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Projeto de Lei 10.887/18: pequenos avanços e grande retrocesso

Introdução

Recentemente aprovado na Câmara dos Deputados por ampla maioria, o Projeto de Lei nº 10.887/18 altera substancialmente a Lei n. 8429/92, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa (LIA), que durante quase trinta anos deu concreção ao art. 37, § 4º da Constituição Federal.

Diz-se que a LIA na forma como interpretada e aplicada pela magistratura nacional é muito rigorosa, por atingir não apenas agentes que realmente incidiram em improbidade administrativa, como também agentes públicos que apenas praticaram irregularidade, ao deixar de aplicar normas legais, sem todavia, intenção de lesar o erário ou enriquecer ilicitamente. Daí a razão ou necessidade da reforma legal.

Infelizmente, o projeto que deveria prestar-se a aprimorar a lei vigente, afastando dúvidas na sua aplicação, se aprovado pelo Senado na forma proposta, terá o efeito oposto àquele pelo qual é criticada a LIA hoje, isto é, deixará de punir não só o agente que apenas praticou irregularidades como igualmente impedirá a punição dos agentes ímprobos, generalizadamente. A par disso, na prática deixa desprotegido o erário, que possivelmente na grande maioria dos casos não terá como ser ressarcido do numerário que lhe foi subtraído com o ato de improbidade.

Este artigo pretende mostrar alguns pontos cruciais que levarão a tal nefasto desiderato, em prejuízo não apenas dos entes públicos lesados, como da sociedade brasileira, que pensava avançar no combate à corrupção, mas vê, nos últimos tempos, em vários setores, um movimento contrário, um verdadeiro e lamentável retrocesso no combate à corrupção.

São os seguintes os pontos do Projeto n. 10.887/18, a serem abordados: o elemento subjetivo dos atos de improbidade administrativa; a alteração do regime para o decreto da indisponibilidade de bens; o prazo do inquérito civil antecedente à propositura da ação.

O elemento subjetivo dos atos de improbidade administrativa

A atual Lei n. 8429/92 enumera os atos de improbidade administrativa em três diferentes artigos, distinguindo-os em atos que causam prejuízo ao erário (art. 10); atos que implicam enriquecimento ilícito do agente ímprobo (artigo 9º) e atos que ofendem princípios da Administração Pública (art. 11).

Ela não se refere ao elemento subjetivo do ato de improbidade, a não ser no art. 10, que traz referência à culpa. Assim, a interpretação feita pelos tribunais pátrios, capitaneados pelo Superior Tribunal de Justiça, é no sentido de que como os artigos 9º e 11 da lei não falam em culpa, tais atos somente podem ser punidos por dolo. Já os atos listados no art. 10 podem ser punidos com base no dolo ou culpa do agente. Firmou a jurisprudência, ainda, o entendimento de que o dolo exigido na prática do ato de improbidade administrativa, especialmente em relação ao art. 11 da lei, é o dolo genérico, isto é, o dolo que não exige um especial fim de agir, mas o dolo consistente na vontade de agir contrariamente ao que determina a lei. Esse o panorama atual1.

O Projeto de Lei n.10.887/18 altera completamente tal panorama. Para além de afastar a culpa como elemento anímico apto à configuração do ato de improbidade, passa a exigir para a sua caracterização o dolo específico, isto é, o especial fim de agir. Em consequência, deve ser demonstrada, pelo autor da ação, não apenas a vontade livre e consciente do agente ímprobo de violar as determinações legais, mas a razão pela qual o fez, a sua intenção, o porquê de tê-lo feito, o que no mais das vezes é de difícil prova, quando não impossível mesmo. Para tal desiderato necessário seria ao investigador adentrar no recôndito dos pensamentos e vontade do agente, chegar às suas mais secretas intenções, o que não é tarefa factível.

