é saber se o artigo 20 do Código Civil está em desacordo com a Constituição Brasileira _ livre manifestação de pensamento e liberdade de expressão _, tal qual argumenta a representação classista dos editores, junto ao Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade.

De fato, o artigo é categórico quando prevê que, salvo autorização, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, a exposição ou utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento, sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Pela amplitude do texto, não só biografias não autorizadas, também relatos históricos, textos jornalísticos, fotografias, manifestações por rádio, televisão, jornais e internet estariam sob a incidência do tal dispositivo legal. Enfim, tudo o que pode ser expresso por qualquer meio de divulgação. E só os editores é que tomaram a iniciativa de buscar manifestação do STF! Ainda é hora de outras instituições se habilitarem na mesma ação direta de inconstitucionalidade.

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional todos os dispositivos legais da Lei de Imprensa, porque infringente da livre manifestação de pensamento e da liberdade de expressão. E que eventuais agravos à honra (a boa fama e a respeitabilidade são dela integrantes) tinham a solução de ação indenizatória, sem que se tenha falado em proibição de tais manifestações, sejam elas prévias ou posteriores. Também alguns ministros do STF já se manifestaram pela impossibilidade de acolher o entendimento do Procure Saber.

Também não é razoável se afirmar que o Poder Judiciário é moroso e arbitra indenizações irrisórias. Isto não ocorreu: liminares de algumas das lideranças do movimento Procure Saber, prontamente, foram deferidas. E, se as eventuais indenizações são irrisórias, é porque a ofensa à honra não deve ter sido de molde a gerar um prejuízo considerável ao atingido. Talvez o dano maior possa decorrer da própria iniciativa de tentar proibir a edição, no caso, de biografias não autorizadas.

Por tudo isto, a tendência é a de o STF declarar a inconstitucionalidade integral do artigo 20 do Código Civil Brasileiro, pela impossibilidade de preservar o texto, porque, em matéria de controle concentrado de inconstitucionalidade, o Tribunal é legislador negativo.

Derocy Giacomo Cirillo da Silva é procurador da República aposentado.

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