O art. 2º do Projeto de Lei, que traz as alterações a serem promovidas na atual Lei de Improbidade Administrativa, introduz referência ao dolo específico nos seguintes preceitos da LIA: art. 1º, § 2º e § 3º; art. 11, inc. V, § 1º; § 2º e § 6º ; art. 17-C, § 1º e § 2º. Merece destaque o § 2º do art. 11, pois na forma como apresentado no Projeto, generaliza a necessidade de dolo específico para “quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei.”

Ocorre que a exigência do dolo específico em todo e qualquer ato de improbidade administrativa subverte completamente o sistema punitivo adotado por nosso ordenamento jurídico, que na grande maioria das vezes contenta-se com o dolo genérico, revelado pela mera intenção de infringir o comando legal, de fazer um ato contrário ao que determina a lei, de querer o resultado descrito na norma.

Veja-se que é assim no Código Penal Brasileiro, cujo objetivo é punir as condutas contrárias à lei que se revestem de maior gravidade dentro do quadro normativo do País. Nosso Código Penal, ao fixar os tipos penais, apenas exige, para sua configuração, o dolo genérico, sendo absolutamente desnecessário perquirir as íntimas intenções do criminoso para configurar-se o crime. E ninguém nega que crime é conduta mais grave do que improbidade (muito embora às vezes uma única conduta possa configurar ambos os ilícitos). Percebe-se, assim, que não há lógica na exigência do dolo específico para a caracterização do ato de improbidade administrativa.

A exigência colocada em diversos dispositivos do Projeto de Lei n. 10.887/18, sob a discutível motivação de proteger o administrador honesto, mas inábil ou despreparado, que teve a infelicidade de afrontar a lei, servirá certamente para impedir que se alcance também o administrador corrupto. É notório, elementar, que ninguém alardeia que infringiu a lei, e muito menos os motivos pelos quais a infringiu. É prova de dificílima obtenção.

Regime de indisponibilidade de bens

Também aqui o projeto de lei altera por completo o que se construiu nestes quase trinta anos de aplicação da Lei n. 8429/92.

Na verdade, a indisponibilidade de bens é escassamente regulada na LIA. O atual art. 7º diz apenas que “quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade de bens do indiciado.” Além disso, determina, no parágrafo único, que a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito. Isso no escopo de dar concreção ao dispositivo constitucional a respeito (art. 37, §4º), que de sua vez estabelece unicamente que os atos de improbidade administrativa importarão a indisponibilidade de bens, na forma e gradação previstas em lei.

Apesar de no início de aplicação do instituto os magistrados terem exigido a prova da dilapidação dos bens, ou ao menos da sua tentativa, pelo agente ímprobo, acabou por prevalecer a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que apenas um requisito deveria ser comprovado para a constrição ser decretada: o fumus boni iuris, isto é, a aparência, fundada em indícios suficientes levados aos autos, de que o agente público, proprietário dos bens, incorrera na prática de improbidade. Quanto ao periculum in mora, requisito igualmente exigido pelo CPC na aplicação de medidas cautelares, dá-se por presumida a sua comprovação no caso da medida prevista na LIA2.

Existe uma lógica nessa dispensa. Com base no que ordinariamente acontece, sabe-se que aquele que se vê na contingência de perder seus bens, apressa-se a deles desfazer-se, de modo a poder aproveitar aquilo que o fato ilícito, cível ou criminoso, lhe propiciou. Assentou a jurisprudência superior, assim, que não se há de esperar que o agente ímprobo inicie a malbaratar seus bens para só então proceder-se à medida que visa a assegurar o ressarcimento do erário.

Vem o Projeto de Lei dizer, contudo, que a indisponibilidade de bens será regulada consoante a medida de urgência estipulada no Código de Processo Civil (redação proposta para o § 8º do art. 16). Além disso, estipula como requisito ao seu deferimento a demonstração, no caso concreto, de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo (redação proposta para o § 3º do art. 16).

O Projeto de Lei coloca nos ombros do Ministério Público o ônus de prova de difícil busca. Inviável aos membros ministeriais, no seu dia a dia de trabalho, verificar se qualquer dos agentes públicos implicados nos inúmeros procedimentos ou processos sob sua responsabilidade procede de modo a vender, ceder ou doar seus bens, para só então requerer a medida protetiva do erário. Não há a menor condição prática de os membros do Parquet fazerem isso, a não ser num ou noutro caso, fato do qual certamente aqueles que trabalharam na elaboração do projeto de lei não são inscientes.

Outra injustificada disposição que vem a dificultar o decreto da medida constritiva é a exigência de oitiva prévia do demandado, salvo em casos específicos. A oitiva prévia é a regra. Tal providência certamente servirá apenas para alertar o demandado de que poderá ter seus bens bloqueados, exigindo imediatas providências para deles desfazer-se, vendendo-os ou passando-os para parentes ou mesmo “laranjas” (redação proposta para o § 3º do art. 16).

Alega-se que a medida de indisponibilidade é draconiana e por isso não pode ser concedida nos moldes atuais. Esta não é uma afirmação razoável. No caso da indisponibilidade, o proprietário continua a fruir e usufruir dos seus bens, ao contrário de outras medidas cautelares pelas quais os bens devem passar às mãos de um depositário. Na indisponibilidade, a única restrição que lhe é imposta é dispor de tais bens para, sob qualquer forma, passá-los à titularidade de terceiros. Além disso, eventualmente, em casos específicos, demonstrando a necessidade de praticar qualquer ato de disposição do bem constrito, pode o agente requerer ao juiz que a indisponibilidade recaia sobre outro bem que indicar.

Eventuais excessos que tenham sido cometidos foram coibidos pela jurisprudência, que tem gerado parâmetros, hoje bem definidos, sobre o valor dos bens a serem constritos e quais os bens ou valores que não podem sofrer a constrição.

Acredita-se que quem escreveu o Projeto de Lei não desconhece que o valor dos bens tornados indisponíveis não pode ultrapassar o montante do dano causado pela improbidade3, acrescido de eventual multa4; e no caso de valores em dinheiro, deve-se respeitar o limite mínimo correspondente a quarenta salários mínimos. Essa faixa monetária que deve permanecer livre, sem bloqueio, é considerada de caráter alimentar para o agente demandado e seus familiares5.

Entende-se que com estes parâmetros, já devidamente fixados pelo Superior Tribunal de Justiça, ficam, o agente ímprobo e sua família, adequadamente resguardados, ao mesmo tempo em que se protege também o erário que fora vilipendiado, mantendo-se o resultado útil da ação por ato de improbidade no que diz com o ressarcimento da entidade lesada.

As citadas diretrizes, fruto da jurisprudência, foram incorporadas pelo Projeto de Lei, na redação proposta para os §§ 13 e 14 do art. 16 da LIA, que modifica orientação jurisprudencial ao impedir a indisponibilidade do bem de família6, tendo o § 10 do mesmo art. 16 também impedido que no valor dos bens a serem indisponibilizados seja computada eventual multa a ser aplicada ao agente público.

Como se vê, as disposições do Projeto de Lei enfraquecem sobremaneira o instituto, em benefício do agente público demandado, deixando vulnerável o bem jurídico (a Fazenda Pública), que sem o expedito decreto da indisponibilidade de bens do agente ímprobo, dificilmente será recomposto.

O resultado prático da medida também resulta fragilizado da determinação de ordem de indisponibilidade dos bens, que deverá recair primeiramente em veículo de via terrestre, para somente na sua inexistência recair sobre bens imóveis (art. 16, § 11 da LIA, na redação proposta no Projeto). Ora, sabidamente qualquer ação no direito brasileiro tem tramitação demorada até seu desfecho final. Enquanto isso, veículos de via terrestre, na expressão da lei (que têm prioridade na indisponibilidade), sofrerão forte depreciação e desgaste, quando bens imóveis no mínimo mantêm estável seu valor, podendo até mesmo valorizarem-se nesse meio tempo, a depender das circunstâncias.

Além disso, somente na inexistência de bens móveis e imóveis poder-se-á proceder ao bloqueio de contas bancárias (redação proposta para o § 11 do art. 16 da LIA). Aqui interessante notar que a medida, excessivamente casuísta, vem na contramão do novo Código de Processo Civil. Em favor dos exequentes em geral, ele determina que a penhora de bens do devedor deve recair em primeiro lugar sobre o patrimônio financeiro do executado (art. 835, inc. I).

Não parece fazer qualquer sentido dificultar à Fazenda Pública7 o ressarcimento daquilo que lhe é devido. Caso o devedor a final não tenha como pagar os valores que lhe forem judicialmente determinados, caberá à Fazenda, primeiramente promover procedimento dispendioso, de penhora e avaliação de tais bens e posterior venda em hasta pública, cujo resultado dificilmente alcança o valor de mercado, o que significa dizer que o erário não será totalmente ressarcido do prejuízo experimentado. Enquanto isso, os valores financeiros dos executados, cujo procedimento de repasse para o erário seria muito mais simples e rápido, fica à sua livre disposição (dos executados) durante todo o processo por ato de improbidade, e ao final da ação quiçá já tenha sido utilizado ou passado a outras mãos.

A justificativa que o próprio dispositivo dá para tal ordem a ser observada na constrição de bens é “garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo.” Como se disse acima, o próprio Projeto de Lei já estipula garantias em benefício da subsistência do acusado e sua família. Certo que o mesmo escopo, isto é, a manutenção, pode ser obtido pela empresa, que precisa apenas demonstrar os valores mínimos necessários para manter-se em atividade.

Vale uma palavra final para dispositivo que, mais uma vez, somente serve ao acusado do ilícito, contribuindo também, de outra parte, para deixar o erário desprotegido. Ao contrário da construção judicial edificada ao longo dos anos, que garantiu até aqui a possibilidade de que quaisquer bens, mesmo os decorrentes de atividade lícita promovida pelo agente público, sejam alcançados pela indisponibilidade, o Projeto alija tais bens do decreto de constrição (redação proposta para o § 10 do art. 16)8.

Além da dificuldade de prova de que o bem é fruto da atividade ilícita, a não ser pelo critério temporal, no caso de o agente ter-se utilizado do dinheiro ilicitamente ganho para fruir as benesses da vida, em viagens, festas, jogos, etc., com ele remanescendo apenas valores de atividades lícitas anteriores ou posteriores à improbidade praticada, a Fazenda Pública não poderá garantir o seu pagamento com tais bens. Não se vê nenhuma justificativa plausível para tal dispositivo a não ser o intuito, como se disse, de beneficiar o agente ímprobo.

Inquérito civil público antecedente à propositura da ação - prazo

O Projeto de Lei n. 10.887/18 atribui ao Ministério Público, ao propor a ação por ato de improbidade administrativa duas providências fundamentais: a) individualizar a conduta de cada participante no ato de improbidade e b) comprovar, ao menos com robustos indícios, não apenas o fato ímprobo imputado aos agentes, como também o dolo específico com que se houve referidos agentes, coletando elementos de difícil, se não impossível obtenção, como já esclarecido em tópico anterior. Naturalmente a busca por tais elementos implica trabalho mais acurado e demorado.

Não obstante, o mesmo Projeto resolveu por colocar um prazo de finalização do inquérito civil instaurado para a colheita de tais elementos. O art. 23, § 2º da LIA, na redação proposta pelo Projeto, estabelece que o inquérito civil para apuração de ato de improbidade deverá ser concluído no prazo de 180 dias corridos, prorrogável por uma única vez. Significa dizer que o prazo máximo do inquérito civil será de quase um ano.

Em alguns casos esse prazo é suficiente para a elucidação do fato e colheita dos elementos necessários. Todo investigador experiente, contudo, sabe que nos casos de alta complexidade tal prazo é absolutamente insuficiente. São complexos aqueles casos envolvendo vários agentes públicos e privados, cuja atividade individual deverá ser criteriosamente desvendada, com obtenção também da prova de que valores indevidos foram auferidos, entre outras provas necessárias da prática da improbidade.

Esclarecer qual atividade incumbiu a cada um dos agentes envolvidos na improbidade, dependendo do número dos implicados, pode requerer tempo considerável, exigindo a oitiva de grande número de indivíduos, os quais nem sempre residem ou trabalham no mesmo local em que instaurado o inquérito civil, o que exigirá deslocamento, ou das pessoas a serem ouvidas, ou do próprio membro ministerial.

Não raramente, é complexa a teia das movimentações bancárias envolvidas para dissimular a origem ilícita do dinheiro; muitas vezes a dissimulação envolve entidades no exterior. Rastrear tal numerário e obter as provas necessárias exige expertise e tempo, porque o envio de informações do exterior obedece a regras específicas e envolve muitas vezes a prévia celebração de acordo com instituições estrangeiras, providências que nunca são rápidas.

Tivemos ultimamente exemplos gritantes de tais casos de alta complexidade, como aqueles que constituíram a Lava Jato, Operação Zelotes, Operação Greenfield, entre outros.

Tenha-se em vista, ainda, que os agentes, auditores, policiais, membros do Parquet, não estão à disposição de um único caso de improbidade para nele trabalhar com exclusividade. O tempo é um recurso limitado que precisa ser distribuído a partir de um critério de prioridade.

É irresponsável estabelecer uma regra geral de limitação da ação investigativa, aplicada a todo e qualquer caso de improbidade. Isso significa malbaratar o direito constitucional de ação do órgão do Estado. Vale denunciar tal proposição como uma tentativa de alargar privilégios do agente público que atenta contra os recursos escassos da nação. Caso essa proposição se converta em norma legal, servirá a impedir que os casos de improbidade de maior expressão passem pelo crivo da Justiça; nessa hipótese, solapa-se o direito de o Ministério Público e de todos os investigadores oficiais trabalharem adequadamente na investigação e colheita dos elementos necessários a garantir a propositura e o bom êxito de ação judicial.

Conclusão

Neste artigo não há espaço para discutir, avaliar todas as disposições do Projeto de Lei n. 10.877/18 e sobre elas ponderar. Entende-se que o Congresso Nacional, com o auxílio dos diversos canais da sociedade, poderá fazer uso da oportunidade para dar mais segurança ao administrador público, que somente deve estar munido da intenção de fazer entregas de qualidade à sociedade. Mas sob essa suposta bandeira, o que o comentado Projeto de Lei faz, na versão aprovada pela Câmara dos Deputados, é praticamente desmontar um sistema legal que vem cumprindo sua finalidade. Casos de aplicação infeliz existem, como em qualquer área do direito administrativo e até mesmo penal. Mas isso não justifica atribuir privilégio de persecução a uma classe de infratores.

A leitura dos dispositivos que integram o Projeto de Lei em questão indica, infelizmente, que a sua aprovação somente incorporara a parte da jurisprudência que beneficia os agentes investigados. Assim, o texto estabelece, em diversos aspectos, preceitos exatamente opostos ao que a jurisprudência veio a consolidar em desfavor do agente investigado. Por isso, várias passagens merecem censura.

Além daquelas já mencionadas ao longo do texto, destaquem-se as regras do art. 17, § 10-C e § 10-F, inc. I da LIA, na redação do Projeto de Lei, que estabelecem que o juiz não pode dar ao ato ímprobo, capitulação distinta daquela fornecida pelo Ministério Público na inicial. Ora, existe um princípio no Direito Processual que diz que o juiz conhece o Direito, também tendo a jurisprudência há muito assentado que o acusado defende-se dos fatos que lhes são imputados, e não da capitulação legal colocada na petição, seja da ação penal, seja também da ação por ato de improbidade administrativa.

Veja-se aquela proposição que diz que se o agente for absolvido por qualquer razão na órbita penal, não poderá ser demandado pelos mesmos fatos por ato de improbidade administrativa (redação proposta para o § 4º do art. 21). Todavia, é da essência de nosso sistema jurídico a existência de nítida separação entre as esferas administrativa, cível e penal, somente influenciando necessariamente nas demais esferas o resultado da ação penal, quando o réu é absolvido porque constatada a inexistência do ato que lhe foi imputado ou quando, ainda que os fatos tenham existido, não foi o réu o seu autor. Fora destas hipóteses, é irrelevante o resultado da ação penal para os demais campos de responsabilização. Assim, se o agente for absolvido por falta de provas na ação penal nada obsta que seja condenado na esfera cível, onde transita a ação por ato de improbidade administrativa, se o magistrado entender presentes nos autos cíveis, as provas necessárias.

O Projeto de Lei n. 10.877/18 está repleto de impropriedades. Ao contrário do que dizem os seus autores e aqueles que o aprovaram, de diversas disposições decorre um grande retrocesso no combate à corrupção e à improbidade. Na verdade, o texto aprovado praticamente obsta a punição dos atos de improbidade administrativa ao fazer exigências que não se coadunam com o propósito de apurar e punir o ato de improbidade, bem assim de ressarcir o ente público lesado.

Não há minimamente qualquer justificativa para os inúmeros benefícios em favor do acusado. Chega-se mesmo a ditar a possibilidade de o acordo de não persecução cível ser proposto até mesmo na fase de execução penal (redação proposta para o art.21, § 4º), o que não tem qualquer lógica, posto que neste momento a persecução já se exauriu e tal acordo nem servirá aos propósitos de dito instrumento, de recente adoção no nosso Direito.

Caso o Projeto de Lei comentado seja aprovado pelo Senado Federal nos termos da redação aprovada na Câmara dos Deputados, o Estado e a sociedade perderão.

* Denise Vinci Tulio é subprocuradora-geral da República desde 2009, e membro do MPF desde 1989. Foi Procuradora chefe na Procuradoria Regional da República no DF e Procuradora Regional Eleitoral no Paraná. Atuou como membro suplente na 2ª e 6ª Câmaras do MPF e como titular na 1ª e 5ª Câmaras do MPF, tendo sido Coordenadora da última. Atualmente é Coordenadora do Núcleo de Acompanhamento da Tutela Coletiva nos STJ.

Notas

1 Decisão da 1a. Seção do STJ no RESP 951.389/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, em 09/06/2010, publicada no DJe de 04/05/2011.
2 Por todas as decisões nesse sentido, cite-se o julgamento da 2a. Turma do STJ no ARESP 1393562, Rel. Min. Francisco Falcão, em 01/10/2019, DJe de 07/10/2019.
3 Dentre as inúmeras decisões, cite-se o julgamento da 1a. Turma do STJ no Ag.Int. no RESP 1895887/MA, Rel. Min. Gurgel de Faria, em 19/04/2021, publicado no DJe de 12/05/2021. Esta questão está afetada para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos – Tema 1055.
Confira-se julgamento da 1a. Turma do STJ no RESP 1728658/MS, Rel. Min. Regina Helena Costa, em 04/12/2018, publicado no DJe de 11/12/2018.
5 Veja-se julgamento no ARESP 1734328/SC, 2a. Turma do STJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 16/03/2021, publicado no DJe de 09/04/2021.
6 A título de exemplo, entre inúmeras decisões no mesmo sentido, consulte-se o julgamento da 1a. Turma no AgInt no RESP 1772897/ES, Rel. Min. Sérgio Kukina, em 05/12/2019, publicado no DJe de 16/12/2019.
7 Vale dizer, à sociedade, pois é ela quem contribui com seus próprios recursos, para compor o erário.
8 Por todos os precedentes, citem-se os Edcl no AgReg no RESP 1351825/BA, Rel. Min. Og Fernandes, 2a. Turma, julgado em 22/09/2015, DJe 14/10/2015.

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